Membros de um grupo de defesa pró-russo num posto de controle em Donetsk
REPORTAGEM
PAULO MOURA (Donetsk)
21/03/2014 - 07:32
Do Donbass, uma região
da Ucrânia onde a maioria da população fala russo, pode vir o próximo
pedido de “ajuda” a Moscovo
A população nunca tinha sentido
essa necessidade, nem a situação económica justificava agitação social.
Mas agora o medo dos “fascistas”
de Kiev, em certa medida empolado artificialmente, faz crescer o medo e a
divisão. “Tentámos criar um país, mas não foi possível”, dizem os manifestantes
na Praça Lenine.
A discussão começa todos os dias
a meio da tarde. É uma combinação de tertúlia de reformados com uma acção de agit/prop, ali junto à estátua de
Lenine, no centro de Donetsk, sob temperatura negativa. “Há dois meses, eu
daria a vida pela Ucrânia”, diz uma mulher, exaltada com as mudanças a que
tem assistido em si
própria. “Mas o que aconteceu em Maidan matou o meu amor pela Ucrânia.”
Isto não quer dizer que não seja
patriota, explica ainda a mulher, Ana Ivanova, 60 anos, professora
primária. “Sou mais patriota do
que os fascistas de Maidan.” Para ela, não há incoerência entre patriotismo e o
facto de se ter acabado de trocar de pátria. Para Valentina Kavalienka, 50
anos, professora, mas de Matemática, também não. “Já me habituei à ideia de
perder a Ucrânia”, diz ela, transformando isso num acto de coragem. “Eu não
tenho medo por mim, mas pelos nossos filhos e netos. Todas estas pessoas
choram pelo país que perderam. Mas não somos traidores.”
Ana pede para recitar um poema
que escreveu sobre a situação: “Maidan roubou a minha boa
mãe / Deu-me uma má madrasta./
Agora quero ir para casa.”
Não há slogans nem cânticos na
manifestação dos patriotas sem pátria. O grupo de menos de cem pessoas, na
maioria mulheres, nenhuma com menos de 50 anos, discute com
raiva, sobrepondo vozes e
argumentos. “Os fascistas estão a chegar. Já criaram milícias e começaram a
matar as pessoas que falam russo. Cada um de nós pode ser o próximo. Estão a
chegar, como em 1933, os fascistas”, diz Valentina Kavalienka. “Em Kiev já
estão a ensinar nas escolas que é preciso matar os 'moscal'.”
É um termo pejorativo que
designava os ucranianos que traziam o sotaque de Moscovo, por terem servido no
Exército do Império Russo. Hoje é o insulto usado para definir os ucranianos do
Leste e Sul, de origem e língua russa. Estes chamam “banderas” aos ucranianos do Ocidente, numa referência a Stepan Bandera, o líder
nacionalista que colaborou com os nazis, combatendo os russos.
“Há 24 anos que tentamos
construir um país. Mas não foi possível”, diz Valentina. “O problema começou em
1991, com o colapso da União Soviética. Nunca nos perguntaram se concordávamos.
Foi ilegal romper o acordo que existia entre as repúblicas.”
"Bomba-relógio a explodir”
Para Vladimir Viktoravich
Angelien, 60 anos, olhos de um azul muito claro, quase branco, e um barrete de
pêlo na cabeça, os acontecimentos de hoje estavam previstos há muito. “A
Galícia foi um presente envenenado”, diz ele. A região do Oeste da Ucrânia que
pertenceu à Polónia e ao Império Austríaco, até à Segunda Guerra Mundial,
possui características e valores incompatíveis com os da Ucrânia do Leste e
Sul, diz Vladimir. “Na Segunda Guerra, os habitantes da Galícia lutaram contra
os russos. Foram ensinados a odiá-los. Por isso foi um erro tê-los juntado à URSS. Foi
uma bomba-relógio, que está a explodir agora. A União Soviética mantinha as
várias nacionalidades sob controlo, vivendo em conjunto. Mas agora isso é
impossível. É uma questão de tempo, mas a Ucrânia independente está destinada a
morrer. A Ucrânia não é um país possível. Não há futuro para este país.”
A manifestação da Praça Lenine concentra-se em redor de duas
tendas montadas permanentemente, onde há bandeiras comunistas e do império
russo, e bancas com um abaixo-assinado pedindo um referendo na região do
Donbass, semelhante ao realizado na Crimeia no dia 16.
As opções seriam a anexação à Rússia, ou transformação da Ucrânia numa federação, onde cada região tivesse líderes próprios, eleitos localmente.
A
manifestação decorre todos os dias, embora só aos fins-de-semana reúna mais do
que uma centena de pessoas. Chegou ajuntar milhares e a descambar em
confrontos com os adeptos de Kiev, que provocaram pelo menos
um morto e dezenas de feridos.
Um
homem pega num megafone para fazer o “ponto da situação”. Fala de Pavel
Gubarev, o auto-intitulado “governador do povo”, que está preso desde 6 de
Março por “defesa do separatismo”. Gubarev é o líder do grupo pró-russo Milícia
do Donbass e esteve à frente do ataque ao edifício do governo regional de Donetsk, por activistas pró-russos, a 3 de Março.
