Alerta Militares ucranianos preparam a defesa da
frente leste, enquanto em Donetsk reina a divisão
Trincheiras abertas em trigais à espera dos blindados
russos
PAULO NUNES DOS SANTOS
Enviado a DONETSK
Na estreita estrada que corre ao longo de uma planície orlada por um
mosaico terroso de campos agrícolas, Ívan chega a bordo de um trator transportando grandes bidões de água para os novos inquilinos que há dias vieram perturbar a
pacatez de Andreevka, uma pequena e isolada aldeia da região de Donetsk
Obiast, no leste da Ucrânia.
Aqui, o rugir dos motores de tanques de guerra e dos geradores que
alimentam um aparatoso sistema de comunicações militares abafam agora os
bucólicos sons da vida no campo.
Dezenas de soldados ucrânia nos tentam estabelecer aqui uma linha defensiva
contra o possível ataque do poderoso exército Russo que, na última semana,
terá destacado para a zona fronteiriça a menos de 40 km de distância —, mais de 60 mil homens e abundante material
bélico.
"Deveriam estar mais além", afirma o agricultor de meia-idade,
apontando em direção às povoações vizinhas que preenchem o
horizonte. Os militares tinham tentado uns dias antes estabelecer-se a uma curta distância da fronteira, mas a população de algumas aldeias
terá bloqueado a sua passagem, com o pretexto de que a presença militar põe em
risco as suas casas e propriedades, caso as forças russas avancem sobre a
região.
“A gente dessas aldeias é uma cambada de separatistas. Estão a ser pagos
por Moscovo para criar divisões entre os ucranianos. Os soldados deveriam ter
forçado a passagem detendo quem se opusesse”, explica Ivan, a aguardar
autorização para prosseguir a curta viagem até às dezenas de lendas de
campanha, erguidas junto a uma velha mina de carvão, que servem de camaratas
aos soldados de Kiev.
Ao contrário das
povoações acusadas de, ao serviço de Putin, estarem a criar uma situação que põe em risco a
soberania do país, ainda em estado revolucionário, em Andreevka o povo recebe com agrado a presença dos
militares.
Tal como Ivan, outros vão chegando, carregados com comida, cigarros,
mantas e outros bens que servem para acomodar os defensores da nação. “Estes
são os nossos heróis", diz Alexandr Romanyuk, vereador municipal de
Mariupoi, que garante ter, durante anos, sido perseguido por ser uma voz ativa contra o regime do Presidente deposto. Vitktor
lanukovitch.
“Temos consciência de
que estes soldados não tem nem meios nem capacidade para travar uma invasão
russa. Mas é importante que estejam aqui. Faz-nos bem ao moral. Por isso temos
a obrigação de os apoiar”, explica Alexandr que vai ajudando a transferir para
uma camião militar os mantimentos que continuam a chegar numa excursão de
carros, ornados com bandeiras e faixas alusivas às cores da Ucrânia, junto às
trincheiras que meia dúzia de soldados vão agora escavando.
A pouco mais de 60 km, em Donetsk, a
cidade capital da região onde cerca de dois milhões de pessoas falam russo, o
amarelo e azul da bandeira nacional começa a ter uma presença mais escassa. Os
fantasmas da Guerra Fria têm pairado sobre a cidade desde o dia em que lanukovitch
foi afastado do poder, no final de fevereiro, e confrontos entre grupos pró e
anti-Rússia têm ocorrido esporadicamente.
Um proeminente movimento
pró-Rússia, em estado de alerta, teme "uma invasão fascista dos grupos de
extremadireita” quês acreditam estar agora no poder em Kiev e no Oeste do país.
Acantonado na famosa praça Lenine, debaixo de uma imponente estátua do histórico
líder bolchevista que dá nome ao local, o movimento prepara em segredo mais uma
ação de protesto. Ninguém sabe para quando, nem onde. Mas a policia acredita
que será no fim-de-semana e muito possivelmente passará pela tentativa de
invasão de mais um edifício governamental, para desfraldar no topo a bandeira
tricolor da Federação Russa.
Ocupações simbólicas
O palácio governamental, o edifício da administração
judicial e a sede dos serviços secretos nacionais (SUV), foram já alvos da
fúria do grupo, obrigando, desde então, a polícia de intervenção a marcar
presença, 24 horas por dia, em redor
dos edifícios para prevenir outra qualquer tentativa de ataque.
“As nossas ações são apenas
simbólicas", afirma um dos elementos do grupo, que se apresenta apenas
como Sergey. “Ao mostrar que conseguimos hastear a bandeira da Rússia nestes
locais, estamos apenas a empreender uma luta ideológica contra a junta que
tomou de assalto o poder cm Kiev”, explica, refutando a acusação de que o
grupo a que pertence tenha qualquer apoio dos serviços secretos de Moscovo. “Se
tivéssemos apoio direto de Moscovo, as nossas ações seriam elaboradas de um modo muito mais
profissional. Estaríamos agora a controlar todos os edifícios governamentais na cidade“, afirma
convicto.
