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sábado, 26 de maio de 2018

Viagem à Alma Russa

Revista do Expresso    Semanário 26 de Maio de 2018
KARL OVE KNAUSGÅRD*

UMA VIAGEM PARA LER A RÚSSIA
É a pátria de Tolstoi, de Turgueniev e de Putin. 
Com a fotógrafa Lynsey Addario e uma tradutora, mais alguns livros na bagagem, o aclamado escritor norueguês parte à descoberta do imenso país que vai receber o Mundial de Futebol
Texto Karl Ove Knausgard*
Descanso Karl Ove Knaus Gearingrd dorme durante uma viagem
de comboio pela Rússia, no colo, um livro sobre Lenine
A Rússia é uma terra de histórias. 
Histórias do czar e do seu povo, de Lenine e da revolução, da Grande Guerra Patriótica; da transformação de uma terra atrasada num moderno e poderoso estado industrial; do Sputnik, de “Laika” e de Gagarin. 
E também a história do reino de terror de Estaline, a história de um país que ossificou e estagnou e acabou por colapsar, a história de Vladimir Putin, o funcionário do KGB que ascendeu ao poder através do caos e restabeleceu a ordem. 
E como é que ele fez isso? 
Com histórias do passado, recontadas de uma forma que tudo nelas vai ter à Rússia de hoje e a justifica.

Ao longo de toda a minha vida, estas histórias têm exercido uma atração poderosa sobre mim. 
Quando eu estava a crescer, a Rússia não apenas era fechada, e portanto misteriosa, mas apresentava-se como a nossa antítese: nós éramos livres, os russos oprimidos; nós éramos bons, os russos maus. 
Quando comecei a ler, a situação ficou mais complicada, porque era da Rússia que vinha a melhor e mais intensa literatura: “Crime e Castigo”, de Dostoiesvki; “Guerra e Paz”, de Tolstoi; “Diário de um Louco”, de Gogol. 
Que tipo de país era aquele onde as almas eram tão profundas e o espírito tão selvagem? E por que motivo fora ali que a profunda injustiça inerente a uma sociedade de classes se transformara em ação, primeiro com a Revolução de 1917 e depois com a ditadura de 70 anos do proletariado? 
E porque é que a bela história sobre a igualdade de todos os seres humanos acabara em horror, brutalidade desumana e miséria?

A Rússia permanece um país enigmático para mim. 
Todos os dias vêm notícias de lá — ouvimos falar de Putin, dos seus dissidentes presos, da sua interferência nas eleições de rivais políticos — tudo reforçando a noção de que a Rússia é uma entidade singular, compreensível e bem delineada. 
Mas o que pensam as pessoas que vivem dentro dessa entidade? 
O que é a “Rússia” para elas, que histórias contam a si próprias, um século depois da revolução, 25 anos após a queda do comunismo?

Durante anos, quis ver a Rússia com os meus próprios olhos, conhecer algumas das pessoas que vivem dentro dessa entidade, descobrir o que elas pensam que significa ser russo. 
Foi por isso que, numa manhã cedo de outubro, ia a conduzir de Moscovo até à propriedade de Ivan Turgueniev, acompanhado por uma fotógrafa e uma tradutora. 
Se queria ver como era a vida na Rússia sem o filtro das notícias, não podia imaginar melhor lugar para começar do que o mundo de Turgueniev, o campo que formava o cenário do seu primeiro livro, “Memórias de um Caçador”.

Publicado em 1852, “Memórias de um Caçador” é uma coleção de histórias singelas sobre os encontros de um caçador que deambula pelos bosques. 
Não há lá nada da selvajaria e profundidade psicológica e emocional de Dostoievski, nem da complexidade épica de Tolstoi ou da sua capacidade de encapsular toda uma sociedade nalguns traços. 
Estas histórias são em tudo modestas ou até sem propósito. 
Um homem segue pela floresta com uma espingarda ao ombro, troca umas palavras com alguém que por acaso encontra, se calhar abate um ou dois pássaros, se calhar passa a noite num estábulo a caminho de casa — e isso é a história inteira. 
No entanto, o livro conta-se entre as maiores obras da literatura mundial, em larga medida por Turgueniev se aproximar tanto do mundo que descreve, a sociedade russa dos anos 40. 
Os seus personagens e descrições não levam a nada além deles próprios, não são eles próprios parte de uma sequência maior de eventos, encontram-se à parte de tudo — exceto o tempo e o lugar específicos. 
E é a partir daí que temos a experiência do mundo.

A paisagem que atravessávamos era plana e monótona, o céu de um cinzento pálido. 
Por vezes passávamos uma estação de serviço decadente, às vezes aparecia uma pequena cidade, outras vezes a floresta abria-se em campos. 
A certa altura, entre todas aquelas árvores, surgiu um pequeno parque à direita. 
Vi uma parede preta e uma chama a arder.

“O que é aquilo?”, perguntei.
“É só um memorial de guerra”, disse a tradutora. Chamava-se Oksana Brown. Era uma jovem produtora jornalística que às vezes funcionava como fixer.
“Oh, não, isto é perfeito, quero ver”, disse eu.
“Há monumentos como estes em praticamente todas as cidades da Rússia”, disse ela, parecendo não entender que eu queria especialmente parar ali.

A fotógrafa, Lynsey Addario, caminhou pelo pequeno parque tirando fotografias por sua conta enquanto Brown e eu parávamos em frente à parede de mármore preta e olhávamos a chama a estremecer na brisa. 
À nossa direita, outra parede com esboços de retratos de soldados erguia-se ao lado de um canhão pintado de verde, com o cano a apontar para o céu cinzento.

“O que diz a inscrição?”, perguntei.
“O teu nome é desconhecido, mas o teu feito heroico é imortal”, disse Brown. “Honra eterna aos heróis que perderam as suas vidas na luta pela liberdade e independência da nossa pátria durante a Grande Guerra Patriótica”.
Só os ocidentais, explicou ela, falam em II Guerra Mundial.

Enquanto regressávamos à estrada, eu pensava quão comovente era aquela simples chama no memorial. 
Tornava antiga a floresta e conferia aos soldados mortos uma espécie de imortalidade, levando-os para as eternas fileiras dos caídos. 
Na realidade, a morte era pequena e suja, nada a que aspirar e nada para celebrar. 
Mas com a ajuda do memorial, a morte tinha sido elevada do mundo real até ao ideal. 
A chama era o agente dessa evolução; embora presa à materialidade suja, erguia-se até ao puro éter; movia-se como se estivesse viva, mas estava morta.

Gradualmente, o campo foi-se tornando mais ondulante. 
E então, de repente, quando chegámos ao topo de uma colina, mudou completamente. 
A floresta, que durante horas tinha formado uma sebe nos dois lados da estrada, abriu-se em extensas e belas planícies, nos extremos das quais muros de árvores em todas as sombras do outono marchavam para o horizonte, e o céu parecia puxar para cima, enchendo a cena de luz.

Turgueniev não tinha exagerado as belezas do mundo da sua infância, pensei. 
Porque era definitivamente este o mundo a que tínhamos chegado, era este o campo que ele atravessara em jovem e mais tarde descreveu nas “Memórias de um Caçador”. 
E foi apenas meia hora depois que nos desviámos da autoestrada e nos metemos por uma estrada rural acidentada que nos levou primeiro a uma aldeia e depois a uma grande propriedade vedada, com um parque de estacionamento e vários edifícios pequenos de escritórios.

Não havia ninguém presente, só uma grande calma. 
As nuvens pendiam baixas no céu; pesado com humidade, o ar parecia deter todo o som em pleno voo. 
A um canto via-se uma capela de pedra, com paredes cheias de míldio em baixo, e uns cem metros mais à frente estava o que tinha de ser a casa principal. 
Eu esperava algo de grande e monumental, algo como uma grande mansão inglesa, porque os Turguenievs eram uma família nobre, mas aquela era uma casa baixa de madeira, pintada em violeta e coberta de entalhes intrincados.

Não evocava nenhuns sentimentos, nenhum fôlego de história.

Tentei imaginar Turgueniev a atravessar a porta e a vir na nossa direção, mas era impossível associá-lo connosco, o então com o agora.

Seguimos um jovem guia com barba e óculos que nos explicou que a maioria dos edifícios originais tinham sido destruídos; aquilo eram réplicas exatas. 
Alguns objetos da casa do escritor, porém, encontravam-se expostos nas salas da casa ao lado do edifício principal. 
Havia mesas e cadeiras, retratos e bugigangas, prateleiras cheias de livros. 
Mas estas coisas, embora fossem autênticas, não falavam; apenas estavam ali mudas, apresentando o passado.