“O
nosso governador do povo está doente, em coma, e os seus carcereiros não o
deixam ir para o hospital”, diz o homem do megafone. “Ele é acusado de ser
traidor. Para o actual Governo de Kiev, todos nós somos traidores e podemos também ser presos a qualquer
momento. Porque, ao contrário dos 'banderas'de
Maidan, nós não cobrimos a face. E, ao contrário deles, nós não temos armas.”
A
seguir, uma mulher lê um comunicado: “Se não nos derem ouvidos, teremos direito
de pedir ajuda à Rússia.”
Acção de agitação
Para
Kirill Melekestsev, professor de História na Universidade Nacional de Donetsk,
Gubarev está a ser transformado no líder de um movimento que tem pouco de
espontâneo. “A população é muito pouco politizada e não está nada interessada
em conflitos ou grandes mudanças. A maioria das pessoas não participa nas
manifestações, não se envolve. A situação económica não está tão má que justifique
agitação social.”
Mas há uma forte acção de
agitação para levar as pessoas a mobilizarem-se pela integração na Rússia, diz
Kirill. “Essa mistura de imperialistas russos e comunistas, que vemos ali na praça, é um pouco
estranha e improvável. É óbvio que alguém está a tentar criar um movimento. A
causa deles agora é a libertação de Gubarev, que está a ser apresentado como um
herói e um mártir. Se conseguirem, ele poderá tornar-se
numa figura aglutinadora.”
Economicamente, a região do
Donbass tem fortes ligações com a Rússia, embora seja fundamental para a
Ucrânia. As minas de carvão e as fábricas de aço produzem parte significativa
da riqueza da Ucrânia, embora os seus clientes sejam maioritariamente russos.
Nem poderá ser de outra forma, uma vez que a sua produção não cumpre os
critérios de qualidade da União Europeia, dizem os economistas na região.
E reconhecem que, com uma
exploração adequada destes argumentos, é provável que tanto russos como industriais
e trabalhadores do lado ucraniano venham a considerar a anexação do Donbass na
Rússia como do seu interesse.
Alexandra Karabenikova, 28 anos, designer
de jardins, vive há
cinco anos em Donetsk e nunca foi à Rússia, cuja fronteira fica a cerca de 200
quilómetros. “Nunca senti vontade de ir lá. Para quê?" Donetsk é uma
metrópole com mais de um milhão de habitantes, e Alexandra gosta de viver aqui.
“Há muitos parques, muita coisa para fazer”, diz ela, sentada num restaurante
enorme, repleto de jovens. Os monitores de televisão emitem videoclips de bandas russas e ucranianas. Alexandra nem sempre
distingue uns dos outros. “O que significa isso de ser etnicamente russo? Não
sei.
Quer dizer que cantam o hino
russo? Eu não sei distinguir os russos dos ucranianos”, diz ela, que tem mãe
russa e pai ucraniano
As questões identitárias só foram
exacerbadas nos últimos meses. O cariz nacionalista ou fascista que assumiu a
revolução da Maidan de Kiev assustou os russos das regiões de Donetsk, Karkhiv,
Dnepropetrovsk, tal como aconteceu com os da Crimeia. Em Donetsk, cerca de 40%
da população tem origem russa, mas são mais de 60% os que têm o russo como
primeira língua.
As declarações contra os russos,
contra os “moscal”, feitas pelas novos governantes de
Kiev lançaram o medo nalgumas franjas da população. O fantasma dos “banderas” e dos fascistas foi crescendo, em grande medida empolado
artificialmente. Segundo as autoridades de Kiev, por obra dos serviços secretos
russos.
As claques de futebol do Shakhtar Donetsk
É difícil distinguir informação e
rumor, quando se fala da presença na região de milícias pró-Maidan,
constituídas por elementos do Sector Direito e outros grupos radicais. É
verdade que os grupos mais visíveis de activistas pró-Ucrânia foram
constituídos pelas claques de futebol do clube Shakhtar Donetsk.
O seu estilo violento e
fascizante não ajudou a dissipar os medos da comunidade russa.
Os líderes das claques e do clube
recusaram-se a falar com o
PÚBLICO, industriados que foram a remeterem-se ao silêncio, depois de terem
sido acusados de provocar reacções violentas do sector russo. Mas o mal estava
feito. As milícias pró-russas organizaram-se e criaram piquetes e checkpointspor toda a região.
Na estrada que liga Donetsk à
fronteira russa, junto à povoação de Iasinovatski, dezenas de activistas pró-russos
criaram uma barreira, em colaboração com a polícia local, que está, aos olhos
de todos, ao serviço dos russos. “Estamos aqui dia e noite para impedir que os
fascistas do Oeste se aproximem”, diz Giorgi, 33 anos, que pernoita numa tenda
à beira da estrada. “Os nossos antepassados lutaram contra o Ocidente, agora o
Governo de Kiev é amigo do Ocidente”, diz Giorgi. E outro miliciano acrescenta:
“O Governo de Donetsk tem de ser eleito pelo povo.”
Há dias, uma coluna de tanques do
Exército ucraniano avançou pela estrada em direcção à fronteira, mas foi detida
aqui. “Não temos armas, mas bloqueámos a estrada. Obrigámos os tanques a
voltarem para trás.”
Os elementos da milícia de
“autodefesa” dizem-se “patriotas” e também “mais russos do que ucranianos”.
Dizem que estão “em contacto com os russos” e “prontos a ajudá-los, quando eles passarem
a fronteira, para virem proteger a população eslava do Donbass”.
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