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terça-feira, 5 de junho de 2018

Palestinianos denunciam Israel no tribunal de Haia por crimes na ocupação

MÉDIO ORIENTE
Maria João Guimarães
22 de Maio de 2018, 18:57 
Mais de cem palestinianos ficaram feridos na zona de separação entre a Faixa de Gaza e Israel 

Estado hebraico desvaloriza iniciativa, dizendo que acção não tem validade legal. Queixa é “teste ao mecanismo de responsabilização da lei internacional”, diz ministro palestiniano.

O ministro palestiniano dos Negócios Estrangeiros, Riyad al-Maliki, pediu nesta terça-feira aos procuradores do Tribunal Penal Internacional (TPI) que abra uma investigação a abusos e crimes cometidos em território palestiniano.

Esta é a primeira vez que os palestinianos pedem directamente a acção do TPI, que já analisa desde 2015 acusações contra Israel, incluindo actos cometidos na guerra do ano anterior em Gaza.

Israel diz que o pedido palestiniano não tem “validade legal”, pois a Autoridade Palestiniana não é um Estado e Israel tem tribunais que analisam questões relacionadas com as suas operações militares e nos territórios ocupados. 
O TPI, com sede em Haia, é considerado um tribunal de último recurso, pronunciando-se apenas quando as autoridades nacionais não actuam.  

Em comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel acusou a liderança palestiniana de “explorar o tribunal com objectivos políticos”.

O TPI aceitou a Palestina como membro em 2015 e assim pode investigar crimes cometidos no território, mesmo que os suspeitos sejam de Israel, que não é signatário. 
A investigação preliminar vinha a analisar os processos israelitas quanto às suas operações na guerra na Faixa de Gaza de 2014, em que morreram mais de dois mil palestinianos. 
Se estes processos forem consideradas insuficientes, isso poderia ser razão para uma investigação do TPI.

A denúncia palestiniana junto do TPI ocorre após semanas de protestos em Gaza em que morreram mais de cem pessoas e milhares ficaram feridas. 
Na chamada “Marcha do Retorno”, snipers israelitas dispararam contra palestinianos que se aproximaram da barreira que divide os dois territórios, matando 110 pessoas e deixando milhares de feridos.

Israel diz que a força letal foi necessária para impedir infiltrações do Hamas, no poder na Faixa de Gaza e que tenta levar a cabo ataques contra o Estado hebraico. 
Os manifestantes estavam desarmados, embora tivessem queimado pneus para dificultar a visibilidade dos atiradores e para se aproximarem da barreira, atirado pedras aos soldados, e lançado alguns papagaios com cocktails Molotov que causaram incêndios do lado israelita. 
Nenhum israelita ficou ferido durante estes protestos.

“Há uma cultura de impunidade de Israel em relação a crimes contra os palestinianos”, disse Malki, depois de se encontrar com a procuradora do TPI, Fatou Bensouda. 
“Esta queixa é o teste da Palestina ao mecanismo internacional de responsabilização e respeito pela lei internacional” e, por isso, “um passo histórico e importante”.

A decisão deveu-se, acrescentou, “à intensificação dos crimes” contra os palestinianos, incluindo contra “manifestantes desarmados na Faixa de Gaza”. 
Na queixa estão sublinhados crimes ligados à existência de colonatos judaicos em território ocupado, considerados ilegais pela lei internacional, e que foram objecto de uma opinião (não vinculativa) do Tribunal Internacional de Justiça (da ONU).

O TPI visitou os territórios no âmbito da investigação preliminar em 2015, mas ainda não decidiu se avança para uma investigação formal. 

Para o especialista em direito internacional Alex Whiting o efeito imediato desta denúncia é que “faz com que seja mais difícil ao tribunal manter-se na fase de investigação durante anos e anos”, disse no Twitter.

Para o director do programa de Justiça Internacional da Human Rights Watch, Richard Dicker, a responsável do TPI deve agora “levar a cabo acções para uma investigação formal com o objectivo de responsabilizar os perpetradores de crimes graves e assegurar justiça imparcial e completa consistente com o estatuto do tribunal”.

Por outro lado, sublinha Alex Whiting, apesar do pedido palestiniano falar dos crimes israelitas, qualquer investigação do TPI avaliará todos os crimes potencialmente cometidos no território, incluindo por palestinianos.

Organizações de defesa de direitos humanos como a Human Rights Watch ou a Amnistia Internacional consideraram que Israel pode ter cometido crimes de guerra com os disparos sobre manifestantes desarmados das últimas semanas na Faixa de Gaza. 
Mas além de criticarem Israel também já apontaram, nos últimos anos, o dedo à Autoridade Palestiniana ou ao Hamas, por exemplo, por actos contra críticos, abusos ou tortura de prisioneiros, ou, no caso do Hamas, lançamento de rockets contra Israel.

mariajoaoguimaraes@público.pt

Porque protestam os palestinianos em Gaza?

