Garry Kasparov está pessimista quanto
ao desfecho da crise da Crimeia
RITA SIZA e SAMUEL SILVA
18/03/2014 - 23:10
O ex-campeão do
mundo de xadrez, e dissidente russo, Garry Kasparov, compara o Presidente Vladimir Putin a
Adolf Hitler e lamenta a resposta do Ocidente à crise da Crimeia. "Se o Ocidente pestanejar,
passamos a 1939", disse em entrevista ao PÚBLICO.
Garry Kasparov,
campeão do mundo de xadrez durante 15 anos, viaja desde Fevereiro com um
passaporte da Croácia: a nova cidadania, como explicou ao PÚBLICO, é uma
garantia de liberdade de movimentos.
Por causa da sua
oposição ao regime de Vladimir Putin, que descreve como uma ditadura, Kasparov
deixou a Rússia para poder chamar a atenção do mundo para o que se passa dentro
do seu país. “A Rússia foi feita refém por um gangue de criminosos”, observa.
Numa paragem no
Porto, onde entregou os prémios do Campeonato Europeu de Veteranos, organizado
pela Federação Portuguesa de Xadrez, Garry Kasparov discutiu o referendo da
Crimeia, manifestou o seu pessimismo quanto à atitude das potências ocidentais
face à crise e animou-se ao comentar a campanha para a presidência da Federação
Internacional de Xadrez (FIDE) - um processo que diz ser mais justo do que a
sua candidatura falhada contra Putin em 2007.
Tem
escrito vários editoriais sobre a actual crise na Crimeia, que no domingo
decidiu em referendo a separação da Ucrânia e integração na Federação Russa.
Esse processo não foi reconhecido pela União Europeia e os Estados
Unidos, que esta
segunda-feira anunciaram sanções contra vários dirigentes.
Acabei de ler que o
Ocidente aplicou sanções, mas o que li é uma piada. É uma reacção extremamente
débil, que mostra que o Ocidente não tem
determinação suficiente para se opor à agressão e nem sabe muito bem o que
fazer, uma vez que ainda está a falar numa solução diplomática. Mas qual
solução diplomática? Não se negoceia com terroristas. O que aconteceu na
Crimeia foi a primeira vez desde 1945 que se fez uma anexação - quer dizer,
excepto quando Saddam Hussein anexou o Kuwait.
Em
2008, o Exército de Putin invadiu a Geórgia...
Sim, mas não anexou -
e essa é uma distinção importante. Nessa altura foram tímidos e nunca tentaram
oficializar a anexação – embora o tenham feito, de facto. Tiveram pudor em integrar a Ossétia do Sul e a Abkházia
na Rússia. Se tivesse havido uma reacção mais forte em 2008, talvez se tivesse evitado esta crise. Cada vez que se adia a resposta forte
contra um ditador, o preço sobe. Porque ele não vai parar. Putin precisa de
vitórias de política externa para melhorar a sua reputação e a sua imagem na
Rússia. Depois de estar no poder há 15 anos e com a economia em queda, tem de
provar ao público russo que tem uma causa.
Num
artigo que escreveu para o The Wall Street
Journal,
defendeu que o Ocidente devia “usar os bancos e não os tanques” para conter a
actual ofensiva russa na Ucrânia. Mas acabou de descrever a reacção como fraca.
Quer isto dizer que a via militar passou a ser a única resposta possível?
É fraca por causa dos
nomes envolvidos. O que Obama fez é uma piada. Foi atrás de alguns burocratas,
mas ninguém espera que os burocratas influenciem Putin - eles são subordinados,
são peões. O dinheiro a sério está nas mãos dos oligarcas, que podem realmente
influenciar os acontecimentos na Rússia. Se o seu dinheiro ficar em risco, acho
que eles serão capazes de encontrar uma maneira de lidar com Putin. Neste
momento, estas sanções terão o efeito contrário: terão um efeito reduzido, se é
que terão algum, e apenas aumentarão a confiança de Putin, que reconhecerá que
o Ocidente é demasiado fraco para ir atrás dos peixes grandes.
Na
sua opinião, qual é o objectivo da Rússia com esta operação? Ainda há alguma
hipótese de travar a escalada?