Os únicos itens com algum interesse real eram a arma, a bolsa de pólvora e o saco para guardar caça que Turgueniev usava nas suas excursões venatórias. 
Fizeram-me pensar em Ernest Hemingway, que se inspirou nas vinhetas de caça de Turgueniev quando escreveu “As Histórias de Nick Adams”, no modo como ele se esforçou por atingir a mesma intensidade sem esforço, e poderá mesmo ter conseguido, mas nunca teve exatamente a mesma recetividade de Turgueniev ao mundo, porque ele próprio estava no meio dele. 
E havia um sofá no qual Tolstoi se sentara; não só esses dois grandes escritores foram contemporâneos, como viviam a horas um do outro. 
Ao início eram grandes amigos, mas Tolstoi acabou gradualmente por odiar Turgueniev, indo ao ponto de o desafiar para um duelo. 
Turgueniev observava os camponeses mas não se envolvia tão diretamente nas suas vidas como Tolstoi, que explorou cada vez mais fundo a sua busca da essência da alma russa, não apenas praticando os princípios de simplicidade e pobreza mas também apresentando-os como um ideal para todos.

Caminhámos pelo grande parque lá fora, onde filas de árvores se estendiam a direito e longamente até encontrarem a floresta sem ordem. 
Não havia ali mais ninguém além de nós. 
O ar húmido e frio pendia sem se mexer entre os troncos de árvores.

“Há sempre tão pouca gente aqui?”, perguntei ao guia.
Abanou vigorosamente a cabeça.
“Não, não de todo. 
Normalmente está cheio de crianças, vêm de todo o lado na Rússia. 
E para o ano é o bicentenário do nascimento de Turgueniev. 
É por isso que estamos a renovar o sítio. 
Vamos ter imensos visitantes nessa altura. 
Mas hoje é segunda-feira, e estamos em outubro...”.

Parou ao lado de uma árvore alta, com uma sebe baixa à volta.

“Este carvalho foi plantado pelo próprio Turgueniev”, disse.
À direita da árvore, via-se o que parecia serem pedras tumulares.
“O que são?”, perguntei, apontando para elas.
“São os túmulos dos soldados”, respondeu.
“Aqui?”.
“Sim. Lutaram contra os alemães durante a guerra e tombaram aqui”.

Quando partimos pouco depois era a imagem daqueles túmulos que me estava na cabeça, talvez por a violência que representavam parecer tão inesperada ali, no mundo isolado do museu. 
Isso e os dois cavalos que vimos deitados na relva, uma égua e o seu potro, pretos e resplandecentemente belos na atmosfera húmida.

Antes da revolução, a Rússia era em grande medida uma sociedade agrária; no início do século XX, quatro em cada cinco russos eram camponeses. 
Eram pobres, sem educação, supersticiosos e analfabetos. 
Em muitos sítios, o modo de vida pouco havia mudado desde a Idade Média. 
Leon Trotsky começa a sua “História da Revolução Russa” com a observação de que “o traço fundamental e mais estável da história russa é o tempo lento do seu desenvolvimento, com o atraso económico, as formas sociais primitivas, e o baixo nível de cultura daí resultante”. 
Em “A Tragédia de um Povo”, o historiador britânico Orlando Figes descreve um mundo primitivo em que todos os aspetos da vida são regidos por uma conformidade incessante: toda a gente usava as mesmas roupas, cortava o cabelo da mesma maneira, comia da mesma gamela, dormia no mesmo quarto. 
“A modéstia tinha muito pouco lugar no mundo camponês”, escreve Figes. 
“As casas de banho eram ao ar livre” e “os médicos urbanos ficavam chocados com o costume de cuspir no olho das pessoas para tirar a ramela, de alimentar as crianças boca a boca e de acalmar os bebés do sexo masculino chupando-lhes o pénis.

Estas descrições do campesinato russo no século XIX não são falsas, mas são vistas a uma distância muito grande e extremamente generalizadas. 
Claro que é preciso distância; ela ajuda o historiador a compreender e a explicar o desenvolvimento social, tal como ajuda o político a lidar com problemas sociais. 
Mas foi uma distância semelhante que permitiu aos bolcheviques destruírem a estrutura da sua sociedade sem pensarem nas centenas de milhares, e eventualmente milhões, que morreram nesse processo, pois não eram pessoas reais, apenas “camponeses”, vistos de tão alto que toda a individualidade era apagada. 
E se as estatísticas no seu conjunto melhoravam — bem, então valia a pena.

“Memórias de um Caçador” mostra a cultura que Tolstoi e Figes descrevem, mas a partir de dentro, sem distância. 
Uma das melhores histórias no livro é sobre um homem que volta de uma caçada e se perde. 
Na escuridão, vê dois fogos a arder num campo muito abaixo dele. 
É um grupo de rapazes acampados, a olhar pelos cavalos. 
Sentam-se junto aos fogos, contando histórias para passar o tempo, na maioria lendas de ocorrências sobrenaturais. 
Turgueniev dá vida a esses rapazes, cada um com o seu aspeto e personalidade distintos, e há algo profundamente comovente no modo como os descreve; toma-os muito a sério, concedendo-lhes dignidade, e as histórias que contam ali à noite uns aos outros são elas próprias incandescentes. 
Esta não é a classe camponesa supersticiosa e reacionária dos revolucionários e dos historiadores; são cinco rapazes, cada um com uma vida própria, tecida com os fios da sua linguagem, da sua cultura e da camaradagem da sua fogueira no acampamento.

“Memórias de um Caçador” não era de modo nenhum uma declaração política, mas teve grande impacto político na Rússia dos anos 50, talvez exatamente porque, na ausência de uma agenda política ou literária, mostrou a vida como ela era e não pelo que simbolizava.

Na altura, a servidão ainda prevalecia na Rússia, o que significava que a nobreza não só era dona das aldeias na sua terra, mas dos próprios camponeses que nelas viviam. 
Por outras palavras, era uma forma de escravidão. 
O livro de Turgueniev fez muito para estimular as críticas à servidão, que já estavam em crescendo. 
Foi finalmente abolida nove anos depois pelo czar Alexandre II, que seria assassinado vinte anos mais tarde, na presença do filho e do neto, que seriam os dois czares seguintes, Alexandre III e Nicolau II. 
Não será irrazoável imaginar que este assassínio foi instrumental em tornar ambos autocratas reacionários e antiliberais, tão contrários a qualquer tipo de reforma e tão decididos a calar toda a oposição que a revolução acabou por se tornar inevitável.

Já fazia escuro quando encontrámos o exato lugar da história de Turgueniev sobre os rapazes. 
Chamava-se Prado de Bezhin, e foi uma mulher idosa que no-lo apontou. 
Usava uma saia e um lenço na cabeça, e estava a trabalhar sozinha no meio de um campo, recolhendo milho de uma espiga, com um carro de rodas ao lado.

“Gostava de falar com elas?”, perguntou Addario do assento traseiro.
“Não, acho que não”, respondi.
“Bom, de qualquer forma gostava de lhe tirar umas fotografias”, disse.

Brown e Addario saíram e saltaram a sebe. 
Brown disse uma coisa em russo; a mulher respondeu. 
De repente compreendi que tinha de falar com ela, que o museu, as árvores e os livros antigos, as coisas em que me tinha focado até aí, não representavam mais do que as minhas próprias ideias sobre o assunto.
Em que diabo me estava a meter?
Toda a minha perspetiva da Rússia se baseava em mitos e em imagens românticas. 
Que tipo de arrogância me havia feito crer que podia dizer algo sobre a Rússia real após uma viagem de nove dias num canto minúsculo daquele vasto país?
Era como descrever um balde de água para dizer algo sobre o oceano.

Saí e juntei-me a elas na sebe.

“Ela diz que não quer que lhe tirem o retrato”, explicou Brown.
“Porque não?”.
“Diz que só está a apanhar algum milho para as suas galinhas, mas este não é o seu campo”.
“Estou a ver”, respondi.

A verdade é que não era nenhum grande crime — o milho já tinha sido colhido. 
Após mais um pouco de conversa, a mulher concordou em contar-nos a sua vida.

“Pergunte-lhe onde vive”, disse Addario, disparando a máquina. 
“Pergunte-lhe o que faz. Pergunte-lhe se tem família”.
Encontro Minizaitunya Ibyatullina virou lentamente a cabeça para a câmara quando Addario lhe começou a tirar fotografias. 
Ela segurou à sua frente a fotografia do marido, que morrera na guerra em 1943, na Ucrânia. 
Um homem muito belo.