PERGUNTAS E RESPOSTAS
Maria João Guimarães
em Jerusalém 15 de Maio de 2018, 16:07 

Os palestinianos enterram nesta terça-feira os 60 manifestantes mortos pelas balas israelitas nos protestos junto à fronteira no mesmo dia em que os Estados Unidos inauguraram a sua embaixada em Jerusalém. É o último dia da Grande Marcha do Retorno e desde o início deste protesto 97 manifestantes foram mortos e 12.271 feridos, diz a organização Medical Aid for Palestine, que contabiliza mais feridos do que em toda a última guerra de Israel contra o Hamas, em 2014, que durou 51 dias e fez 11.231 feridos.

O que se passou em Gaza?

Os palestinianos assinalam o que chamaram A Grande Marcha do Retorno, para lembrar o direito de retorno dos refugiados palestinianos que fugiram ou foram expulsos aquando da criação do Estado de Israel, desde 30 de Março. A acção vinha a realizar-se às sextas-feiras e tinha fim programado para esta terça-feira, quando se assinalam 70 anos da Nakba, ou catástrofe, o dia seguinte à declaração de independência do Estado hebraico. Mas a inauguração da embaixada dos EUA em Jerusalém foi pretexto para mais um dia de manifestação na segunda-feira.

Qual o papel do Hamas?

A marcha foi autorizada pelo Hamas, que governa o território, e o movimento que normalmente não considera eficazes acções de protesto pacíficas (apenas luta armada), aproveitou-a, encorajando os manifestantes a tentar passar a barreira e entrar em Israel. Por um lado, desvia o descontentamento de muitos habitantes de Gaza com as terríveis condições no território, sujeito a um bloqueio há onze anos e numa situação à beira da ruptura há meses. Por outro lado, permitia chamar a atenção para a situação no local, afastada há muito do ciclo noticioso.

Quem são os manifestantes e porque se arriscam a morrer?

Israel avisou que não toleraria ninguém perto da barreira que separa os dois territórios e que dispararia contra quem chegasse entre 300 a 100 metros da barreira (e que tecnicamente não é uma fronteira, porque apenas Estados têm fronteiras). Estas pessoas sabem que arriscam morrer, mas a ideia de poderem chegar ao pé da barreira, danificá-la e eventualmente passar (ideia fomentada também pelo Hamas), quebrando o cerco, é muito forte.

Muitos sentem-se desesperados pelo isolamento e não vêem qualquer hipótese de melhoria da sua vida, e a alta taxa de desemprego (ou subemprego, já que muitas pessoas têm qualificações) deixa muitas pessoas sem nada para fazer. Alguns manifestantes foram feridos num dos dias, e voltaram. (Outros participantes na marcha foram atingidos mais longe, muitos por gás lacrimogéneo, que tem aterrado muito para além da zona letal, onde pessoas se concentram para rezar, ou onde estão as tendas para os media - é importante fazer as imagens passar - ou dos paramédicos.)

O que levou à situação tão difícil no território?

Duas coisas: o bloqueio imposto por Israel depois das eleições que o Hamas venceu em 2006 (e que levaram a uma luta entre Hamas e Fatah que terminou com o primeiro no poder em Gaza e a segunda na Cisjordânia), e uma medida da Fatah para pressionar o Hamas a um acordo de unidade que implicou cortes nos salários dos funcionários públicos e menor pagamento da energia a Israel, deixando o território com ainda menos electricidade do que até então – agora há uma média de quatro horas de electricidade por dia.

É uma manifestação chamada pacífica mas o que se vê nas imagens é violência. Porquê?

Os manifestantes que estão perto da fronteira vão com pedras, muitos de cara tapada para não serem reconhecidos ou a sua identidade registada pelos israelitas, põem pneus a arder para dificultar a visibilidade dos snipers que estão do outro lado ao poucos metros, alguns tentam lançar papagaios no ar com cocktails Molotov para provocar incêndios em Israel – muito perto há um kibbutz, campos agrícolas, e já houve um incêndio.

Mas em mais de um mês não houve qualquer israelita ferido ou atingido pelos palestinianos. O argumento de que a marcha é pacífica ganha também força porque os manifestantes estão desarmados. Não houve qualquer disparo de armas ou rockets contra Israel.

O que argumenta Israel para disparar sobre manifestantes desarmados?

Israel diz que o Hamas está a aproveitar as manifestações para tentar que militantes cheguem perto da barreira, a ultrapassem, e se infiltrem em Israel para levar a cabo ataques. O movimento já o fez, através de túneis, no passado, por exemplo com a captura do soldado Gilat Shalit em 2006 (que cinco anos mais tarde foi libertado no âmbito de um acordo que levou à libertação de mais de mil presos palestinianos, um deles Yahya Sinwar, homem forte do Hamas em Gaza).

