Manifestação pró-russa em Sebastopol, na Crimeia VIKTOR drachev/afp
PAULO MOURA (em Sinferopol) 12/03/2014 - 20:00
Televisões ucranianas foram silenciadas pelo novo poder na
península que se quer entregar à Rússia. Os jornalistas lêem as notícias que
lhes põem à frente e são impedidos de cobrir os acontecimentos. "Tenho
vergonha", diz uma conhecida jornalista, que agora empresta o rosto à
propaganda oficial.
Há mais do que uma
forma de silenciar a verdade. Elvira e Natasha sabem hoje isso, cada uma à sua
maneira. São ambas pivots em canais de televisão da Crimeia. Elvira na TV Mar
Negro, uma estação privada ucraniana, com sede em Kiev, Natasha na CrimTV, um
canal estatal.
À entrada do edifício da TV Mar Negro há dois aquários, um póster
de Iulia Timoshenko, a líder do partido ucraniano Pátria, e um monitor com a
emissão do canal. Mas a imagem que surge no ecrã é a do Rossyia 24, um canal
russo.
Elvira Jallal, 21
anos, é pivot dos noticiários e repórter
especializada em crimes e conflitos. Diz ser jornalista por vocação, estudou
Comunicação Social na Universidade de Teveride, em Simferopol. É filha de mãe
ucraniana e pai afegão, tem olhos escuros e a pele clara, e é o rosto da TV do Mar Negro.
Há duas semanas, maquilhou-se, sentou-se como habitualmente no estúdio do
3º andar para ler as notícias, quando reparou que no monitor onde
deveria aparecer o genérico que precede a abertura do jornal havia uma imagem
estranha.
“Quando olhei, vi que
no ecrã estava um programa do Rossyia 24. O novo governo da Crimeia cortou a
nossa emissão, sem avisar. Simplesmente bloqueou o sinal da antena”. A TV Mar Neero continuou a emitir apenas por
cabo e satélite. Mais de 50% da audiência ficou sem o canal.
Os 11 jornalistas dos
estúdios de Sinferopol continuaram a trabalhar, apesar de já não serem vistos em antena
aberta. Mas mesmo assim as autoridades tentam bloquear-lhes o acesso a todos os
acontecimentos relevantes da península. “As milícias russas são muito
agressivas connosco”, diz Elvira. “Bloqueiam-nos a entrada em todo o lado. Há
dias fui fazer uma reportagem à zona de entrada na península. Fomos barrados
num checkpoint, e quando viram quem éramos,
fizeram-nos entrar num carro, com um homem armado, levaram-nos
para um local onde
nos fizeram esperar meia-hora, até receberem ordens. Depois transportaram-nos
para longe dali”.
“Não nos deixam fazer nada”
Quando o representante do secretário-geral da ONU foi
ameaçado e obrigado a refugiar-se num café em Simferopol, Elvira
correu para lá. Uma vez no local, proibiram-na de falar com Robert Serry.
Ameaçaram tirar-lhe a câmara e obrigaram-na
a afastar-se.
“Os grupos de auto-defesa não me deixam fazer nada. Tenho
muito medo. Eles agridem os jornalistas, apreendem o material. E está cada vez
pior, em cada dia”.
Quanto ao referendo do próximo domingo, as autoridades já
fizeram saber aos jornalistas locais que a cobertura vai ser proibida.
“Disseram-nos que não poderemos filmar nos locais de voto, nem entrevistar
ninguém”, diz Elvira. “Por mim, também não tenho vontade de
noticiar o referendo. Tal como tenciono boicotar a votação, por considerar o
referendo ilegal, também gostaria de boicotar a cobertura. Mas farei o que os
meus editores decidirem”.
Elvira não se imagina a fazer jornalismo numa Crimeia
governada por Moscovo. “Eu sei como é o jornalismo na Rússia. Por isso, se a
anexação se concretizar, já estou a preparar o meu portfolio, para tentar encontrar trabalho noutras regiões da
Ucrânia, ou na Europa. Tenho muita pena, porque gostava de trabalhar aqui”.
Antes, praticava-se na TV Mar Negro um jornalismo livre,
embora não totalmente, admite Elvira. O canal é propriedade de dois deputados
do Pátria, partido sobre o qual não convinha fazer reportagens muito negativas.