Quão estranho deve ser para ela, pensei, okhar para esta imagem dele, 70 anos depois, com ele tão jovem e bonito e ela agora com 102.

Aparentemente, a mulher tinha nascido numa pequena aldeia mais à frente na estrada. Tinha-se mudado para Moscovo aos quinze anos e vivera lá até algum tempo atrás, quando voltara à aldeia para tomar conta da mãe após o pai morrer.

“Quando eu era rapariga, havia imensa gente aqui”, disse. 
“Era uma comunidade próspera e cheia de movimento, devia haver umas 15 ou 20 famílias a viver aqui”, disse, apontando para as casinhas sem pintura ao fundo da estrada. 
“Agora foram-se todos embora”.
“Leu Turgueniev?”, perguntei.
“Li as ‘Memórias de um Caçador’. 
Passa-se nesta área”.
“Gostou?”.

Sorriu pela primeira vez.

“Agora leio-o aos meus netos.”
“Aqui agora é diferente de como era quando Turgueniev escreveu?”.
“A área é a mesma. 
Mas a vida agora é diferente. 
Muito diferente”.

Apontou na direção do prado e avançámos. 
As árvores a demarcar a colina para lá dele pareciam absorver escuridão. 
Silhuetas negras em contraste com o céu ainda a brilhar palidamente. 
No profundo silêncio, os nossos passos eram o único barulho.
E, então, o grito de um pássaro na distância.
Os rapazes na história de Turgueniev podiam estar aqui agora, pensei. 
E os netos deles podiam ter-se levantado contra o czar, e os netos dos netos terem sido esmagados pela revolução. 
Fiquei a ver e ouvir, esperando algum sentido de conexão. 
Tudo à minha volta era exatamente como teria sido nos anos 40 do século XIX. 
As árvores, o prado, o vale, as colinas, o crepúsculo, tudo. 
E porém tudo era diferente.
O passado estava em nós, pensei, não no mundo.

A CAMINHO DE KAZAN

O comboio para Kazan estendia-se pelo que pareciam milhas na plataforma da estação de Moscovo. 
A locomotiva pintada de verde e o longo trem de carruagens cinzentas tinham o ar de algo do tempo da guerra. 
Íamos num compartimento de segunda classe com quatro camas, e quando o comboio estava sair da estação peguei no meu livro sobre Lenine, enfiei a mala debaixo da cama e instalei-me à janela.

O livro, “Lenine, o Ditador: um retrato íntimo”, de Victor Sebestyen, era intrigante. 
O escritor favorito de Lenine foi sempre Turgueniev. 
Achei estranho, pois Lenine foi um dos homens com vontade mais forte que jamais existiram; era ao mesmo tempo zelosamente parcial e emocionalmente evasivo, mas apesar disso, ao longo do seu exílio, onde quer que se encontrasse, Zurique, Londres ou Paris, tratou de garantir que tinha sempre consigo as obras completas de Turgueniev.


Eu estava a ler sobre Lenine porque os lugares onde íamos nos dez dias seguintes tinham sido em parte escolhidos com ele em mente. 
Umas semanas depois, passariam exatamente 100 anos sobre a Revolução de Outubro, quando Lenine conquistara o poder quase sozinho na Rússia. 
Íamos a Kazan, onde ele estudou Direito e se radicalizou, e a seguir íamos a Yekaterinburg, onde o czar Nicolau II e a sua família fora executados numa cave às ordens de Lenine em 1918. 
Esse ato, na sua brutalidade impiedosa, marcou o fim do velho mundo da Rússia e o começo do novo. 
Tudo no velho mundo seria erradicado para dar lugar ao novo; nenhum preço era demasiado elevado e não haveria regresso.

Eu queria desesperadamente fumar um cigarro. 
Brown disse que era contra a lei fumar no comboio, mas se comprássemos algo aos funcionários, uma barra de chocolate ou um chá, ela garantia que poderia arranjar qualquer coisa.

Quando terminámos o chá, segui Brown ao longo da carruagem. 
Nesse momento, a condutora emergiu do seu pequeno cubículo. 
O seu rosto era fixo e solene, ou mesmo sombrio. 
Abriu a porta que levava à passagem estreita entre as carruagens.

“Fume aqui”, disse.

Saí para a plataforma a vibrar e oscilante, com um dos lados completamente aberto para os carris em baixo, de modo que o barulho assolador das rodas enchia o espaço minúsculo. Ela fechou a porta e inclinei-me para acender um cigarro.
Quando regressei, atravessámos a carruagem vizinha. 
Esta era de terceira classe: totalmente aberta, com beliches em ambos os lados, e estava completamente cheia de gente. 
Os pés e cabeças dos que dormiam nos leitos de cima distavam uns meros centímetros da minha cara quando eu passava, e o facto de eles estarem completamente descobertos fez-me sentir que estava a entrar em algo privado. 
Mas nenhum dos passageiros pareceu importar-se; agiam como se se encontrassem nas suas próprias salas de estar em casa.
Desde o século XIX que nenhuma carruagem de comboio escandinava podia ter estado tão superlotada, pensei.

Parámos em frente a três mulheres sentadas a falar junto a uma janela. 
Teriam cinquenta e muitos anos. 
Pedi a Brown para nos apresentar, o que ela fez. 
As mulheres olharam-me com atenção e expectativa.

“Para onde vão?”, perguntei.
“Para Izhevsk”, respondeu uma. 
“Onde fazem as Kalashnikovs”.
“E estiveram em Moscovo?”.

Acenaram que sim.

“O que estiveram lá a fazer?”.

Trocaram olhares.

“É segredo”, disse ela. 
As outras duas riram-se.

Atrás de mim, alguém disse qualquer coisa, e quando me voltei vi um idoso, talvez próximo dos oitenta, pegar na mão de Addario e beijá-la.
Toda a gente à volta se riu, incluindo Addario.
A mulher disse algo a Brown, que sorriu.

“O que é que ela disse?”.
“Disse que você é muito bonito”.
“Oh, não”.
“Vai escrever isso?”.
“Claro que não”, disse eu. 
“Mas pergunte-lhes se posso voltar mais tarde e falar outra vez com elas?”.

Quando voltámos, estava escuro como breu lá fora. 
As três mulheres sentavam-se a uma pequena mesa com uma taça de frutos secos no meio. 
O ambiente era agora mais calmo, mais passageiros dormiam, as vozes dos que ainda conversavam eram mais baixas.
A mulher que anteriormente tinha falado mais deve ter pensado no que devia dizer, pois começou a contar-nos sobre ela mesmo antes de eu fazer uma pergunta. 
O seu nome era Natalya. 
As suas duas amigas eram Olga e Zinaida. 
Disse-nos que tinha sido criada num orfanato, que não se conseguia lembrar dos pais, mas que tinha uma irmã da qual se tinha separado e que jamais tornara a ver. 
Toda a vida procurara a irmã mas ainda não sabia onde ela estava.

“Nesse tempo, era prática normal separar os irmãos quando eram retirados aos pais”, contou. 
“Já não fazem isso, mas nessa altura era o sistema. 
Ela foi enviada para outra casa. 
Quando cresci, voltei e arranjei um trabalho na mesma casa, pensei que conseguiria roubar a ficha dela e descobrir onde estava. 
Mas não descobri nada. 
Portanto, agora escrevi para os produtores de um programa da televisão estatal que ajuda a reunir pessoas com membros da família perdidos, e estou a aguardar que me respondam. 
Tenho esperança!”.
“Quando lhes escreveu?”.
“Há dois anos”.

Deve ter-lhe ocorrido, enquanto dizia estas palavras, que não soava muito esperançosa, pois olhou para mim e acrescentou: 
“Pode ser difícil descobrir pessoas, mesmo para os repórteres deles. 
Às vezes chega a demorar cinco anos”.

O murmúrio constante e rítmico das rodas do comboio sobre os carris reverberava na carruagem. 
De vez em quando, as paredes eram fustigadas por uma mudança na pressão atmosférica lá fora, e de cada vez que a porta próxima de nós se abria, todos os sons do comboio ascendiam subitamente numa cacofonia infernal onde se misturavam o chocalhar, os estrondos e os silvos quando o ar do intervalo entre as composições varria a carruagem.

Moscovo atravessámos a cidade até ao Kremlin

As ruas estavam cheias de gente, o céu estava de um azul límpido e os raios de sol caíam diretamente na cidade, brilhando quando se refletiam em janelas e para-choques, mais suaves e ricos na frente das lojas e nas paredes, nas estradas e no pavimento, e sempre com um toque ardente.