Israel argumenta que não pode permitir que ninguém passe a barreira porque poria em causa a segurança das comunidades israelitas perto.

Qual a reacção internacional?

Os EUA apoiaram o direito a Israel se defender, mas a maioria dos países da União Europeia pediram “proporcionalidade” na resposta. As organizações de direitos humanos reagiram com duras críticas: “O simples facto de se aproximar de uma vedação não é uma acção letal, que seja uma ameaça para a vida de alguém, por isso não deve ter como resposta um tiro”, disse o porta-voz da ONU Rupert Colville. “A força letal [usada por Israel] deve ser o último, e não primeiro, recurso”.

A Amnistia Internacional disse que em alguns casos o exército israelita “cometeu o que parecem ter sido mortes intencionais", e que se for o caso, "constituem crimes de guerra”. Só na segunda-feira morreram 60 pessoas - nas sextas-feiras anteriores tinham morrido, no total, mais de 40. Entre os milhares de feridos, centenas foram atingidos por balas reais.

Qual a posição da Fatah e dos palestinianos na Cisjordânia?

A Fatah apoiou a marcha, como todas as facções palestinianas, numa rara iniciativa unânime (devida provavelmente ao grande apoio popular da Marcha no território). Mas até agora houve poucos protestos na Cisjordânia no âmbito da Marcha do Retorno ou em solidariedade com os mortos e feridos de Gaza.

O que se pode seguir?

O Hamas pediu uma “intifada do retorno”, que seria uma terceira intifada (revolta) depois da primeira, conhecida como “das pedras” e da segunda, de Al Aqsa, marcada por atentado suicidas. Ao movimento interessa negociar um alívio do bloqueio e não provocar uma guerra – as três guerras que o território teve (2009, 2012 e 2014) acabaram com milhares de mortos e cada vez mais destruição; como o bloqueio impede a entrada de materiais para a reconstrução, tudo se torna ainda mais difícil.

mariajoaoguimaraes@público.pt

ONU abre investigação à conduta israelita nos protestos em Gaza

PALESTINA
Público
18 de Maio de 2018, 18:30 
O responsável pelos direitos humanos da ONU disse que a acção das autoridades israelitas, que causaram a morte a mais de cem palestinianos, foi “totalmente desproporcionada”.

O Conselho de Direitos Humanos da ONU deu luz verde à abertura de uma investigação à forma como as forças de segurança israelitas dos protestos organizados pelos habitantes da Faixa de Gaza e que causou 106 mortos desde 30 de Março  - só num dia, o da inauguração da embaixada dos EUA em Jerusalém, 60 foram mortos.

O alto-representante das Nações Unidas para os direitos humanos, Zeid Raad al-Hussein, considerou a acção das forças israelitas “totalmente desproporcionada”, acrescentando que há “poucas provas” de que as autoridades tenham tentado minimizar o número de vítimas - apesar de os EUA defenderem que Israel actuou com "moderação".

Hussein disse que a resposta israelita aos protestos pode ter incluído “execuções intencionais”, o que representa uma violação da Quarta Convenção de Genebra, que protege civis em territórios ocupados.
Manifestação na Cidade do Cabo de solidariedade com a Palestina; a África do Sul retirou o seu embaixador de Israel, em protesto contra a violência usada

O dirigente dirigiu também um apelo para o Governo israelita para que acabe com a ocupação dos territórios palestinianos. 
Os habitantes de Gaza “estão, essencialmente, presos numa lixeira tóxica desde o nascimento até à morte, privados de dignidade, desumanizados pelas autoridades israelitas a um ponto em que parece que os responsáveis não consideram que estes homens e mulheres têm direito, bem como todas as razões, para protestar”.

“Acabem com a ocupação e a violência e a insegurança irão desaparecer quase por completo”, acrescentou.

Numa sessão convocada por vários Estados árabes, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou o “envio urgente de uma comissão de inquérito internacional e independente” para apurar potenciais abusos cometidos pelas forças israelitas. 
A resolução foi rejeitada pelos EUA e pela Austrália, apoiada por 29 dos 47 membros deste órgão. 
Catorze países, incluindo o Reino Unido, a Alemanha e o Japão, abstiveram-se.

Esta sexta-feira houve manifestações de apoio aos palestinianos e condenação de Israel em vários países muçulmanos. 
Em istambul, na Turquia, o Presidente Recep Tayyip Erdogan, que tem criticado alto e bom som Israel, participou no protesto  pediu a todo o mundo muçulmano que apoie os muçulmanos face ao que classificou como a crueldade israelita. 
Criticou tanto os Estados Unidos com a ONU por causa da morte dos manifestantes em Gaza.