Putin só tem uma
preocupação na vida, que é manter-se no poder. Os líderes ocidentais ainda
acreditam que podem negociar com ele, mas Putin é uma causa perdida. Ele não
tem nenhuma maneira de desistir desta operação: o Führer,
o líder, não
sobrevive na derrota, por isso ele só pode avançar. Onde é que isto pode parar?
Não sei. A Ucrânia tornou-se vital porque os acontecimentos em Kiev
enviaram o sinal errado ao povo russo. Para Putin, a Crimeia é o gatilho. Por
isso acho que ainda avançará mais: ele quer remover o Governo ucraniano. Por
isso fez todas aquelas declarações a dizer que não reconhecia o Governo, e por
isso a Rússia quer todas estas mudanças constitucionais para tentar travar as
eleições a 25 de Maio. Esse é um momento importante: se a Ucrânia conseguir
sobreviver sem grande agressão até essa data, realizar as eleições e ter um
Presidente e um Governo legitimamente eleito, Putin perdeu o jogo. E é por isso
que ele está a tentar provocar a instabilidade no leste da Ucrânia. Hoje vemos
as notícias e são os provocadores russos que passam a fronteira para criar tensão e tentar atiçar a
violência.
Quer dizer que não está optimista quanto a uma resolução da crise. Antecipa
uma invasão militar russa na Ucrânia?
Não o excluiria. Estou muito preocupado que
esta resposta fraca da América possa dizer a Putin que ele ainda tem muita
margem de manobra para a expansão.
Não
estou nada optimista. A unica forma de parar um ditador é demonstrar força. Até
agora o Ocidente não mostrou força nenhuma, voltamos a ouvir sussurros de uma
possível solução diplomática. No minuto em que começam a sussurrar, Putin vê
isso como uma fraqueza. Os ditadores crescem e fortalecem-se com as fraquezas ou
indecisões dos seus adversários. Se não mostrarmos firmeza e determinação, eles
tornam-se arrogantes.
Em 2007,
desafiou Vladimir Putin ao candidatar-se à
presidência da Rússia, mas nas suas entrevistas recentes diz sempre que não
está disponível para concorrer novamente.
Vamos ser precisos: na Rússia
ninguém se candidata. Mesmo em 2007, que era um estado vegetativo comparado com o que se passa agora, não se tratava de uma
candidatura, mas sim de demonstrar que as condições [políticas] não eram
justas, nem sequer próximo. Aqui em Portugal uma candidatura implica um partido
político, uma campanha na televisão, a recolha de fundos..., tudo isso está
fora de questão na Rússia de Putin. Lá, se uma pessoa faz uma declaração politica, esta posta de lado. Por isso,
a candidatura fazia parte do meu protesto contra as violações dos procedimentos
democráticos e dos direitos humanos básicos.
Perdeu
o interesse na política?
A política pode
existir em muitos formatos. O actual processo eleitoral na Federação
Internacional de Xadrez (FIDE) é muito político; tem dois pólos: por um lado temos o senhor
[Kirsan] Ilyumzhinov, o incumbente, que é totalmente apoiado pelo Governo da
Rússia. As embaixadas russas têm estado a desenvolver uma campanha pela sua
eleição em todo
o mundo, como se fazia dantes. E eu
estou novamente a lutar contra a ditadura Putin, mas noutro território. A
diferença é que neste território eu tenho uma hipótese de ganhar. E aqui eu
posso fazer campanha em vez de estar a lutar contra a polícia de choque.
Quer
dizer que não voltará a fazer campanha pela Frente Civil Unida?
A Rússia é uma
ditadura. Quando me perguntam por que deixei a Rússia, em Fevereiro de 2013, eu
respondo: voar para a Rússia agora seria uma viagem sem volta. E eu acredito
que posso ser mais activo e útil fora da Rússia. Agora durante a crise
ucraniana, não creio que pudesse ser muito útil se, na melhor das hipóteses,
estivesse em prisão domiciliária em Moscovo. Assim, posso escrever editoriais,
posso dar entrevistas, todos os dias o meu Twitter tem mais seguidores. Posso
fazer muito mais coisas aqui do que se estivesse em Moscovo, isolado do resto
do mundo.