Natalya começou a falar da sua fé cristã. 
No ano anterior, tinha visitado Israel para ver o local onde Jesus foi crucificado.
“Uma vez rezei para outra mulher ter um bebé. 
E ela teve. 
Para mim, rezei por um marido. 
E conheci um homem maravilhoso!”.
As outras riram-se.
Na torrente de russo que fluía para cá e para lá quase como num sonho, detetei a palavra “Putin”.

“Ela disse alguma coisa sobre Putin?”.
“Sim, sim. 
Ela diz que a mãe é uma grande fã de Putin. 
São todas fãs de Putin”.
“Amamos a nossa pátria”, disse Natalya. 
“E pela primeira vez temos um Presidente cristão, um Presidente ortodoxo”.

Virou uma revista que estava na mesa para nos mostrar a capa. Todas as imagens que lá estavam eram de Putin. Numa, ele aparecia de tronco nu.

“Vê isto? 
Trump podia mostrar o seu corpo desta maneira? 
É velho. 
O seu corpo é um monte de banha”.

As três riram alto.

“Passam agora cem anos sobre a revolução. 
Que significado tem isso para vocês?”.
“Não queremos saber”, disse Natalya. 
“Foram cem anos sem Deus. 
Deitaram abaixo todas as igrejas. 
Agora estão a ser reconstruídas, e podemos ir lá sem medo. 
Aqui nesta cidade há um ícone da Virgem Maria. 
É muito, muito velho. 
Quando o encontraram, estava completamente preto. 
Agora, gradualmente, a cada ano que passa, vai ficando mais claro”.

Quando a entrevista terminou, dirigi-me ao pequeno espaço entre as carruagens para fumar. 
Ao abrir a porta, senti uma mão no meu ombro. 
Olhei. 
Era a mesma jovem condutora de cara sombria.

“Não, não”, disse, fazendo que não com o dedo. 
“Não mais fumar”.
Mas que diabo...?

Regressei ao nosso compartimento e sentei-me à janela. 
Nas camas do outro lado, Addario e Brown já se tinham deitado. 
Cerca de uma hora depois, o comboio parou e espreitei pela janela. 
Estava totalmente escuro, não se via nenhuma estação. 
Abri a porta para o espaço entre as carruagens e lá estava a condutora, a fumar um cigarro.

“Ahah!”, apeteceu-me dizer. 
“Apanhei-te!”.

Em vez disso, os nossos olhares encontraram-se durante um momento, apenas o suficiente para ela perceber que eu sabia, e a seguir fechei a porta e voltei para o meu compartimento.

AS RAZÕES DE LENINE

Há um prazer especial em chegar a uma cidade à noite, no escuro, sem ideia nenhuma do seu aspeto até acordarmos no dia seguinte e sairmos para as ruas, para as quais — privados da gradual aclimatação da chegada — nos sentimos subitamente atirados.
Que tipo de cidade era Kazan?
O bairro em que me encontrava era moderno e bem conservado. 
A magnífica mesquita, que eu tinha visto da minha janela de hotel quando acordei, era novinha em folha. 
Quando fui dar uma volta, mesmo o velho quiosque de madeira que parei a ver, octogonal, com uma cúpula de metal verde e um pequeno pináculo no topo, parecia renovado de fresco, mais uma reconstrução do passado do que um símbolo dele.

Kazan, a capital do Tataristão, é também a cidade onde Lenine estudou Direito e foi expulso da universidade. 
O pai era um funcionário do Serviço Civil do czar, e a vida do jovem Lenine girava em torno da escola, da literatura e do xadrez, que jogava a um alto nível. 
Então aconteceram duas coisas que mudaram tudo. 
Primeiro, o pai, com apenas 54 anos, morreu de um ataque cardíaco. 
Depois o seu irmão Alexander, que ele idolatrava, foi executado por conspirar para matar o czar.

Alexander estava a estudar ciências naturais na Universidade de Petersburgo quando se envolveu com uma célula estudantil revolucionária. 
Para ajudar a financiar o plano, vendeu uma medalha de ouro que tinha recebido pelo seu trabalho académico. 
Lenine nada sabia das atividades revolucionárias do irmão, e até então jamais se interessara por política. 
A execução do irmão mudou tudo isso. 
Não só aderiu imediatamente a uma célula revolucionária na universidade em Kazan mas, como Sebestyen descreve na sua biografia, toda a sua personalidade se transformou. 
A felicidade e o entusiasmo do início da sua adolescência desapareceram, deixando um jovem determinado, reservado, altamente disciplinado, obcecado por um único propósito. Lenine nunca olhou para trás. 
Passou o resto da vida a trabalhar pela revolução, uma revolução que não podia saber se jamais aconteceria.

E quando finalmente chegou, ele obrigou-a a seguir a sua linha. 
Os bolcheviques eram ateus, e a religião foi extirpada do conjunto do novo Estado russo. Durante três gerações, a religião foi reprimida, até à queda da União Soviética em 1991, quando voltou com toda a força. 
Isso foi bastante visível em Kazan. 
Existem perto de 200 minorias nacionais e étnicas na Rússia. 
A maior delas são os tártaros, que constituem aproximadamente quatro por cento da população. 
A maioria são muçulmanos, e portanto Kazan tinha uma das maiores comunidades muçulmanas de qualquer cidade na Rússia.

Nessa noite, estacionámos o nosso carro alugado na curva do outro lado da rua em frente ao Museu Nacional da República do Tataristão. 
Eram seis horas, e estávamos ali para apanhar uma jovem chamada Dina Khabibullina, uma tártara e muçulmana praticante. 
Tínhamo-la encontrado antes nesse dia e falado sobre como era pertencer a uma minoria religiosa e cultural na Rússia. 
Ela convidara-nos para jantar no seu apartamento.
Dina tinha 29 anos e um pós-doutoramento na Academia de Ciências da República do Tataristão. 
Também trabalhava no museu e organizava tours a atrações locais tártaras. 
Estava grávida de seis meses.
Fora criada como não-muçulmana, numa casa em que a cultura tártara mal era detetável e se falava principalmente russo. 
Quando tinha 19 anos, teve um súbito acordar. 
Converteu-se ao Islão e ensinou tártaro a si mesma. 
Como fizeram muitos dos seus amigos.
Tinha a religião sempre estado lá, profundamente imbuída na sociedade, apenas à espera do seu momento? 
Preenchia uma necessidade tão profunda nas pessoas que era simplesmente indestrutível?

“O que a fez virar-se para a fé?”, perguntei-lhe.
“Eu tinha 19 anos e o meu pai morreu”, disse. 
“Levantou-se a questão de se ele devia ser enterrado segundo o rito muçulmano. 

Nesse momento, compreendi que há uma explicação para tudo. 
Perguntei a mim mesma o que podia fazer por ele após a sua morte. 
E nos ensinamentos do Islão, está escrito claramente: deves dar esmola aos pobres, fazer a hadj e matar um bode”.

O complexo de apartamentos de Dina parece datar dos anos 50. 
Os edifícios de tijolo, ao longo de ruas estreitas e com árvores altas à volta, estavam velhos e gastos mas apesar disso eram belos, como frequentemente sucede com edifícios de outras eras.
Levou-nos escada acima até ao terceiro andar, onde a esperava o seu filho Gizat, de 7 anos, juntamente com o marido e a mãe. 
O pai do rapaz, o primeiro marido dela, tinha morrido, acabei por perceber.
O apartamento era pequeno, consistindo numa única sala onde dormiam todos os adultos e crianças, uma pequena casa de banho e uma cozinha estreita. 
Mas lá dentro estava quente, e Dina já não tinha um ar inquieto, como antes nesse dia; estava alegre e relaxada. 
Após despedir-se da mãe, que não ia ficar para comer connosco, foi à cozinha preparar o jantar enquanto o marido, Damir Dolotkazin, estendia um tapete de oração no chão da sala de estar e o rapaz se sentava no sofá-cama e o olhava.
Damir parecia ir a caminho dos trinta; era magro, com cabelo curto e negro e olhos intensos mas gentis. 
Descalço, de pé num canto da sala, começou a cantar. 
A música, estranha aos meus ouvidos, encheu a sala, e impressionou-me a forma como mudava o apartamento inteiro. 
De repente o ambiente ficou solene, mas com a rotina quotidiana — Dina a cozinhar, o seu filho no sofá com os pés pendurados, o helicóptero de brinquedo no topo da estante dos livros — ainda presente e vivo.
Damir ajoelhou e curvou-se. 
Quando tornou a levantar-se, sussurrou uma oração quase silenciosa. 
A seguir enrolou o tapete, e o ar de solenidade esvaiu-se tão abruptamente como tinha surgido.
Da cozinha, Dina chamou-nos. 
Deitou uma sopa transparente com pérolas de banha, vegetais e pedaços de carne negra nas nossas taças.
A intensidade que eu tinha visto inicialmente nos olhos de Damir provou ser entusiasmo ou transformou-se nisso. 
Ele comeu com gosto e respondeu com vontade a todas as minhas questões.