“Mas podia-se criticar, até certo
ponto. E abordar todo o tipo de temas. Agora, o que tentamos fazer é dizer a
verdade sobre o que se passa. Os canais russos mentem, manipulam, só fazem
propaganda”.
Tal como a TV Mar Negro, todos os outros canais
ucranianos, incluindo o Chanel 5 e o 1+1, foram silenciados na Crimeia,
substituídos por canais russos. A excepção foi o canal da comunidade tártara,
cuja emissão prossegue normalmente. Não se sabe porque foi poupado, nem até
quando.
O caso do CrimTV é diferente. As milícias russas vieram e
encerraram o canal por um dia. A seguir reabriram, com um novo “produtor”, e
nova “linha editorial”. O CrimTV é um canal de notícias. Como é do Estado,
mudou de mãos, como tudo o resto. Margarita, uma jornalista a quem incumbiram
de impedir o acesso de estranhos (incluindo repórteres estrangeiros) à
redacção, garante que tudo está a funcionar normalmente. E ainda declara, com
voz indignada, que quem decidiu encerrar os outros canais da Crimeia foi o
governo de Kiev, “porque já abandonou o povo da Crimeia”.
A um canto do jardim em frente do edifício, porém,
Natasha e uma amiga fumam um cigarro. Não falam muito com os outros cerca de 40
jornalistas porque, explicam, “ninguém confia em ninguém. Não queremos saber
quem é que está de um lado e do outro. Já ninguém discute nada. Estamos todos
muito cansados”.
Natasha, 28 anos, uma franja de cabelo castanho claro
cortada em linha recta sobre os olhos verdes, e maquilhada para entrar no ar, é
a do canal. Lê os noticiários de hora a hora, durante o dia inteiro.
Estudou
russo e literatura na universidade, mas optou por trabalhar em jornalismo,
desde há oito anos, por influência da irmã mais velha, também jornalista, que
trabalha em Kiev. “Este canal nunca foi totalmente livre, porque é estatal”,
diz Natasha. “Sempre houve algumas interferências. Mas era possível criticar o
Governo”. Agora, os jornalistas são obrigados a dizer o que lhes mandam.
Natasha sempre escreveu as notícias que lia. Agora lê textos que lhe são
entregues previamente escritos.
"Não concordo com o que leio"
“Não concordo com nada do que leio. Mas não posso
desobedecer, ou serei despedida. E eu não tenho outro emprego para onde ir. Sou
obrigada a aceitar. Nenhum jornalista se demitiu”. Nas notícias que lê, Natasha
é obrigada a referir-se ao governo de Kiev
invariavelmente como “fascistas” ou “nazis”. Ela que tem amigos e familiares
noutras regiões da Ucrânia, que apoiam o novo governo saído da revolta da
Maidan. É obrigada a noticiar que os “fascistas” estão a caminho para atacar os
russos da Crimeia, que os militares russos vieram para ajudar, que só o
referendo que levará à anexação os pode salvar, que as condições económicas
serão muito melhores depois da anexação, etc.
“Eu sou ucraniana. Não quero mudar”, sussurra Natasha, cujo
rosto é famoso na Crimeia. As pessoas conhecem-na e confiam nela. As suas
mentiras, sabe-o, assumem uma gravidade maior. Por isso sente que está a trair.
“Não sei o que fazer. Não posso perder este emprego. Mas tenho vergonha. O que
faria no meu lugar?”, diz ela, num esforço por se justificar, perante
jornalistas.
Depois do referendo, Natasha tenciona sair da Crimeia.
Não sabe exactamente quando, talvez no dia em que a obriguem a alterar os
documentos de identificação. O jornalismo nunca foi por aqui uma actividade
muito livre ou nobre, na generalidade dos casos. Mas o que acaba de acontecer
fez Natasha questionar-se pela primeira vez sobre a sua missão. “O que devo
fazer?”, repete ela. “O que devo fazer?”
Num gesto em tudo semelhante ao das novas autoridades
russas da Crimeia, o governo de Kiev encerrou os canais russos, que deixaram de
poder ser vistos em território ucraniano. O Rossyia 1, o Rossya24, a NTV o
Chanel1, todos eles foram cancelados, substituídos pelo sinal das estações
ucranianas, em nome da “segurança nacional”. Pelo menos na propaganda, começou
a guerra sem quartel.
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