OPINIÃO
RUI TAVARES 03/03/2014 – 08:02
Não gosto nada quando
isto acontece.
Na semana passada escrevi
uma crónica sobre a Ucrânia, chamei-lhe “Já basta uma tragédia” (a outra é a Síria)
e, quando o enviei, fiquei com a sensação de que tinha sido alarmista. Hoje dá a sensação de
que afinal pequei por defeito e não por excesso.
Três notas sobre o
que se está a passar na Crimeia.
A primeira é a
histórica. Na semana passada aludi à Guerra da Crimeia, que apesar de anteceder a
Ia Guerra Mundial em pouco mais de 60 anos, pode dela ser
considerado precursora. O que se esquece é que a Crimeia, em si, foi apenas um objeto colateral dessa
guerra. Ela foi combatida na Crimeia porque a França, a Grã-Bretanha e o Império Otomano
assim o escolheram. O objetivo do Império dos Czares era combater
essa guerra do outro lado do Mar Negro, auxiliando os eslavos e ortodoxos sob
dominação otomana para poder chegar a Constantinopla, hoje Istambul, e
conquistar a “segunda Roma” (sendo que tinham já a “terceira Roma”, Moscovo)
aos sultões muçulmanos. Esse objetivo manteve-se. As outras potências europeias
desejavam exatamente o contrário: não
queriam uma Rússia que dominasse o Médio Oriente (e esta tensão prolongou-se
durante a Guerra Fria, já com a URSS). A Crimeia não um objetivo em si — mas também
por isso uma guerra que começou na Crimeia se expandiu por todo o Mar Negro, o
Danúbio, o Cáucaso, e até o Báltico e, em alguns casos isolados, o Pacífico.4
A segunda nota é
sobre a resposta da UE e dos EUA. É evidente que Putin quer punir a Ucrânia por
esta ter escolhido o “Ocidente”. Como quem diz: podes sair de casa, mas eu fico com o que eu
quiser. Do lado ocidental, a escolha é entre uma nova guerra fria — congelar os
laços com a Rússia — ou uma nova guerra quente que ninguém quer imaginar. Ao
contrário de há cem anos, hoje há arsenais nucleares. Seria trágico que fosse
agora, mais de 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, que a Rússia e os EUA
entrassem na guerra que se conseguiu evitar durante todo o século passado.
A terceira nota é
sobre a própria Rússia. Esta posição de força esconde grandes fraquezas. Por
muito nacionalismo que lhe sirvam na televisão, o povo russo vê para lá de Putin. As
desigualdades são enormes, a oligarquia vive à grande e às claras, e não se
pode comer gás
natural: ele tem de ser
vendido para algum lado. A Rússia, envelhecida e demasiado dependente das suas
reservas de combustíveis fósseis, não se pode dar ao luxo de cortar com o resto
da Europa. Putin está numa posição aparentemente sólida, mas isso é hoje, não
daqui a meses ou anos. Não é de excluir até que a sua mensagem seja tanto para
dentro como para fora. Como quem diz aos russos: não pensem em fazer o mesmo
que os ucranianos. Mas Putin deveria talvez refletir que a tal Guerra da
Crimeia, ou a Ia Guerra Mundial (ou, antes dela, a Guerra
Russo-Japonesa de 1905), foram ocasiões em que um senhor da Rússia se expôs
demais e a Rússia acabou mudando de senhor, num dos casos de forma rápida e
inclemente.
Seja como for, a
verdade é que começamos o ano perguntando-nos como foi possível que, há um século,
a Europa tenha entrado em guerra tão rapidamente. E agora vemos como é fácil fazê-lo — difícil, embora
ainda possível, evitá-lo.
Historiador
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