Depois da revolução e dos mortos, os desafios do futuro
JORGE ALMEIDA FERNANDES
09/03/2014 - 08:04
Após a proclamação da
independência, em Dezembro de 1991, os ucranianos apostaram ser o “interface”
entre a Rússia pós-soviética e a nova Europa saída da Guerra Fria, conjugando
uma identidade europeia com os laços históricos e económicos que os ligam à
Rússia. O lema passou a ser: “Dentro da Europa e perto da Rússia.” Os povos não
escolhem a sua geografia nem os vizinhos.
Os desafios que agora se colocam
à Ucrânia são desesperadamente mais difíceis do que destituir Viktor
Ianukovich. Kiev conta com os ocidentais para travar Moscovo, pelo menos nos
próximos tempos. Mas não confiam cegamente. Conhecem a fraqueza política da UE,
sentem que os americanos estão longe e a Rússia mesmo ao lado. Levam a sério os
discursos de Moscovo considerando a “perda” da Ucrânia como uma “ameaça à sua
segurança nacional”, porque este é um sentimento largamente partilhado pelos
russos. Sabem ainda que o projecto de uma união aduaneira, antecâmara da União
Euro-asiática que integraria Kiev no espaço de influência russo, é a trave
mestra da política de Vladimir Putin para restabelecer a “potência russa”. E
não crêem que ele desista de interferir na Ucrânia.
Este não é o seu único problema.
O mais urgente é a economia, à beira de um colapso total. O sistema político —
a “democracia dos oligarcas” — está esgotado e bloqueará quaisquer reformas. O
novo e frágil governo conseguiu uma pausa de estabilidade, atenuando as tensões
entre o Leste e o Oeste do país. Perdida a Crimeia, a prioridade centra-se nas populações
russófonas do Leste, onde é forte a influência de Moscovo. Aguarda-se, enfim, a simbólica
assinatura do acordo de associação com a UE e a “injecção” de empréstimos
internacionais para evitar a bancarrota.
Mas continuará em aberto uma
questão chamada Ucrânia.
Rússia e Europa
O primeiro dado a ter
em conta é a estratégia tradicional de controlo da Ucrânia pela Rússia. Estão
na memória espectaculares acções punitivas como o corte do gás ou a “guerra
alfandegária” imposta no ano passado para travar o acordo com a EU.
Estes são
instrumentos de excepção. A norma era outra: manter uma “Ucrânia fraca”, com um
elemento de “instabilidade controlada”, escreve Andrew Wilson, do Conselho
Europeu de Relações Externas. A ajuda russa foi sempre para “manter o regime a
flutuar”, reforçando a sua dependência.
Dois especialistas
polacos, Wojciech Kononczuk e Tadeusz Olszanki, faziam em Janeiro a mesma
análise: “Uma Ucrânia autoritária, corrupta, opaca e politicamente instável,
incapaz de fazer as reformas estruturais de que desesperadamente necessita, é amelhor garantia de que o país ficará fora da
órbita da UE — ou até na esfera de influência da Rússia.”
“Todas as alavancas
da Rússia na Ucrânia foram inteiramente fabricadas por ucranianos”, confirmam
Samuel Charap e Keith Darden, do Instituto Internacional de Estudos
Estratégicos, de Londres. “A eficácia da coerção económica [de Moscovo] não
deve ser creditada à força russa; é antes o reflexo da completa falência da
elite ucraniana para reformar a economia do país.”
A economista ucraniana
Olga Shumylo-Rapiola explicou que a recusa da adesão à Parceria Oriental da UE,
em Novembro, não se deveu apenas às pressões russas mas aos oligarcas: “Kiev
não quer reformas.” Os grandes oligarcas, como Rinat Akhmetov e Dmitro Firtach,
os principais financiadores do Partido das
Regiões, de Ianukovich, hesitaram mas acabaram por recusar: não lhes
interessava mudar o quadro legal dos negócios e, sobretudo, detestavam a
palavra “transparência”. Nos índices mundiais da corrupção, a Ucrânia surge no
144o lugar — em 177.