Erdogan é um populista com raízes no islão político, que descrevem a acção do exército israelita como um "genocício" e chamou a Israel "um Estado terrorista".

Uma geração a tentar sair de Gaza para dizer: "Sou de Gaza"

REPORTAGEM
Maria João Guimarães
em Gaza 27 de Maio de 2018, 6:32 
O quotidiano de Gaza é definido pelos limites do território. 
Mas no meio da destruição e da densidade urbana, a Internet funciona. 
A ligação ao exterior traz possibilidade de trabalho, e há startups a sair do grupo dos “empreendedores mais duros” do mundo.

Hala Olwan e Iyad Altahrawi são jovens e ambiciosos num lugar de enormes dificuldades para quem é jovem e ambicioso: a Faixa de Gaza, um pequeno território cercado, de onde é difícil (alguns dirão: quase impossível) sair, onde os bens que entram são restritos e rigorosamente revistos, onde há electricidade apenas quatro horas por dia, onde quem governa é o movimento islamista Hamas.

Hala sente que a sua vida é ainda mais complicada por ser mulher. 
Mas tem um plano e está a segui-lo com rigor. 
Vai fazer “tudo o que conseguir, e ainda “mais um pouco” para tentar “realizar um sonho quase impossível”: sair de Gaza e conseguir um emprego fora.

Já Iayd fez o percurso de sonho de Hala e regressou: saiu para estudar nos EUA e na Alemanha, trabalhou em Frankfurt, mas largou um emprego para voltar, ajudar e trabalhar com os “empreendedores mais duros do mundo”.

Iyad Altahrawi está no espaço dos Gaza Sky Geeks, uma incubadora de startups, academia de código, aconselhamento a freelancers e espaço de coworking, um oásis de electricidade, energia e optimismo no meio de Gaza. 
A decisão que tomou é sempre questionada — a maioria das pessoas está a tentar fazer o oposto. 
Iyad não desvaloriza as dificuldades, nem para si próprio — “É verdade que às vezes estou encurralado em Gaza e não consigo sair” — nem para o trabalho. 
“Trabalhamos num ambiente muito incerto”. 
Mas desde que regressou, há mais de um ano, nunca se arrependeu, garante.
Escritórios do pólo Gaza Sky Geeks 

“Gosto de acordar e ir para o trabalho todos os dias”, sublinha. 
“As pessoas são muito activas e ambiciosas. 
Toda a gente está a tentar conseguir chegar a qualquer lado”, diz. 
Nos Gaza Sky Geeks tem possibilidade de ajudar e fazer mesmo a diferença. 
“Este é um local de esperança e ambição.”

A um sábado às 9h30 da manhã (é o segundo dia do fim-de-semana na região) já há uma série de pessoas sentadas na sala comum de coworking, de café e computador à frente. 
O espaço tem quadros com frases motivadoras de figuras inspiradoras de Harry Potter a Rocky Balboa (“Não é uma questão de quão forte consegues bater, é quão bem consegues aguentar ser atingido e continuar em frente”).

O caos de Gaza, as buzinas e burros, o pó e os checkpoints do Hamas ficam lá fora. 
Aqui há um bulício, mas mais organizado: “Não trabalhes duro, trabalha de forma inteligente”, diz outro cartaz. 
O inglês é a língua franca, mas há também informação em árabe.

Fazer muito com pouco

Iyad Altahrawi é responsável pelo programa de incubação e aceleração nos Gaza Sky Geeks e trabalha de perto com as equipas de startups e mentores. 
Está prestes a começar um programa de aceleração de 16 semanas com workshops, metas semanais, e um dia de demonstração para apresentação a investidores.

A Internet é uma das infraestruturas boas de Gaza, o território tem muitos jovens qualificados. 
O programa Gaza Sky Geeks (GSG) começou em 2011, com financiamento da organização de ajuda dos EUA Mercy Corps e da Google, para aumentar o conhecimento de tecnologia, e foi tendo cada vez mais ofertas e programas, para aproveitar o potencial do trabalho em software. 

Iyad explica que Gaza tem potencial, por ter grande “talento tecnológico”, de se tornar um exportador de trabalho na área como é a Índia. 
A dificuldade em trabalhar com hardware (quase nada entra em Gaza; apesar disso, há uma série de pessoas a trabalhar com impressoras 3D, contornando a falta de materiais com peças antigas e vídeos de instruções do YouTube) também leva a que a maior parte das pessoas da área se dediquem antes ao software.

E com os GSG a conseguirem ter pessoas a participar em competições internacionais e ganhar prémios, Iyad garante: “Tenho a certeza que lá fora somos conhecidos pelo nosso trabalho.”