“Foi sempre muçulmano?”, perguntei.
“Não, não”, respondeu. 
“Eu estava no exército aqui em Kazan. 
Estava numa divisão de segurança que escoltava tropas de reabastecimento. 
Tinha 18 anos e era cristão”. 
Um dos seus camaradas era muçulmano, continuou Damir, e “explicou-me o que era. Pensei que era uma religião bastante forte. 
Tudo é explicado nos seus ensinamentos, incluindo o que fazer, como agir”.

Fez-se silêncio.

“Isto é muito bom”, disse eu. 
“Que tipo de carne é?”.
“Carne de cavalo”, respondeu Damir.

Oh, não.
Oh, não, oh, não.
Não havia alternativa senão continuar a comer; éramos convidados deles, e teria sido rude não comer a comida que nos serviam.
Damir deve ter sentido o incómodo que subitamente emanava dos seus convidados, pois disse: “Mas era um belo cavalo!”.

Rimo-nos.

“O que é que as pessoas no Ocidente pensam dos russos?”, perguntou. 
“É só estereótipos?”.
“Há alguns estereótipos, sim”, disse eu, mordendo um grande bocado de carne enquanto evitava cuidadosamente respirar pelo nariz, um truque que me tinha ajudado a aguentar muitas refeições que achava difíceis de engolir na infância, como arenque fumado ou bacalhau fumado.
“As pessoas acham que somos bárbaros. 
É muito triste. 
O que os políticos dizem e fazem não tem necessariamente que ver com aqueles de nós que vivemos aqui. 
Há muito boa gente aqui, almas gentis, e também pessoas más, claro. 
Quando toca a política, nada mudou realmente. 
As eleições são uma piada”.

A seguir ao jantar, uma larga travessa com bolos tártaros foi posta na mesa. 
Damir contou-nos que costumava ser um grande fã de futebol. 
Mas depois corrigiu-se.

“Bem, eu não gostava realmente do futebol. 
Gostava da luta.”
“Foi um hooligan do futebol?”
“Sim, passei três anos a viajar para jogos de futebol e a lutar. 
Tive uns problemas com a lei nessa altura. 
Mas já não tenho contacto nenhum com essa cena. 
Agora, em vez disso leio. 
Tento ler 20 livros por ano.”

Quando já tínhamos comido e sentimos que não podíamos tomar mais do tempo deles, despedimo-nos e estávamos a pôr os nossos casacos no pequeno hall quando ele veio ter comigo.

“A minha irmã morreu num desastre de avião em 2013.”
“Lamento ouvir disso”, disse eu, não sabendo o que fazer com a informação.

Ele simplesmente acenou, e apertámos as mãos. 
Senti um grande calor em relação a ele; tinha-me falado da sua vida e isto, um dos eventos mais importantes, não podia ficar de fora, mesmo que não se encaixasse no resto da conversa. 
A última coisa que vi antes de a porta se fechar foi a cadeira na sala de estar, na qual estava pendurado o casaco do menino, uma camisa branca e uma gravata.

A paisagem que se abriu de ambos os nossos lados quando deixámos Kazan era plana e ampla. 
Os amarelos e verdes da vegetação cintilavam com luxuriante intensidade na luz solar que fluía, e o rio Kazanka estava sempre presente, às vezes mesmo junto à estrada, outra vezes distante, às vezes tão largo como um grande lago, às vezes estreitando, mas sempre a brilhar e reluzir na luz, em todos os tons de azul possíveis.

Era belo, e também selvagem, embora a maior parte da terra fosse cultivada. 
Talvez o ar selvagem viesse da escala, pensei, do próprio sentido de grandeza terrestre que emergia à medida que avançávamos no nosso carro minúsculo.

Ao fim de algum tempo, parámos num restaurante à beira da estrada no meio da estepe. Todos pedimos sopa ao balcão e fomos sentar-nos numa das mesas. 
As quatro mulheres que trabalhavam lá, vestidas de branco, com bochechas vermelhas e quentes, andavam para a frente e para trás entre o balcão e a cozinha por trás.

Depois de comer, perguntámos a uma das empregadas se podíamos falar com ela. 
Fez um aceno incerto e limpou as mãos ao avental. 
Era nova, no fim da casa dos 20, e explicou-nos que aquilo era apenas um emprego temporário; o restaurante fazia parte de uma cadeia, e ela vinha ajudar quando alguém estava doente. 
Havia algo de reservado e cuidadoso nela, e quando lhe comecei a perguntar sobre a Rússia, olhou para as outras antes de responder.

“As coisas estão melhores na Rússia agora”, disse. 
“A economia está a melhorar, as nossas vidas estão cada vez melhores”.
“O que é que estás a dizer?”, disse um homem junto à caixa registadora, olhando para nós. “As coisas estão piores na Rússia! 
Está tudo a ir ao fundo! 
Cada vez pior!”.

Era grande e musculado, com cabelo curto e um rosto pálido e plano.
Mas sorria enquanto falava.

“Não há progresso”, trovejou, indo sentar-se numa mesa a meio da sala. 

Agradeci à jovem reservada, que fugiu para cozinha, claramente aliviada, enquanto caminhava, um pouco hesitante, na direção do camionista.
Ele olhou para mim, com uma colher na mão.

“Porque está a escrever sobre a Rússia?”.
“Na América, a imagem da Rússia tem muito que ver com Putin e a política. 
Por isso vim aqui ver como é a vida fora disso”.
“Prazer em conhecê-lo!”, disse. 
“Sente-se!”.

O nome dele era Sergei. 
Tinha 44 anos e conduzia um camião que levava carros desde uma fábrica da Lada até vendedores em Kazan.

Czar a igreja do sangue fica no lugar exato onde a lendária história dos Romanovs chegara ao fim. 

Também albergava o que, para mim, não era menos matéria de lenda - um serviço ortodoxo autêutico, que, graças a todos os romances russos que tinha lido, a começar pelos de Dostoievski, estava banhado numa luz especial

“Tenho de trabalhar 16 horas por dia para pagar as despesas”, disse. 
“Se queremos viver, temos de trabalhar. 
Em 2004 dormi quatro horas por dia e trabalhei o resto. 
Nessa altura tinha um chefe a quem respondia. 
Agora trabalho para mim, portanto pelo menos escolho as minhas próprias rotas”.

Olhava a direito para mim enquanto falava, sempre com um brilho nos olhos. 
Nunca andava longe uma piada.

“É a oportunidade de uma vida, conhecer alguém como você”, disse com uma gargalhada. “Uma vez fui roubado, gostava de ouvir isso?”.
Uma noite, quinze anos antes, ele tinha estacionado o seu camião fora de Moscovo e estava a fazer chá na cabina. 
As portas estavam fechadas. 
De repente, a janela do passageiro foi partida e dois homens estavam a forçar a entrada.
“Por sorte, só um deles tinha uma faca”, disse Sergei. 
“O primeiro abriu a porta, o segundo trepou e pôs-me uma corda ao pescoço. 
Afastei-o com um braço, liguei o camião e conduzi-o até à estrada para a bloquear e conseguir ajuda dessa forma. 
O tipo que me estava a tentar sufocar estava no caminho do outro com a faca. 
Foi o que me salvou. 
Consegui abrir a outra porta e saltar. 
Então o tipo com a faca apunhalou-me pelas costas. 
Ainda tenho a cicatriz”.
“E eles arrancaram com o camião?”.
“Sim, sim. 
Eu só queria salvar-me. 
Andei até à estrada, mas ninguém parou para ajudar. 
Não admira. 
Eu estava meio nu e coberto de sangue. 
Não havia ninguém na esquadra. 
Acabei por chegar a uma casa onde havia uma festa, corri lá para dentro, agarrei numas roupas e voltei a fugir. 
Encontraram o camião mais tarde, abandonado e partido, sem a carga. 
E eu fui preso por roubar as roupas!”.

Riu-se. 
A sua cara estava sempre em movimento, com a expressão mudando em contraponto com cada volta no relato. 
Era um traço que reconheci. 
Ele era um contador de histórias.
Contou que o avô lhe disse uma vez que era um Romanov.