A “atracção europeia” não se deve
apenas a uma partilha de valores e a uma vontade de maior independência. A
maioria dos ucranianos admira e inveja a recuperação económica da Polónia ou da
República Checa. Mas a Ucrânia não fez as reformas do Leste europeu após a
queda do comunismo.
Estas reformas não são as da
crise do euro. Trata-se da reestruturação da economia e das suas regras — e
será muito duro. Uma sondagem feita em 2013 dava resultados interessantes. A
adesão à união aduaneira russa ou ao acordo de associação com a UE partiam o
país ao meio: 37% para a primeira opção, 39 para segunda. O apoio à primeira
opção era esmagador no Leste. A escolha da UE era muito alta na Ucrânia ocidental
e central.
No Leste, não pesavam apenas os
laços com a Rússia. As pessoas temiam que as reformas levassem ao
desmantelamento de várias indústrias. A economia é fortemente subsidiada. “Não
estamos contra a UE mas não podemos aceitar as condições que nos põem de cortes
salariais e redução de postos de trabalho, combinados com uma alta dos preços”,
dizia um trabalhador a um jornal.
Oligarcas
“É impossível compreender a
Ucrânia moderna sem compreender a teia de dependências entre as elites
políticas e o mundo dos negócios”, explica Wojciech Kononczuk. “A interacção
entre os interesses dos oligarcas é o verdadeiro mecanismo que molda a política
ucraniana.” Os oligarcas são, inclusivamente, mais relevantes na cena política
do que os próprios políticos.
Não se limitam a financiar os
partidos e políticos. A sua opinião é determinante na tomada de dicisões. “É
difícil identificar uma força política importante que esteja interessada na
‘desoligarquização’ da Ucrânia e — o que é crucial — tenha instrumentos para
levar a cabo tal mudança.”
O que se passou com a queda de
Ianukovich é a melhor ilustração. Os oligarcas deixaram-no cair seus
interesses. Rinat Akhmetov deu o exemplo, apelando à defesa da “integridade
territorial da Ucrânia”. Escreveu: “A unidade da sociedade, do mundo dos
negócios e das autoridades é a nossa força.”
Logo a seguir à ocupação da
Crimeia, foi selada uma aliança entre o novo governo e os oligarcas. Não foi
surpresa, foi uma viragem. Iulia Timochenko, acabada de sair da prisão, também
ela antiga oligarca, foi o pivot da manobra. Telefonou aos bilionários. O
governo, muito frágil, delegou imediatamente em grandes oligarcas o governo das
regiões mais sensíveis, sobretudo no Leste. Foi uma manobra de antecipação para
prevenir referendos regionais separatistas.
As instituições
A Ucrânia tem uma sociedade
dinâmica e culta. Mas a economia está em ruínas e muito distantes da Europa
estão as suas instituições. O actual governo é composto por políticos do
“sistema”, fiéis aos antigos hábitos, e por bandos armados. A unidade das mais
heteróclitas forças foi imposta por uma emergência nacional. Em breve se
levantará a questão da legitimidade. Os ucranianos estão cansados da corrupção,
do clientelismo e da ilegalidade que marcaram a era pós-soviética.
O movimento “Euro-Maidan”
derrubou Ianukovich mas não fez uma reforma política. Sem uma economia viável e
instituições funcionais, a Ucrânia permanecerá altamente vulnerável às
interferências de Moscovo. Anunciam-se vários riscos. Um deles é a
parlamentarização do regime por oposição ao autoritarismo de Ianukovich, o que
ameaça paralisar o governo e a tomada de decisões numa fase crucial da sua
história.
Por fim, uma má notícia para
Putin: a ocupação da Crimeia mudará o mapa eleitoral ucraniano, em favor dos
“ocidentalistas”. Resume um analista: “Se Crimeia sai da Ucrânia, a Ucrânia
afasta-se mais da Rússia.”
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