Mas nem tudo o que é virtual funciona só em meio virtual. 
Se é possível contrariar o não ter matérias primas oferecendo serviços, a dificuldade em viajar afecta muito as hipóteses de crescimento. 
É que os donos do dinheiro “não investem em ideias”, diz Iyad, querem sim “conhecer as pessoas, ver como trabalham”. 
Existe o Skype, mas neste caso não funciona.

Muitas vezes há oportunidades fora, mas o ritmo das autorizações de Israel é incomparavelmente mais lento do que o ritmo das oportunidades. 
E do Egipto é ainda mais incerto. 
Os dois países bloqueiam o território invocando razões de segurança; organizações de defesa dos direitos humanos dizem que o bloqueio é ilegal e que serve como “castigo colectivo”.

Face a tudo isto, importa “nunca desistir”, diz Sara Alafifi, do programa de mentores e comunicação. 
Mesmo que a taxa de saída dos empreendedores para mostrar trabalho, ou de formandos para estágios em empresas internacionais, seja “de 5%”, eles vão tentar sempre aumentá-la. 
Mesmo que não haja lógica aparente nas decisões, e que a saída de uma pessoa possa ser aceite numa vez e rejeitada na seguinte, “vamos aprendendo”.
É Sara Alafifi que diz que é em Gaza que estão “os empreendedores mais duros” do mundo, porque estão habituados a trabalhar num local onde tudo pode acontecer. Iyad Altahrawi é responsável pelo programa de incubação e aceleração nos Gaza Sky Geeks 

A aposta é na maior antecedência possível, e na flexibilidade de todos — “nem que seja preciso adiar”. 
Por exemplo, recentemente a Google aceitou adiar seis meses um estágio de um formando dos GSG até chegar a autorização para a viagem. 
Acabado o estágio, novo problema — o regresso também teve de ser adiado (as entradas são quase tão incertas quanto as saídas). 
Mas o estágio foi feito.

Outro problema é a falta de opções de pagamentos: o PayPal, sistema quase universal, não opera na Palestina.

Por isto e por tudo o resto, explica Sara Alafifi, é que aqui estão “os empreendedores mais duros” do mundo. 
Porque estão habituados a trabalhar num local onde tudo pode acontecer, a contornar todos os imprevistos, a encontrar uma solução para todos os problemas. 
O chavão de não haver dificuldades e sim desafios a superar é verdadeiro aqui, todos os dias.

Mas também porque é possível trabalhar arduamente, ser óptimo, e perder uma ou várias oportunidades. 
É preciso saber lidar com a incerteza, com a frustração. 
“Fazes o mesmo que pessoas em todo o mundo estão a fazer — e devia estar a resultar. Mas estás em Gaza, por isso tens de trabalhar mais. 
E ter paciência”, explica Sara Alafifi.

Mulheres na liderança

Sara nota que em todo o mundo as mulheres trabalham mais e em Gaza trabalham ainda mais. 
Mas aqui nos Gaza Sky Geeks, “se há coisa que não há, é falta de ajuda para mulheres”, sublinha. 
Elas são 53% em todos os programas, e a percentagem sobe na parte das startups: 58% são fundadoras ou parte das equipas.

Os casos de maior sucesso saído dos GSG são startups de mulheres — Nour Abuzaher é uma delas, a sua empresa MomyHelper, de ajuda a mães árabes, que obteve um segundo lugar numa competição de startups em Istambul (para onde teve autorização de Israel para ir — já para outro concurso na Califórnia não conseguiu) e financiamento de uma business angel (como são chamados investidores relativamente pequenos) do Dubai.

Nour teve a ideia para um serviço de aconselhamento de mães árabes depois de ser mãe. “Na altura estava fora de Gaza, não estava perto da família, e não sabia lidar com o meu bebé — queria fazer tudo o possível para dar tudo ao meu pequenino”, conta. 
Começou a partilhar no Facebook algumas das ideias para o seu “pequenino”, como chama sempre ao filho (hoje com três anos). 
Recebeu muitos comentários e mensagens privadas de mães que não conhecia a pedir a sua opinião para dificuldades e problemas. 
“Eu não podia responder, não sou especialista”, nota. 
Percebeu que havia ali uma necessidade. 
Leu que as mães árabes têm uma percentagem de depressão comparativamente alta. 
E que apesar de haver rede e de apoio familiar, o mundo já não é o mesmo do da sua mãe e avó.

Assim começou a trabalhar numa aplicação para aconselhamento profissional fácil e discreto para mães árabes — telefónico, sem imagem, o que é importante sobretudo se o especialista for um homem. 
A empresa foca-se no mercado do Médio Oriente e Norte de África, mas Nour conta que mesmo sem ter esse mercado como target, tem utilizadoras da Alemanha ou Áustria.

