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segunda-feira, 24 de março de 2014

Trincheiras abertas em trigais à espera dos blindados russos


Alerta Militares ucranianos preparam a defesa da frente leste, enquanto em Donetsk reina a divisão

Trincheiras abertas em trigais à espera dos blindados russos

PAULO NUNES DOS SANTOS
Enviado a DONETSK

Na estreita estrada que corre ao longo de uma planície orlada por um mosaico terroso de campos agrícolas, Ívan che­ga a bordo de um trator trans­portando grandes bidões de água para os novos inquilinos que há dias vieram perturbar a pacatez de Andreevka, uma pe­quena e isolada aldeia da região de Donetsk Obiast, no leste da Ucrânia.

Aqui, o rugir dos motores de tanques de guerra e dos gerado­res que alimentam um aparato­so sistema de comunicações mili­tares abafam agora os bucólicos sons da vida no campo.

Dezenas de soldados ucrânia nos tentam estabelecer aqui uma linha defensiva contra o possível ataque do poderoso exército Russo que, na última se­mana, terá destacado para a zo­na fronteiriça a menos de 40 km de distância —, mais de 60 mil homens e abundante material bélico.

"Deveriam estar mais além", afirma o agricultor de meia-ida­de, apontando em direção às po­voações vizinhas que preen­chem o horizonte. Os militares tinham tentado uns dias antes estabelecer-se a uma curta dis­tância da fronteira, mas a popu­lação de algumas aldeias terá bloqueado a sua passagem, com o pretexto de que a presença mi­litar põe em risco as suas casas e propriedades, caso as forças rus­sas avancem sobre a região.

“A gente dessas aldeias é uma cambada de separatistas. Estão a ser pagos por Moscovo para criar divisões entre os ucranianos. Os soldados deveriam ter forçado a passagem detendo quem se opusesse”, explica Ivan, a aguardar autorização pa­ra prosseguir a curta viagem até às dezenas de lendas de campanha, erguidas junto a uma velha mina de carvão, que servem de camaratas aos soldados de Kiev.

Ao contrário das povoações acusadas de, ao serviço de Putin, estarem a criar uma situa­ção que põe em risco a sobera­nia do país, ainda em estado re­volucionário, em Andreevka o povo recebe com agrado a pre­sença dos militares.
Tal como Ivan, outros vão che­gando, carregados com comida, cigarros, mantas e outros bens que servem para acomodar os defensores da nação. “Estes são os nossos heróis", diz Alexandr Romanyuk, vereador municipal de Mariupoi, que garante ter, durante anos, sido perseguido por ser uma voz ativa contra o regime do Presidente deposto. Vitktor lanukovitch.

“Temos consciência de que es­tes soldados não tem nem meios nem capacidade para travar uma invasão russa. Mas é importante que estejam aqui. Faz-nos bem ao moral. Por isso temos a obrigação de os apoiar”, explica Alexandr que vai ajudando a transferir para uma camião militar os mantimentos que continuam a chegar numa excursão de carros, ornados com bandeiras e faixas alusivas às cores da Ucrânia, junto às trincheiras que meia dúzia de soldados vão agora escavando.
A pouco mais de 60 km,  em Donetsk, a cidade capital da região onde cerca de dois milhões de pessoas falam russo, o amarelo e azul da bandeira nacional co­meça a ter uma presença mais escassa. Os fantasmas da Guer­ra Fria têm pairado sobre a cidade desde o dia em que lanuko­vitch foi afastado do poder, no final de fevereiro, e confrontos entre grupos pró e anti-Rússia têm ocorrido esporadicamente.

Um proeminente movimento pró-Rússia, em estado de alerta, teme "uma invasão fascista dos grupos de extremadireita” quês acreditam estar agora no poder em Kiev e no Oeste do país. Acantonado na famosa praça Lenine, debaixo de uma imponen­te estátua do histórico líder bolchevista que dá nome ao local, o movimento prepara em segredo mais uma ação de protesto. Nin­guém sabe para quando, nem onde. Mas a policia acredita que será no fim-de-semana e muito possivelmente passará pela ten­tativa de invasão de mais um edi­fício governamental, para desfraldar no topo a bandeira trico­lor da Federação Russa.

Ocupações simbólicas

O palácio governamental, o edi­fício da administração judicial e a sede dos serviços secretos naci­onais (SUV), foram já alvos da fúria do grupo, obrigando, des­de então, a polícia de interven­ção a marcar presença, 24 horas por dia, em redor dos edifícios para prevenir outra qualquer tentativa de ataque.

“As nossas ações são apenas simbólicas", afirma um dos ele­mentos do grupo, que se apre­senta apenas como Sergey. “Ao mostrar que conseguimos haste­ar a bandeira da Rússia nestes locais, estamos apenas a empre­ender uma luta ideológica con­tra a junta que tomou de assalto o poder cm Kiev”, explica, refu­tando a acusação de que o grupo a que pertence tenha qualquer apoio dos serviços secretos de Moscovo. “Se tivéssemos apoio direto de Moscovo, as nossas ações seriam elaboradas de um modo muito mais profissional. Estaríamos agora a controlar to­dos os edifícios governamentais na cidade“, afirma convicto.