“Um Romanov?”, perguntei.
 “Como na família imperial?”.
“Oh, sim. 
Perguntei à minha mãe, mas nunca consegui ter a certeza”.

Era mesmo sorte, pensei. Encontrar um possível descendente dos czares num restaurante à beira da estrada no meio da Rússia.
Começou a falar do avô.

“Era muito forte”, contou, batendo com o punho entre nós na mesa. 
Era gigante.
“O seu punho era como dois dos meus. 
Uma vez foi dar água a um vitelo. 
Estava um dia quente, com o ar parado. 
O vitelo estava a ser incomodado com uma mosca que tentava sacudir”. 
Ergueu a cabeça, atirando-a como o vitelo tinha feito. 
“A cabeça dele atingiu o avô. 
Ele ficou furioso e deu um murro ao vitelo, matando-o. 
Um murro. 
Morto”.

Parou um momento a deixar a história assentar, depois riu-se.

“Acredito que os sonhos são reais”.
“Também eu”, concordei.
“O senhor também?”
“Sim”.
“Nesse caso, vou-lhe contar um sonho que tive. 
Acrescentei um ano extra à vida do meu avô nesse sonho. 
Eu tinha deixado o meu pai e vivia com o meu avô. 
Adorava-o. 
Uma noite, sonhei que três homens em chapéus pretos e roupas pretas — muito misteriosos, pareciam um pouco georgianos — vinham a nossa casa. 
Passaram por mim e foram direitos ao meu avô. 
Agarraram-no e ele não lutou, apenas foi com eles. 
E agarrei-me a ele e fui arrastado até à escuridão. 
Não podia salvá-lo, embora também seja forte. 
Não havia hipótese. 
Comecei a chamar e gritar. 
Um dos homens de negro perguntou. 
‘O que são estes gritos?’. 
Viu-me e perguntou: ‘Quanto tempo tem ele?’. 
‘Um ano’, respondeu um dos outros, ‘para algumas boas ações’. 
E então desapareceram”.

O camionista olhou para mim.

“Uma semana depois, o avô foi para os cuidados intensivos, estava em coma. 
Eu disse que não precisávamos de gastar dinheiro em médicos, ele ia ficar melhor. 
Viveu exatamente mais um ano”.

Mais tarde estávamos lá fora e vimos Sergei a atravessar o pátio para o seu veículo ao sol. Virou-se e acenou, subiu, ligou o motor rouquejante, meteu a mudança e arrancou.
Uma coisa que associo sobretudo à Rússia, algo que sempre quis ver na vida real, é o género de aldeia arquetípica que se encontra nos romances russos do século XIX ou em fotografias históricas. 
Um amontoado de casas de madeira, muitas não pintadas, algumas sebes de madeira, algumas hortas, umas quantas galinhas a correr, também um bosque próximo, um rio a correr lentamente, rodeado por campos sem fim. 
Ao longo da minha viagem, vi muitas aldeias assim à distância, primeiro no caminho para a propriedade de Turgueniev e depois ao lado da linha férrea para Kazan. 
Portanto, neste dia particular, quando um grupo de casas apareceu subitamente logo após a crista de uma pequena colina, mesmo ali junto à autoestrada, virei para a estrada sulcada, parei o carro e saí.
A aldeia parecia deserta, exceto por uma idosa solitária dobrada sobre si mesmo que trabalhava numa horta. 
Brown falou com ela, e aparentemente vivia na aldeia uma mulher com 102 anos.

“Posso conhecê-la?”, perguntei.
Brown perguntou à mulher, que acenou e apontou a direção.
Fomos até uma casa azul e luminosa à volta da qual se movia uma mulher com um lenço na cabeça. 
Nos braços tinha uma grande galinha branca que lutava para se libertar.
Enquanto Brown falava com ela, um jovem galo passou a correr, com outro a persegui-lo.
 A caçada terminou numa bola de penas um pouco mais à frente.

“Fomos convidados”, disse Brown.

Atravessei o alto alpendre e entrei no hall. 
Cheirava ligeiramente a amargo e húmido lá dentro, mas era agradável e quente. 
Havia tapetes por todo o lado, tanto no chão como nas paredes. 
Parecia que estávamos a entrar numa caverna.
No meio da sala estava uma mulher muito idosa. 
Quando entrámos, virou a cabeça devagar e olhou para nós.
A mulher que nos tinha seguido passou por nós, levou a mulher idosa para uma cama encostada a uma parede, sentou-a, retirou-lhe o lenço da cabeça e substituiu-o por um fresco, e pôs-lhe um par de chinelos nos pés.
Era quase como se estivesse a vestir uma boneca. 
Mas a idosa não pareceu importar-se. 
Sentava-se completamente parada com as mãos no regaço, observando-nos.
Usava um vestido preto estampado com rosas. 
O lenço branco na cabeça era grande; não só cobria a cabeça como lhe caía pelas costas abaixo. 
O nome dela era Minizaitunya Ibyatullina.
Fui até ela e apertei-lhe gentilmente a mão. 
Era seca e quente. 
Ela disse algo quando olhou para mim.

“Está a falar tártaro”, explicou Brown. 
“Não sei o que está a dizer”.

Minizaitunya virou lentamente a cabeça para a câmara quando Addario lhe começou a tirar fotografias. 
O filho, Kasym, estava junto à porta de entrada, a olhar e a sorrir.
 A mulher dele, cujo nome era Alfiya, tirou de uma gaveta uma grande fotografia laminada e entregou-a à idosa. 
Era de um soldado, e ela segurou-a à sua frente.
Era uma fotografia do marido de Minizaitunya, que morrera na guerra em 1943, na Ucrânia. Um homem muito belo. 
Quão estranho deve ser para ela, pensei, olhar para esta imagem dele, 70 anos depois, com ele tão jovem e bonito e ela agora com 102 anos.
Ela não se incomodava. 
Tinha uma pose orgulhosa, ali sentada com a foto dele nas mãos.
Devia ser estranho para o filho, também. 
Tinha 80 anos, mais do dobro da idade do pai quando morrera.
Kasym vivera na aldeia toda a vida. 
Nos tempos da União Soviética, era uma exploração agrícola coletiva. 
Ele trabalhava como carpinteiro, contou-nos. 
A mãe também trabalhara toda a vida.

“Diz que agora está muito velha para trabalhar. 
Já não tem força para isso”.
“Que tipo de trabalho fazia?”.
“Trabalhava na quinta coletiva. 
A mugir as vacas e outras tarefas”.

Alfiya entrou na sala e convidou-nos a sentar à mesa. 
Enquanto falávamos, tinha estado a fazer pão. 
Na mesa havia um prato com um pão espalmado e quente e vários tipos de compota. 
Havia só duas cadeiras, e não se punha a questão de qualquer deles se sentar. 
A mulher deitou chá, o marido mostrou um saco com doces duros, e quando eu não fiz nenhum gesto para me servir pegou em três peças e pô-las ao lado do meu prato.
Da sala veio o som de passos suaves e lentos.

“A babushka vem aí!”, disse Alfiya. 
Segundos depois, Minizaitunya apareceu à entrada. 
O filho levou-a até outra cama, onde ela se sentou a ver-nos enquanto comíamos.
Nascera em 1915. 
A Rússia então ainda era uma monarquia, e Nicolau II ainda governava. 
Portanto ela tinha visto o velho czarismo, a revolução, a ascensão e queda da União Soviética, e agora a nova Rússia.
Alfiya pôs-nos algum pão fresco num saco, Kasym deu-nos alguns sacos de doces, e cada um de nós foi presenteado com um pequeno pano bordado para levarmos. 
Até Minizaitunya tinha prendas para nós: uma barra de sabão para Brown, lenços para Addario e para mim.

Todas as pessoas com quem cresci estão mortas”, disse a partir do seu assento na cama, quando já estávamos de pé e prestes a partir. 
“Não resta ninguém”.

Eu nunca olho ninguém diretamente nos olhos mais do que alguns segundos de uma vez. Não gosto de me intrometer com ninguém, e talvez não goste que se intrometam comigo. Mas nessa tarde, depois de me despedir de toda a gente com apertos de mão, estando ali de pé a olhar para ela e com ela a olhar para mim, achei que devia aguentar o seu olhar, que devia olhá-la nos olhos. 
Aqueles olhos tinham visto o mundo durante a época dos czares e visto o mundo ao longo de mais cem anos.

Olhámos um para o outro durante muito tempo. 
Ao início pareceu surpreendida, como que a pensar o que é que eu queria, mas depois, lentamente, começou a sorrir, e era tão maravilhoso aquele sorriso que havia lágrimas nos meus olhos um momento depois quando passámos a porta e saímos da casa.