Nour sublinha que muitas mulheres sempre trabalharam em Gaza — embora as profissões mais típicas fossem como professoras ou enfermeiras. 
Mas “a situação mudou muito nos últimos cinco anos”, explica. 
As dificuldades económicas fizeram com que muitas famílias já não vejam com maus olhos que as mulheres trabalhem e ganhem dinheiro. 
“Cada vez há mais mulheres a sair, trabalhar, fazer voluntariado — há uma percentagem que não pode, é verdade, mas é cada vez mais pequena.”
No pólo tecnológico Gaza Sky Geeks as mulheres estão em maioria e lideram as startups com maior sucesso

Voltando a Sara al-Afifi e à sua tour algo acelerada de tudo o que os Gaza Sky Geeks têm para oferecer, ela sublinha a parte direccionada para as mulheres: clubes de código para mulheres (“a maioria não é encorajada na universidade a seguir esta via), reuniões regulares com mulheres que têm startups, brunch às segundas-feiras com mulheres inspiradoras e sempre que há mentoras internacionais também é organizado um encontro. “Algumas das visitantes internacionais ficam espantadas e dizem que aqui é melhor para as mulheres do que em Silicon Valley”, diz Sara. 
“Os homens é que às vezes acham que estão a ser discriminados.”

Uma cerimónia à americana

A Internet é o trabalho de uns, mas é também uma linha de ligação ao exterior.

A pouca distância da sede dos Gaza Sky Geeks está o café Al-Baqa. 
É uma curtíssima viagem de carro, que pode ser chamado com uma app, que permite partilhar viagens com amigos. 
“O seu capitão chegou”, anuncia a app — desenvolvida por uma startup saída dos Gaza Sky Geeks. 
Da janela do carro vêem-se os muros cheios de graffiti, a cúpula dourada da mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém, desenhos alertando para o perigo de colisões nos cruzamentos, onde se amontoam carros e carroças e se buzina para passar.

O café é uma grande esplanada sobre o mar e vai enchendo à medida que a tarde passa com grupos de amigos que se encontram. 
Hoje, a estudante Mais Abu Shawish tem um sorriso especial quando anuncia: “Tive o meu último exame: finalmente acabei e posso fazer o que quiser!”, diz. 
“Estava mesmo stressada”, acrescenta, deixando-se cair na cadeira e pedindo um sumo cor-de-rosa, que condiz com o seu hijab florido.

Mais (lê-se Maiz) tem 23 anos e está a acabar o curso de inglês e francês na Universidade al-Azhar — a cerimónia de fim de curso, à americana, ainda está para vir: centenas de alunos vestirão o seu fato com um pormenor de padrão de lenço palestiniano, e chapéu e tudo, para receber os diplomas. 
O contraste entre a cerimónia e o muro da Universidade é grande: lá foram sendo pintados os retratos dos manifestantes mortos por atiradores furtivos israelitas nos protestos da Marcha do Retorno, que começaram a 30 de Março. 
O muro só teve espaço para os primeiros — acabaram por morrer 110 manifestantes, a maioria dos tiros (o Exército disse que atingiria quem quer que se aproximasse da barreira que divide Gaza de Israel).

Mesmo antes de ter o diploma na mão, a prioridade de Mais é trabalhar. 
“Preciso de ser independente financeiramente — explica —, porque já tive uma oportunidade de estudar fora e os meus pais não me deixaram”. 
Nem todas as famílias aceitam que as jovens mulheres viajem sozinhas. 
Se vai resultar ou não, não faz ideia. 
Ela oscila entre o pessimismo (“não sei como vai ser, parece que as portas estão todas fechadas”) e o optimismo (“talvez um dia consiga fazer muita coisa!”).

O futuro, Mais sabe que vai ser diferente do que é hoje. 
“Nada fica igual. 
Não quer dizer que vá ficar melhor, mas igual, não fica”, garante. 
Esta estudante é “apaixonada por tudo o que é diferente” e por isso tem amigos, que fez online, em todo o mundo. 
“Os meus amigos mais próximos são os que vivem mais longe”. 
Um budista, um homossexual, em Gaza não conhece ninguém assim (pessoas de outras religiões há apenas cristãs, uma pequena minoria, “homossexuais talvez haja, sim, mas escondidos”).

Estas amizades surgiram num grupo para poliglotas de que Mais fez parte. 
Fez, no passado, porque a dada altura houve um encontro na Califórnia e ela não foi porque não conseguiu autorização, apesar da pressão de responsáveis do grupo. 
A ausência foi o motivo para a sua saída. 
“Um problema das ligações externas de Gaza é que muitas pessoas não percebem o que passamos aqui.”

