JORGE ALMEIDA
FERNANDES – 06/03/2014 - 23:58
O Presidente russo
«brinca com o fogo», mas os seus objectivos não são claros. Putin está refém da
Crimeia, mas o Ocidente precisa de compreender que demonizar o líder russo não
passa de um álibi para a ausência de uma política para enfrentar esta crise.
1. Um momento
diplomático de “desescalada” não deve ser tomado como uma aproximação da resolução do
conflito. É apenas um “arrefecimento” enquanto os actores continuam a mover as
suas pedras. Há uma questão prévia a todas as movimentações: qual é o objectivo
da ocupação da Crimeia por Moscovo? Tudo se resume, diz um analista, a uma simples
pergunta cuja resposta não é óbvia: “A visão de Vladimir Putin é da ordem mundial.
Visa Putin compensar a perda de
Ucrânia pela anexação da Crimeia? Seria uma troca estrategicamente desvantajosa, apesar de
a Crimeia ser a chave
do mar Negro. Visa colocar Moscovo numa posição
de força para uma grande
negociação sobre a Ucrânia? É a hipótese mais credível, significando uma
estratégia indirecta para recuperar
influência na Ucrânia e reafirmar o seu estatuto internacional.
Ou, na hipótese extrema, traduz um
projecto de “reconquista” ou de divisão da Ucrânia, o que, por sua vez, implicaria uma radicalização perante
os vizinhos ex-soviéticos. A Moldávia poderia ser o próximo alvo. Significaria recusar — como antes a União
Soviética — os princípios da soberania nacional e da intangibilidade das
fronteiras, tentando restaurar
a sua antiga “esfera de
influência”. Seria a aposta numa nova Guerra Fria.
2. Todo este processo
foi composto por ciclos de surpresa e reacção. Em Novembro, Moscovo marcou
pontos ao levar Viktor Ianukovich a desistir da adesão da Ucrânia à Parceria
Oriental da UE. Esta foi apanhada de surpresa. Outra surpresa logo se seguiu: a
mobilização “Euro-Maidan”, que constituiu uma derrota e uma ameaça para
Moscovo. A Europa descobria que a sua fraqueza política era compensada por uma
magnética atracção sobre os ucranianos. O desfecho foi rápido: fuga e destituição de
Ianukovich a 22 de Fevereiro. Acto seguinte: numa semana, Moscovo “perdeu a
Ucrânia e recuperou a Crimeia”. Kiev e os ocidentais foram, de novo, apanhados
de surpresa. É uma situação propícia a espirais de tensão e ameaças.
“Vladimir Putin brinca com o fogo”,
diz o analista francês Dominique Moisi. Por que agiu tão rapidamente? O fracasso em Kiev «destruiu o mito da
potência russa”, argumentou o analista alemão Jan Techau. Foi uma humilhação pessoal para Putin e,
logo, uma ameaça ao seu próprio poder. Mais: se olharmos para o mapa, a Ucrânia é o elo fundamental para a
união aduaneira que ele ambiciona transformar numa futura “União Euro-Asiática”.
Sem Ucrânia, esse projecto não tem
sentido. Há, por fim, a obsessão russa com a ameaça do Ocidente — a “paranóia do cerco”. A “paranóia”
não é exclusiva de Putin, é partilhada por grande parte da elite russa.
3. A Rússia não tem
meios para relançar uma nova Guerra Fria. É uma “potência enorme” mas com pés
de barro. O que caracteriza a Rússia de Putin é ter optado por uma “competição
estratégica” com o Ocidente. Quem mais adverte contra o regresso da Guerra Fria
são analistas russos, uns por real temor, outros por razões de propaganda.
De todas as hipóteses de
racionalização da ocupação da Crimeia, a mais provável é Putin estar a
tentar criar uma nova relação de
forças no terreno na perspectiva de uma grande negociação sobre a Ucrânia com os ocidentais.
O analista Thomas Gomart, director
do desenvolvimento estratégico no Instituto Francês de Relações Internacionais (IFRI) enuncia três
objectivos de Putin. Primeiro, assumir o controlo da Crimeia e criar um facto consumado, mantendo a ambiguidade
sobre a Ucrânia. Uma das possíveis saídas seria a “federalização” do país de forma a limitar a independência
de Kiev. É uma ideia que a imprensa alemã diz
ser bem acolhida por Angela Merkel. De facto, daria a Moscovo um
“direito de veto” sobre a política externa ucraniana através da sua influência nas regiões russófonas do Leste. É
um exemplo das muitas implicações da “grande negociação”.
Gomart evoca depois a vontade de
Moscovo testar a solidariedade ocidental e impor uma «derrota simbólica» a Washington, com escassos meios para
contrariar Moscovo na Crimeia. Por isso, uma das questões fundamentais das próximas semanas “reside em
manter a coesão ocidental perante o golpe de força e na redefinição de uma política global perante a Rússia”.
Samuel Charap e Keith Darden, do
Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS)
de Londres,
consideram ser cedo para ter
certezas em relação à opção russa. Num primeiro cenário, Moscovo terá reagido a
uma derrota que atribui a um “complot ocidental” e que visaria integrar a Ucrânia na NATO e
ameaçar as suas bases na Crimeia.
Neste caso, terá sido uma “acção reactiva”. Numa segunda grelha de análise, os
movimentos militares traduziriam
“uma mudança fundamental dos princípios subjacentes à política de expansão
territorial agressiva conduzida
pela Rússia”. É a hipótese inquietante, com alto risco de levar a um confronto.
Se o primeiro cenário for o
verdadeiro e “a Rússia não tiver o desígnio de despedaçar a Ucrânia, os
ocidentais acabarão por encontrar um
terreno de acordo com Moscovo”.
É preciso ter em conta outro factor.
Putin está agora refém da Crimeia, olhada pelos russos como “terra russa”. Diz à AFP o analista Alexei
Makarkine: “A Rússia foi longe de mais. Se se anunciasse agora que a Crimeia não pode ser incorporada na
Rússia, as pessoas não compreenderiam.” Corrobora outro analista russo, Pavel Felgenhauer: “A propaganda assumiu
tal dimensão no país que Putin não pode fazer marcha atrás.”
Sem comentários:
Enviar um comentário