Ter outro mártir numa
cadeia russa não ajudaria o mundo a confrontar o regime de Putin.
Como é que classifica a sua
actividade política? Vê-se como um dissidente, como um
provocador?
Eu sou um activista
dos direitos
humanos. Tudo o que eu fiz
na Rússia foi lutar por direitos fundamentais.
Muitas pessoas não
acreditam, mas eu nunca tive ambições políticas na Rússia. Para mim era suficiente criar
as condições para que existisse igualdade e concorrência e o país pudesse
avançar confortavelmente na direcção certa. Nunca me vi como um homem que queria
desempenhar funções executivas.
E
como é que avalia Vladimir Putin? Como estudioso da História,
há alguma personagem histórica com quem o compare?
Sim,
com Adolf Hitler. Fui o primeiro a dizê-lo e fui muito criticado, porque Hitler representa o mal absoluto. Mas o que eu
digo é que o algoritmo por dedtrás das acções de Putin é similar ao de Hitler.
Em geral, sou muito
cauteloso a fazer paralelos históricos, mas alguns paralelos são muito
naturais, por exemplo, os Jogos Olímpicos de Berlim (1936) e de Sochi (2014).
Porque é que não comparo por exemplo com Pequim (2008) ou até Moscovo em 1980?
Porque esses foram construídos para promover o regime, o importante ali era o sistema.
Agora era tudo Putin,
como em 1936 era tudo Hitler - ou seja, duas olimpíadas foram construídas em
torno de uma pessoa. Para promover, não o Estado, mas o triunfo da vontade de
uma pessoa: os Jogos Olímpicos são como uma espécie de droga intoxicante para
ditadores. Agora, Hitler demorou dois anos antes de começar ataques maciços
contra a Áustria; Putin demorou duas semanas a começar a sua agressão contra a
Ucrânia. Portanto, se quisermos comparar o calendário, estamos agora como em
1938, e a Ucrânia e a Crimeia são o ponto
de viragem. Se o Ocidente
pestanejar, passamos a 1939. Mas podemos aprender com a História, e assim mudar
a História. Não acho que seja inconcebível pensar que Putin um dia poderia
carregar no botão, e ao contrário de Hitler, ele tem armas nucleares. Podemos
ver como o homem está cada vez mais paranóico.
Foi muito crítico dos Jogos Olímpicos de Sochi. Imagina que
dentro de quatro anos, quando a Rússia receber o campeonato do Mundo de
Futebol, o processo será semelhante? O Mundial servirá para a legitimação
política do regime, ou em quatro anos muita coisa mudará?
Penso que mais
vale pensar no que vai
acontecer nos próximos quatro meses e até quatro dias. Espero sinceramente que
o regime de Putin não sobreviva durante tanto tempo, porque já estamos a ver os
danos que ele pode causar, hoje, em 2014. Acho que se sobreviver mais quatro
anos, o mundo ficará quase à beira da Terceira Guerra Mundial. A cada semana que
passa, Putin fica mais louco, e não vejo que isto possa continuar por mais
quatro anos. Nas actuais condições económicas, não creio que a Rússia seja
capaz de organizar um evento como o Mundial.
Senão vejamos: só
Sochi custou 52 mil milhões de dólares. Agora para o futebol - e basta ver o
que está a acontecer no Brasil - estamos a falar de dez cidades diferentes. A
Rússia é um país muito grande, vai ser preciso construir muita infraestrutura.
Não penso que a economia russa consiga sobreviver à corrupção de larga escala
que será absolutamente inevitável. Mesmo em condições normais seria um enorme
desafio: nas actuais condições, com o potencial efeito das sanções e o impacto na economia da anexação da
Crimeia, acho que o melhor é começar a apostar que o campeonato de 2018 não se
vai realizar na Rússia, porque não me parece possível.
Na altura em que
competia, os xadrezistas eram umas verdadeiras estrelas pop. O que é que
aconteceu com o xadrez que justifica a diminuição do interesse e da atenção dos
media?
É um paradoxo, porque
se olharmos para o número de pessoas que jogam xadrez agora é
significativamente maior do há 40 anos ou 25 anos.