Tais como: a falta de electricidade; ter electricidade em períodos de quatro horas que não são sempre os mesmos; não saber quando há ou não; não saber, desde há cerca de dez anos, o que é um fornecimento de electricidade normal. 
As implicações mais óbvias: não se pode ter nada no frigorífico que se estrague em mais do que um dia; ter problemas caso se precise de medicamentos que necessitam de frio; ter a casa às escuras à noite durante longos períodos; ou ter luz eléctrica só de madrugada; ficar frequentemente com o telefone ou o computador sem bateria; a roupa por lavar, ou por passar; ter os elevadores parados (e há muitos prédios altos em Gaza); ler ou estudar à luz de velas ou lanternas. 
Não ter alívio para o calor no Verão. 

Como “num filme de terror”

Estar em casa sem electricidade “é como estar num filme de terror”, diz Tarek, 21 anos, estudante de Engenharia, especialização em Metalomecânica, que se junta mais tarde ao grupo de Mais no café à beira-mar. 
Estar fechado, à noite, horas a fio, no escuro... “é horrível, não consigo explicar.” 
“Se é para falar de electricidade, então vamos falar do efeito psicológico”, diz por seu lado a advogada Fatima, 25 anos, que entra na conversa.

Dalia Shurrab, coordenadora de redes sociais do pólo tecnológico Gaza Sky Geeks

Fatima é uma das sortudas: tem um contrato de seis meses — “O que é o melhor que se consegue arranjar aqui.” 
Mas recusa-se a viver de acordo com o horário aleatório da electricidade. 
Se há pessoas que deixam todos os interruptores em casa ligados para terem a certeza que acordam quando regressa a luz, e que assim conseguem não falhar as quatro horas quando estas calham a meio da noite, ela faz o contrário. 
“Já não consigo lidar com isto, então, vivo sempre na escuridão”. 
“Já estou habituada, foram sete anos a estudar sem luz” — às vezes fora de casa, às vezes com uma lanterna, ou mesmo à luz de velas.

Mas isto não quer dizer que não tenha um desejo profundo de ter algumas horas mais de electricidade: “Penso muito que as coisas podem mudar. 
Sobretudo nos dias de calor, penso em como seria bom ter uma ventoinha”. 
Mas há dez anos que a situação não muda. 
Fatima fez uma única concessão à electricidade: tem um carregador de bateria para o telefone; mesmo assim, às vezes fica sem bateria.

Por isso muitos jovens estão cada vez mais tempo fora de casa, na universidade, ou no café, onde geradores vão carburando a combustível e com uma ou outra interrupção, asseguram uma quase normalidade.

Estar num destes cafés ao pé do mar, então, é a maior escapatória possível, ter um horizonte além do emaranhado de prédios da cidade. 
É uma sensação, imaginária, porque a Marinha israelita assegura o cerco no mar e nunca seria possível sair por ali. 
E como a electricidade não chega para tudo, também não chega para tratar os esgotos, e assim, muitas vezes estes são descarregados sem tratamento directamente no mar.

Mas num sítio onde não há quase nada para fazer, não ir ao mar, não deixar as crianças nadar, está fora de questão. 
O máximo é evitar as zonas de descarga directa. 
Da esplanada do Al-Baqa vêem-se os miúdos, gritos entusiasmados, a lutar com as ondas, a brincar com o vaivém do mar. 
Ao longe parece tudo bem; ao perto vê-se que a espuma não é branca.

A electricidade como tema

Muitos destes jovens falam inglês como se tivessem saído de um intercâmbio nos Estados Unidos — mesmo que a maioria nunca tenha ido a nenhum lugar a mais de 20 quilómetros de onde estão. 
A fluência que têm espelha o seu esforço — é a chave para a tão ansiada saída.

Hala Olwan é o exemplo máximo disto: tem 21 anos, estuda Literatura Inglesa na Universidade Al-Azhar, nunca saiu de Gaza, mas fala como se estivesse numa série de televisão americana, velocidade, entoação, ritmo, entusiasmos e tudo.

Hala está na sala da casa da sua família, onde hoje estão também a mãe, os quatro irmãos (“os macaquinhos”), e uma amiga. 
É num terceiro andar e foi possível subir de elevador porque estamos numa hora em que há electricidade. 
Enquanto falamos, a mãe serve Coca-Cola já fresca de uma hora no frigorífico, e vai supervisionando o carregar de uma bateria que parece de automóvel, e depois outra. 
Estas vão guardar alguma electricidade, que depois é usada, com um conversor, para ver televisão, carregar um telefone, ter luz para ler à noite. 
Isto diminui a vida útil dos aparelhos, mas é melhor do que só os puder usar às horas de fornecimento. 
É impossível escapar a este tema em Gaza.
Fazes o mesmo que pessoas em todo o mundo estão a fazer — e devia estar a resultar. Mas estás em Gaza, por isso tens de trabalhar mais. E ter paciênciaSara Alafifi
 Mas não é só a electricidade, e ter de planear toda a vida à volta daquelas quatro horas de energia — é ter de “lidar com as expectativas sociais em relação às mulheres”, o que é, sublinha Hala, “uma questão de cultura e não de religião” (ela usa o véu islâmico). Feminista, lança-se num desabafo sobre o poder dos homens sobre as mulheres, o facto de os maridos serem quem decide tudo, de haver violência doméstica. 
Ela não quer valer menos, não quer submeter-se, não quer ser “uma mulher em Gaza”.