Sergey explica, ainda, que apesar da sua visibilidade, o movimento
pró-Rússia aqui não está tão ativo como na Crimeia. “Sabemos
que o que aconteceu em Kiev é a história de há 70 anos a repetir-se. E é o medo
do fascismo que nos motiva a continuar aqui de forma organizada“, diz ao
apontar o facto de terem um grupo de autodefesa que chega já aos 300 elementos.
O ativista conclui, garantindo que não irão permitir
que “os invasores do oeste” tomem de assalto a praça Lenine. “Isto é o nosso
Maidan. Estamos prontos a lutar e morrer aqui”.
Fora da cidade, em Andreevka, junto a uma estátua que assinala um dos milhares
de quintas comunitárias da era soviética. Ivan despede-se dos soldados que preparam posições defensivas. Os bidões de água no atrelado
do seu trator foram já colocadas junto a uma
improvisada casa de banho perto das tendas de campanha.
Para Ivan, a lide termina por hoje. Antes de retomar o caminho de casa faz
questão de dizer que amanhã estará de volta com mais mantimentos. “Putin e os
seus homens podem invadir-nos quando quiserem. Não temos muitas tropas nem
armas, mas temos a determinação de lutar pela independência do nosso país.
Nunca em Donetsk se repetirá o que aconteceu na Crimeia. O povo não o
permitirá”!
internacional@expresso.impresa.pt
PERGUNTAS & RESPOSTAS
Pode haver invasão russa?
Concentrar 80 mil soldados e 300 tanques na fronteira, chega para
intimidar mas não garante o sucesso da invasão. As tropas especiais russas
(Spctnaz e YDV) teriam de ser apoiadas por forças de retaguarda que nem estão
mobilizadas nem têm a mesma eficácia. Num cenário provável de guerra popular
pós-invasão (como no Iraque ou na Síria) a Rússia teria de trazer para aqui
forças especiais do Ministério do Interior (VV) que lhe podem fazer falta no
Cáucaso...
Putin, novo Khrustchov?
Não tem a pulsão suicida que quase levou à guerra nuclear em 1968 (crise
dos mísseis de Cuba). Em função do seu perfil, é de esperar que tente ir o
mais longe possível numa estratégia neoimperialista, marcada pelo saudosismo
da antiga URSS, mas correndo um mínimo de riscos.
Quem tem mais a perder?
A própria Rússia! Se a intervenção soviética contra a Primavera de Praga,
em 1968, enterrou a possibilidade de um “socialismo
de rosto humano" na Checoslováquia e na própria URSS, uma invasão da
Ucrânia só exacerbaria as características latentes do regime: um estado fraco
mas tentado pela ditadura e uma dependência estrategicamente perigosa do
petróleo. Prova disso, o facto de a histeria patriótica nos media de Moscovo ter tido como
contrapartida o estrangulamento do jornalismo independente: agência Ria
Novosti, estação TV Rãín, sftio Lema.ru... Numa carta aberta a Putin, um jornalista da cidade russa de Voiogda (400
km a norte de Moscovo) pedia-lhe, ironicamente: “Caro Presidente. Acuda-nos!
Mande tropas também para aqui. Nós também somos ultramaioritariamente russos e
os nossos direitos não são respeitados. Nada funciona. Nem educação, nem
saúde, nem nada...
Há resposta europeia?
Desta vez, ao contrário da Síria e da invasão da Geórgia, sim! A novidade é ser liderada pela Alemanha (que parece ter rompido com
a tradicional abertura a Leste) e não pela França e Reino Unido. Aliás, a
França está a construir dois navios militares (projeção de forças e comando) para a Rússia e o MNE, Fabius, diz que uma eventual
revogação da encomenda só será analisada em outubro. A perspetiva de sanções
económicas assusta a oligarquia moscovita e a dependência europeia
do gás natural russo já foi maior, pelo que a chantagem via Gazprom é
ineficaz. E ontem a Ucrânia deu passos no sentido da aproximação económica à
UE,
Quem depende de quem?
Tal como a Ucrânia depende da Rússia, a Crimeia (em vias de anexação por
Moscovo) depende da Ucrânia. Nesta península, as únicas estradas (M17 e M18) dão para a Ucrânia. Seria precisa uma
ponte gigante sobre o estreito de Kerch que custaria €2150 milhões e levaria anos a erguer, 80% da água vêm da Ucrânia e sem esta não há agricultura nem
turismo. Tal como 80% da eletricidade e 70%
da comida. 60% do orçamento da Crimeia
vem de Kiev. Em 1948 o Presidente Truman tinha dinheiro e logística para a
ponte aérea que reabasteceu Berlim Oeste, cercada por Estaline. E Putin, tem? R.C. e C.P.
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