Mas é verdade que já
não aparece nas primeiras páginas dos jornais, onde aparecia quando eu jogava contra [Anatoli] Karpov nos anos 80.
Nessa altura, havia um elemento de Guerra Fria nos jogos, União Soviética
contra os Estados Unidos. E nos meus jogos contra o Karpov, era a Perestroika
contra a velha União Soviética. Agora, apesar de haver mais pessoas a jogar
xadrez, a concorrência é tremenda: há muitos outros desportos e muitos outros
jogos. E aí, entroncamos num problema maior para o xadrez, que é a má gestão da
federação internacional (FIDE).
Durante 19 anos temos
perdido muitas oportunidades para apresentar uma nova visão para o xadrez. Hoje
em dia não faltam patrocinadores, o que é preciso é uma boa ideia e uma boa
apresentação. O xadrez toca várias áreas fundamentais: a educação, as redes
sociais, a tecnologia, e há muitas coisas que podemos fazer. Apesar de o xadrez
não ser concorrente do futebol ou basquetebol no que diz respeito às atenções
no grande ecrã, quando passamos para o pequeno ecrã, tem muitas vantagens
competitivas. Num ecrã de telemóvel, pode-se jogar, pode-se
aprender xadrez, podem-se seguir torneios. Tem
tudo a ver com a criatividade e a gestão, e é por isso que eu acredito que se
me tornar o presidente da FIDE em Agosto as coisas podem facilmente dar a
volta. Existe o potencial, mas isto não é elementar: há que investir o nosso
tempo, energia e reputação.
Além da candidatura à presidência da FIDE, que ligação
ainda mantém
actualmente com o xadrez? Ainda joga?
Deixei de competir profissionalmente há nove anos,
embora ainda faça jogos de exibição e muitas sessões com crianças, através da
Fundação Kasparov. Mas a minha actividade profissional acabou.
Agora é mais xadrez
político...
Continuo muito
comprometido com a promoção da educação do xadrez em todo
o mundo, e a Fundação Kasparov
está em Nova Iorque, Bruxelas, Joanesburgo, Singapura, vai abrir dentro de
três semanas na Cidade do México. Continuo activamente a promover o xadrez.
Há alguns meses, solicitou a
cidadania croata. É um seguro de vida?
Não é o meu seguro de
vida, mas é a minha garantia de viajar em liberdade. Ao viajar
com um passaporte russo,
sabia que a qualquer minuto poderia ser minado pelo Governo, e com a minha
actividade, precisava de ter a possibilidade de me deslocar livremente. Como já
estava a ficar sem páginas no meu passaporte, e tinha zero hipóteses de o
renovar, estudei as minhas várias opções.
É pessoal. Mas também
é essa a estratégia do regime, que tem de se certificar que neutraliza as pessoas mais perigosas entre a oposição.
Nesse aspecto, é tudo muito pessoal - Putin não se pode dar ao luxo de fazer
repressão em massa, como fez por exemplo Estaline. Eles tentarão sempre manter
a escala reduzida, algumas centenas de prisioneiros políticos, mas não milhares,
porque sabem que se forem longe demais, o regime não tem a estabilidade
necessária para aguentar.
Pretende instalar-se
na Croácia?
Não, tenho uma casa
alugada lá, mas vivo em Nova
Iorque. A minha mãe ainda está em Moscovo.
Vai renunciar à cidadania russa?
Não. Esse era o grande desafio na escolha de outra nacionalidade. Por exemplo a Estónia, um país com que
tenho alguma ligação, não era uma possibilidade porque a legislação não prevê a
dupla nacionalidade.
Pensa
alguma vez voltar a viver em Moscovo?
Nunca digo nunca. Já
tive tantas mudanças na minha vida. Agora vivo em Nova Iorque, embora passe
mais tempo em aviões. Mas o mais provável é que volte a Moscovo, não acredito
que o regime de Putin vá durar para sempre. Aliás, espero que não dure muito mais
tempo. Ainda sinto que tenho obrigações e responsabilidades
de ajudar o povo da
Rússia. Mas neste momento o meu país foi feito refém por um gangue de
criminosos.
Sem comentários:
Enviar um comentário