O último dia da nossa excursão a Yekaterinburg foi uma viagem contínua de 15 horas. Perto do fim da jornada, no meio de uma floresta profunda que ainda ficava a meia hora de condução da cidade, virei para uma estrada lateral, parei junto a um rio e fumei um cigarro sob o céu estrelado, mesmo ao lado do que adivinhei ser uma fábrica de celulose. 
Addario e Brown estavam a dormir, e pensei no que nos esperava de manhã.

Trânsito três jovens num carro, à noite, em Moscovo, a capital de um país misterioso que vai estar sob os holofotes dentro de semans com o mundial de futebol.

O assassínio do czar e da sua família naquela cave em Yekaterinburg foi um evento que abalou o mundo, uma repetição da Revolução Francesa, mas para Lenine também deve ter sido uma questão pessoal. 
Ele devia estar cheio de ódio quando deambulava por Kazan aos 17 anos, ódio ao czar que tinha executado o irmão, e não custa imaginar que esse ódio pessoal o tenha tornado mais duro e intransigente. 
Após a revolução em 1917, quando assumiu responsabilidade pelo czar, que estava nessa altura preso, ele deve ter pensado no irmão e como o poderia vingar. 
E fazer o que o irmão um dia tentara: matar o czar.

Um par de faróis brilhou à distância entre as árvores. 
Segui-os com os olhos enquanto se aproximavam. 
Quando as luzes acenderam o carro a que me encostava, elas abrandaram. 
Uma leve ansiedade cresceu dentro de mim. 
Tinha ouvido histórias sobre roubos violentos nas cidades próximas. 
Mas então quem quer que fosse afastou-se rapidamente. 
Pisei o meu cigarro, entrei no carro e conduzi de volta à estrada principal. 
Se calhar eram só alguns adolescentes aborrecidos numa saída, pensei. 
E percebia-se porquê, num lugar onde não havia senão árvores e água.

Em Yekaterinburg, no dia seguinte, vimos uma pequena multidão numa praça, centenas de pessoas com bandeiras e a gritar. 
Todos se viraram para o nosso carro quando passámos.

“Estão a protestar contra quê?”, perguntou Addario.
“Hoje há manifestações em todo o país”, disse Brown. 
“Em apoio do líder da oposição preso, Alexei Navalny. 
Hoje é o aniversário de Putin”.
“A sério?”, disse eu, mas um momento depois já tinha esquecido a manifestação, pois estávamos a aproximar-nos da Igreja do Sangue, que ficava no lugar exato onde a lendária história do czar chegara ao fim. 
Também albergava o que, para mim, não era menos matéria de lenda — um serviço ortodoxo autêntico, que, graças a todos os romances russos que tinha lido, a começar pelos de Dostoievski, estava banhado numa luz especial.

Esta era a luz altruísta da misericórdia, associada não apenas aos ricos e poderosos mas também aos pobres e humildes. 
Nos livros de Dostoievski, há algo de mórbido nessa luz, um elemento frenético e exaustivo que tenho sempre visto como tipicamente russo. 
Por certo que nunca o observei em mais lado nenhum.
Saímos do carro e ficámos à chuva a olhar para a igreja.

Soube desde logo que não ia realizar nenhuma espécie de visão dostoievskiana. 
A igreja tinha sido construída em estilo tradicional, com múltiplas cúpulas brilhantes, mas claramente nova. 
Olhá-la deu-me a mesma sensação estranha que tinha tido uma vez na Velha Cidade em Varsóvia, onde os edifícios destruídos na II Guerra Mundial, muitos dos quais construídos séculos antes, haviam sido substituídos por réplicas imaculadas. 
Era como um cintilar nalguma fenda do tempo. 
O velho não era velho, o novo não era novo. 
Onde ficávamos?

Na noite de 16 de julho de 1918, diz a história, a família do czar foi acordada e informada de que ia ser levada para um lugar mais seguro. 
Desceram dos seus quartos e pediram-lhes que esperassem na cave. 
Não faziam ideia do que estava prestes a acontecer até que as armas foram erguidas contra eles. 
Os revolucionários que constituíam o pelotão de fuzilamento eram amadores; alguns estavam bêbados.
Os disparos atingiram a família ao acaso, no chão escorria sangue, o ar estava denso de fumo, deve ter havido gritos e golpes e confusão, alguns membros da família jaziam no chão a sangrar, mas vivos, até serem finalmente mortos com tiros na cabeça. 
Os corpos foram então levados para fora da cidade, e tentativas feitas com ácido para tornar as caras irreconhecíveis, antes de serem atirados ao poço de uma mina. 
Uns dias depois, foram tirados de lá, levados para uma floresta próxima e enterrados.
A casa já não existia, a cave também não, como o sangue e os corpos. 
Mas os Romanovs não tinham desaparecido. 
Na Igreja do Sangue, tinham voltado, como símbolos. 
Esse minutos loucos e sangrentos, e tudo o que haviam representado, estavam agora subsumidos em formas relicárias que prometiam o oposto: antevisão, estrutura, harmonia, equilíbrio.

À entrada da igreja via-se uma estrutura da família Romanov inteira, feita no mesmo estilo heroico-realista que os artistas soviéticos usavam para representar os trabalhadores nos anos 20 e 30. 
Dentro da igreja pendiam ícones nos quais Nicolau II era representado à maneira da Idade Média. 
Quase tudo na igreja envolvia uma distorção do tempo. 
O ritual e a repetição dos serviços aboliam o tempo por completo, ligando o tempo dentro daquela câmara com o tempo divino, que era eterno, não afetado pela vida ou a morte, que estava sempre ali, que durava para sempre. 
O czar e a sua família foram erguidos neste lugar, e a história a que estavam associados desaparecera sem deixar traço. 
E no entanto Lenine existia num espaço similar, embalsamado no seu mausoléu na Praça Vermelha. 
O corpo dele era real e preso ao momento, mas não havia nada no corpo que o ligasse ao tempo em que ele mandava; também ele estava simultaneamente dentro e fora do dentro.

A História é um pesadelo do qual estou a tentar acordar, disse Joyce. 
Em nenhum lugar isso é mais verdade do que na Rússia.

No dia seguinte de manhã, enquanto eu esperava o avião no aeroporto de Yekaterinburg, passei os olhos pelos jornais no meu telefone. 
Tinha havido manifestações contra Putin e o seu Governo em todas as grandes cidades no dia anterior, com menção especial para a manifestação em Yekaterinburg, a que tínhamos visto a caminho da igreja, pois a polícia detivera 24 participantes.

O meu primeiro pensamento foi que eu devia ter estado lá, que ali era o sítio onde tudo estava a acontecer, que era o que eu devia ter ido ver para apresentar o melhor retrato possível da Rússia moderna.

E depois pensei: não.

As histórias sempre mantiveram a Rússia unida, e o que as torna diferentes das outras histórias que constroem nações talvez seja a própria natureza autoritária das histórias. 
Uma história é dominante enquanto todas as que se desviam dela são proibidas. 
Assim aconteceu sob os czares, que censuraram livros e jornais; assim também sob Lenine; e assim continua a ser hoje. 
Os repórteres na Rússia são regularmente presos ou às vezes simplesmente assassinados.

E no entanto, as histórias alternativas, aquelas que as autoridades não querem ver ganhar terreno, aquelas que falam de abuso de poder e opressão, de viver numa ditadura onde toda a esperança de futuro desapareceu — também essas se estandardizaram.

A manifestação foi o que os jornais internacionais reportaram sobre a Rússia no dia anterior, e essas histórias confirmaram e reforçaram a história maior sobre um povo submetido num estado totalitário. 
Mas atrás dessa realidade havia outra realidade. 
As três mulheres animadas no comboio; Dina e Damir, o jovem casal em Kazan com um bebé a caminho; Sergei, o camionista; a mulher muito, muito velha na aldeia, e o casal idoso que tomava conta dela — que história sobre a Rússia podia contê-las a todas sem, ao mesmo tempo, reduzir drasticamente o que era único em cada uma delas?

As histórias de Turgueniev podiam. 
Os seus personagens não levavam a nada além de si mesmos. 
Mas o mundo tal como é não pode existir sem o seu gémeo — o mundo como queremos que seja. 
Lenine, o opressor, leu Turgueniev toda a vida, e Vladimir Putin revelou o seu amor pelas “Memórias de um Caçador” numa entrevista em 2011, quando disse: “O protagonista, de uma forma simples mas pitoresca e com muita simpatia, conta histórias de pessoas que conheceu enquanto caçava, e as vidas delas. 
É uma espécie de vinhetas do coração da Rússia no meio do século XIX que nos dão matéria para pensar e nos permitem ver o nosso país, as suas tradições e a psicologia nacional a uma nova luz”.