“Sou muito ambiciosa”, diz, “tenho um plano, e vou fazer tudo o que puder para conseguir este sonho quase impossível” — sair de Gaza.

O plano inclui esmero no estudo — tem de ser excelente porque quer concorrer a uma bolsa e tem de estar entre os melhores para a ganhar. 
Vai procurar tudo o que é preciso saber sobre as bolsas disponíveis, cruzar toda a informação que conseguir, e vai fazer uma candidatura que lhe dê as melhores hipóteses. Não quer pôr a hipótese de não resultar.

“Nós fazemos tudo e até mais qualquer coisa”, diz, falando de si — e de repente, está a falar também dos habitantes de Gaza em geral. 
“Passámos por três guerras e estamos a sobreviver.” 
Olha para a amiga, que está ao lado, toca-lhe no braço, e sai-lhe uma exclamação sentida: “Oh-my-God! 
Tenho tanto orgulho de ser palestiniana!”

Mas quer ser uma palestiniana fora. 
Às vezes demora muito tempo a ter uma ideia do que isto poderá ser. 
Abier Almasri, por exemplo, saiu de Gaza pela primeira vez aos 31 anos.

Foi há dois meses. 
Sentada num pátio de um antigo e clássico restaurante da cidade, Abier, que trabalha em pesquisa na organização de defesa de direitos humanos Human Rights Watch, ainda se emociona ao falar disso.

Contar esta história é um misturar de relatos de restrições práticas, suspenses burocráticos e sentimentos tão fortes que a fizeram rir e a seguir chorar e tudo ao mesmo tempo.

As restrições são a parte mais fácil de contar, embora leve tempo: nunca se sabe se a autorização dada por Israel se vai manter até ao momento em que se passa realmente para o lado de lá; quem sai pode levar pouco mais do que roupas (muitas pessoas optam por levar sacos de plástico transparente com roupa). 
Pasta de dentes, champô, maquilhagem: nada disto pode passar. 
Pior, para quem trabalha: não é possível levar computadores portáteis. 
No caso de Abier, como a viagem era para uma reunião da Human Rights Watch em Nova Iorque, ainda havia o visto para os EUA — que tinha de ser pedido em Amã (Jordânia) e nem acreditou quando conseguiu.

Depois vem a parte mais difícil de relatar. 
“Viajar mudou-me”, diz Abier, gestos calmos interrompidos por entusiasmos repentinos. “Porque se és daqui e viajas para outro sítio, percebes que mereces uma vida melhor”. Porque em Gaza “as pessoas estão com tanta falta de empregos, de salários, de seis ou oito horas de electricidade — já nem sequer pensamos em 24... estamos tão preocupados em ter os cuidados de saúde de que precisamos se ficarmos doentes”, diz. 
“Estamos tão ocupados com isto que nem pensamos no futuro. 
Mas nós merecemos esta vida melhor e este futuro”.

Sair é “respirar um ar de liberdade”, diz Abeir. 
“Só me apetecia dizer a toda a gente: ‘eu sou de Gaza! 
Sou de Gaza!’ “, conta, a sorrir. 
“Gravei vídeos para me lembrar da sensação. 
Não consigo descrever, é impossível pôr em palavras.”

Sair “é mágico”, dizia na esplanada Tarek, o estudante de engenharia. 
“É como se flutuasses no ar”, gesticula, com saudades.

Sair é achar estranho que lugares estejam todos iluminados durante a noite “só porque é bonito”, que não haja barulho de geradores para suprir a falta de energia, nem haver um balão do exército israelita a recolher imagens, é andar por um aeroporto e comentar que este é — “de certeza, pessoal!” — maior do que Gaza.

“Apesar de tudo isto”, dizia ainda Tarek, “Gaza não é um inferno como as pessoas possam pensar — também é bonito”. 
Aponta para o mar. 
E olhando depois as pessoas em volta no café, em conversas animadas em grupo ou em família, ou a dois, mais recatadas, termina: “O mais importante é o espírito.”

Estudo à luz de velas. Na maioria dos lares da Faixa de Gaza só há electricidade por períodos de quatro horas, que não são sempre os mesmos


maria.joao.guimaraes@publico.pt