Sergey explica, ainda, que ape­sar da sua visibilidade, o movi­mento pró-Rússia aqui não está tão ativo como na Crimeia. “Sa­bemos que o que aconteceu em Kiev é a história de há 70 anos a repetir-se. E é o medo do fascis­mo que nos motiva a continuar aqui de forma organizada“, diz ao apontar o facto de terem um grupo de autodefesa que chega já aos 300 elementos.

O ativista conclui, garantindo que não irão permitir que “os in­vasores do oeste” tomem de as­salto a praça Lenine. “Isto é o nosso Maidan. Estamos prontos a lutar e morrer aqui”.

Fora da cidade, em Andreev­ka, junto a uma estátua que assi­nala um dos milhares de quintas comunitárias da era soviética. Ivan despede-se dos soldados que preparam posições defensi­vas. Os bidões de água no atrela­do do seu trator foram já coloca­das junto a uma improvisada ca­sa de banho perto das tendas de campanha.

Para Ivan, a lide termina por hoje. Antes de retomar o cami­nho de casa faz questão de dizer que amanhã estará de volta com mais mantimentos. “Putin e os seus homens podem invadir-nos quando quiserem. Não temos muitas tropas nem armas, mas temos a determinação de lutar pela independência do nosso pa­ís. Nunca em Donetsk se repeti­rá o que aconteceu na Crimeia. O povo não o permitirá”!

internacional@expresso.impresa.pt

PERGUNTAS & RESPOSTAS

Pode haver invasão russa?
Concentrar 80 mil soldados e 300 tanques na fronteira, chega para intimidar mas não garante o sucesso da invasão. As tropas especiais russas (Spctnaz e YDV) teriam de ser apoiadas por forças de retaguarda que nem es­tão mobilizadas nem têm a mes­ma eficácia. Num cenário prová­vel de guerra popular pós-invasão (como no Iraque ou na Síria) a Rússia teria de trazer para aqui forças especiais do Ministério do Interior (VV) que lhe podem fa­zer falta no Cáucaso...

Putin, novo Khrustchov?
Não tem a pulsão suicida que quase levou à guerra nuclear em 1968 (crise dos mísseis de Cuba). Em função do seu perfil, é de es­perar que tente ir o mais longe possível numa estratégia neoimperialista, marcada pelo saudo­sismo da antiga URSS, mas cor­rendo um mínimo de riscos.

Quem tem mais a perder?
A própria Rússia! Se a interven­ção soviética contra a Primavera de Praga, em 1968, enterrou a possibilidade de um “socialismo de rosto humano" na Checoslo­váquia e na própria URSS, uma invasão da Ucrânia só exacerba­ria as características latentes do regime: um estado fraco mas tentado pela ditadura e uma de­pendência estrategicamente pe­rigosa do petróleo. Prova disso, o facto de a histeria patriótica nos media de Moscovo ter tido como contrapartida o estrangu­lamento do jornalismo indepen­dente: agência Ria Novosti, esta­ção TV Rãín, sftio Lema.ru... Nu­ma carta aberta a Putin, um jor­nalista da cidade russa de Voiogda (400 km a norte de Moscovo) pedia-lhe, ironicamente: “Caro Presidente. Acuda-nos! Mande tropas também para aqui. Nós também somos ultramaioritariamente russos e os nossos direi­tos não são respeitados. Nada funciona. Nem educação, nem saúde, nem nada...

Há resposta europeia?
Desta vez, ao contrário da Síria e da invasão da Geórgia, sim! A no­vidade é ser liderada pela Alema­nha (que parece ter rompido com a tradicional abertura a Les­te) e não pela França e Reino Uni­do. Aliás, a França está a construir dois navios militares (projeção de forças e comando) para a Rús­sia e o MNE, Fabius, diz que uma eventual revogação da encomen­da só será analisada em outubro. A perspetiva de sanções económi­cas assusta a oligarquia moscovi­ta e a dependência europeia do gás natural russo já foi maior, pe­lo que a chantagem via Gazprom é ineficaz. E ontem a Ucrânia deu passos no sentido da aproxi­mação económica à UE,

Quem depende de quem?

Tal como a Ucrânia depende da Rússia, a Crimeia (em vias de anexação por Moscovo) depen­de da Ucrânia. Nesta península, as únicas estradas (M17 e M18) dão para a Ucrânia. Seria preci­sa uma ponte gigante sobre o es­treito de Kerch que custaria €2150 milhões e levaria anos a erguer, 80% da água vêm da Ucrânia e sem esta não há agri­cultura nem turismo. Tal como 80% da eletricidade e 70% da co­mida. 60% do orçamento da Cri­meia vem de Kiev. Em 1948 o Presidente Truman tinha dinhei­ro e logística para a ponte aérea que reabasteceu Berlim Oeste, cercada por Estaline. E Putin, tem? R.C. e C.P.

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