Nesse dia à tarde, num bar de hotel em Moscovo, encontrei-me com Sergei Lebedev, um romancista e jornalista de 36 anos que tinha recentemente emergido como ativista cívico. Eu estava tão curioso em relação ao homem como à sua escrita, tão intrigado pelo seu passado familiar como pelo seu conhecimento da história do país. 
Ele nascera em 1981, portanto era velho justamente o suficiente para ter passado a primeira parte da infância na União Soviética e a sua juventude nos anos caóticos após o fim dela. 
Também sabia que tinha começado por ser geólogo.

“Nasci numa família soviética clássica”, disse-me assim que nos sentámos a uma mesa junto a uma janela que dava para a rua. 
“Os meus pais eram ambos geólogos; eram membros da intelligentsia soviética”.

Era baixo e robusto, com uma barba rala, e havia nele algo de indomável que me fazia pensar num animal que não largava uma coisa assim que ferrava os dentes nela. 
Os livros de Lebedev lidavam com a História — era uma sombra em tudo o que ele escrevia — e o facto de a sua presença ser tão poderosa sugeria que os conflitos e tensões a ela inerentes ainda estavam por resolver, ainda tinham um peso na sociedade russa em formas obscuras mas palpáveis.

Lebedev disse-me que tudo na sua infância fora concebido para manter o passado escondido dele. 
O seu bisavô, por exemplo, tinha sido oficial no exército do czar antes de trocar de lado e se juntar ao Exército Vermelho. 
Mas na versão familiar dos eventos, ele sempre tinha usado o boné do Exército Vermelho com a sua estrela vermelha, como se tivesse nascido em 1917 e não houvesse nada antes disso.


“Para mim era normal”, disse. 
“Viver num mundo incompleto. 
Viver num mundo cheio de buracos. 
Com todas aquelas perguntas que nunca podiam ser feitas”.

A rua lá fora estava iluminada pelos raios do sol baixo de outubro, e cheia de pessoas a passear pela cidade domingo à tarde. 
Muitos devem ter histórias como as de Lebedev, pensei. 
Há um mecanismo nas pessoas que nos impede de falar de más experiências e nos torna relutantes em remexer o passado. 
Mas os segredos geram uma versão específica da realidade, na qual as peças individuais têm de ser dispostas de uma forma particular, encaixando-se tão bem que se uma só delas mudasse de posição toda a imagem ruiria. 
A nossa identidade é formada por histórias, sobre a nossa própria história, a da nossa família, a do nosso povo ou a do nosso país. 
O que acontece quando uma destas histórias não encaixa? 
De repente, não somos quem pensávamos que éramos. 
E então quem somos?

Perguntei-lhe qual era a narrativa atual na Rússia.

“É muito estranha”, respondeu. 
“Primeiro, é importante compreender que as autoridades não têm uma narrativa única e coerente. 
Usam elementos de todo o tipo de campos; se funciona, é usado. 
Precisam de uma cortina de fumo para ocultar o facto de que não são mais do que um bando de cleptocratas. 
Veja, por exemplo, o nome do partido Rússia Unida. 
Essas palavras, ‘Rússia unida’, eram um slogan dos contrarrevolucionários, cunhado em reação a Lenine e os bolcheviques, que queriam estabelecer novas repúblicas autogovernadas. 
A atual administração está a construir um estado baseado em nostalgia soviética, mas não tem escrúpulos em se apropriar de um slogan da oposição. 
E não é minimamente controverso”.

Prosseguiu: “A cada ano que passa, tentam reduzir o significado de 1917. 
Fazem isso porque na sua versão ideal dos eventos não teria havido revolução! 
Estão a tentar estabelecer um elo contínuo entre os czares e a Rússia de Estaline. Segundo a narrativa atual, foram os espiões estrangeiros e os traidores que nos levaram a matar-nos uns aos outros há cem anos. 
Isso jamais pode voltar a acontecer. 
Por isso temos de nos manter unidos, temos todos de seguir a bandeira de Putin, temos de proibir toda a oposição, temos até de sacrificar os nossos direitos civis, porque isso não pode tornar a acontecer. 
É mais ou menos assim”.

A seguir atravessámos a cidade até ao Kremlin. 
As ruas estavam cheias de gente, o céu estava de um azul límpido e os raios de sol caíam diretamente na cidade, brilhando quando se refletiam em janelas e para-choques, mais suaves e ricos na frente das lojas e nas paredes, nas estradas e no pavimento, e sempre com um toque ardente.

Lebedev conduziu-nos para lá do Teatro Bolshoi, apontando e explicando enquanto íamos caminhando. 
A praça em frente à magnífica fachada neoclássica do teatro era dominada por várias camionetas da polícia estacionadas e por agentes e cães-polícias de pé junto a elas.

“Polícia de choque”, disse Lebedev. 
“Houve manifestações ontem aqui. 
Eles estão preocupados e querem garantir que não acontece nada”.

Multidões giravam pelas tendas e pela profusão de comida e bebida. 
O ambiente era leve, as pessoas sorriam e davam gargalhadas, crianças corriam junto aos pés dos adultos, com o sol a brilhar nas caras, e atrás de nós, duro sobre o azul profundo do céu, erguiam-se as torres do Kremlin.

“É uma celebração da colheita”, disse Lebedev. 
“Tão típico de Putin e do Governo. 
Investem em eventos não-políticos e em pontos de encontro públicos como estes. 
Aqui é tudo sobre abóboras! 
Procuram inventar novas tradições, supostamente para mostrar as riquezas russas”.

Continuámos a andar, até à Praça da Revolução, que no tempo do czar se chamava Praça da Ressurreição. 

“Como vê, aqui não há nem traço da revolução”, disse Lebedev. 
O centenário mal está a ser celebrado. 
Por certo, não há discussão da violência, das atrocidades. 
Mas se queremos compreender o que sucedeu nos anos 20 e 30, não se pode ignorar a violência dos cinco anos entre 1917 e 1921. 
Não se pode compreender porque é que as pessoas estavam tão dispostas a exterminar-se umas às outras. 
Há uma espécie de guerra pelas memórias na Rússia, sobre o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. 
A História hoje tem toda que ver com símbolos, não com noções de perdão mútuo e reconciliação”.
“Mas espere até ver isto, aqui”, disse ele, apontando a entrada de uma estação de metro. 
A escada rolante em que entrámos era íngreme e muito comprida e, no submundo a que nos transportava, o tempo parecia ter parado.

Colocadas numa série de plataformas ao longo das paredes viam-se gigantescas estátuas de bronze de figuras humanas. 
As primeiras levavam espingardas e cintos de munições; eram os revolucionários. 
A seguir vinham as pessoas comuns, homens e mulheres, velhos e novos, camponeses, pescadores, trabalhadores de fábrica — uma série requintada e hipnotizante que terminava com uma criança levantada ao alto, um símbolo do futuro.

Oh, como era esperançoso e cheio de fé pensar que a consciência de que se tratava de propaganda já não tinha importância, pois esta era uma visão de uma vida, de uma terra, de um futuro, e não era falso, apenas belo.

Também isto era a revolução, o sonho de uma vida melhor para todos. 
Toda a arte desse tempo partilha esta mesma energia, um otimismo quase selvagem, um sentido de aqui ser onde começa. 
As mulheres estão tanto na vanguarda como os homens, não sexualizadas ou objetivadas, mas por direito próprio. 
Os artistas experimentam. 
Esta é a era de Maiakovsky, Eisenstein, Kandinsky. 
Tal como das mortes, da violência, da crueldade, da fome, da privação, da miséria e, em devido tempo, de um sistema que ficou ossificado, fechado ao mundo, preso nas suas próprias verdades. 
A estação de metro foi o lugar mais belo que vi durante os meus dias na Rússia, mas a beleza não podia ser usada para nada, ligada como estava a conceitos de realidade nos quais já ninguém acreditava, e portanto jamais poderiam ser realizados.

E, contudo, isso também não o tornava uma mentira. 
A estátua do czar junto à Igreja do Sangue era uma mentira, porque mudava o passado. 
As estátuas pretendiam mudar o futuro. 
O facto de esse futuro jamais se ter realizado, jamais ter acontecido, não tornava falsa a visão subterrânea; apenas a tornava vã e bela. 
Poucas coisas são mais belas do que a esperança vã.

Copyright © 2018 Karl Ove Knausgård
*Tradução de Luís M. Faria