Os militares russos fizeram notar a sua presença no centro da
REPORTAGEM
PAULO MOURA (em Simferopol) 17/03/2014 - 18:25
Um dia depois do
referendo na Crimeia, a capital, Simferopol, acordou com mais
soldados e armamento
russos nas ruas. Bases militares onde ainda estão soldados ucranianos continuam
cercadas por tropas de Moscovo
Uma sms a meio manhã.
A operadora do telemóvel KievStar informa: “A partir de hoje já não se encontra no
seu país. As chamadas efectuadas a partir deste simcard passam a estar sujeitas
a tarifas de roamming”.
As ruas do centro de
Simeropol foram bloqueadas por soldados russos com equipamento e armamento de forças
especiais. Todos os acessos ao
parlamento estavam barrados, numa vasta área do centro
da cidade. São os mesmos soldados russos que têm, desde há semanas,
cercado as bases militares ucranianas e ocupado locais estratégicos, como os
aeroportos. Mas nunca se tinham mostrado assim, no centro da capital. Só deixam
passar quem provar ser funcionário do parlamento, ou jornalista, depois de cuidadosamente
revistado.
Uma conferência
de imprensa fora marcada para o
parlamento, para anunciar as novas medidas legislativas, que incluíam a
declaração da independência e o pedido de integração da Crimeia na Federação
Russa. Os jornalistas fizeram fila à porta do edifício, mas à medida que
entravam eram confrontados com uma misteriosa lista, nas mãos de uns não menos
inescrutáveis agentes policiais. Ouviam o nome do jornalista, órgão de
comunicação e país, verificavam a pauta e diziam, secos: “Niet!”
Foi “Niet!” para as
agências Reuters e AP, para vários jornais e canais de televisão de reputação mundial. Quando
chegou a vez do PÚBLICO, após uma hora de espera, o homem nem olhou para a
lista. “Niet!” Nenhuma explicação de critério ou procedimento. Tanto quanto foi
possível perceber, só entraram órgãos de informação russos.
A hostilidade para
com os media estrangeiros tornou-se explícita, sempre à beira de
descambar para a violência. Mas bem mais séria é a repressão a qualquer palavra
ou gesto a favor da Ucrânia. Vários activistas ou simpatizantes da Maidan têm
estado fechados em casa. Pessoas que são contra a integração na Rússia não ousam
exprimir opiniões em público, têm medo até dos vizinhos e conhecidos. Alguns,
talvez muitos, nunca quiseram ver a Crimeia anexada à Russia, mas acabaram por
votar a favor, fosse por medo de perseguições, fosse por falta de alternativas.
“Kiev traiu-nos. Deixou-nos sozinhos”, disse uma mulher. “A Rússia, tenho de admitir,
veio dar-nos uma mão, apesar de eu não gostar dos seus métodos,
e achar que tudo isto é ilegal e falso, e que eles não têm aqui qualquer
espécie de direito histórico. Mas Kiev traiu a Crimeia. Lançou-nos nos braços
dos russos”.
Muitos, decerto a
maioria, estão verdadeiramente satisfeitos, e sentem-se agora mais em casa.
“Krutchev não tinha o
direito de oferecer a Crimeia à Ucrânia. Quem lhe deu esse direito? Foi um
abuso. Nós não somos um presente que se ofereça a alguém”.
Mas não deixa de sentir-se uma ausência, a
vertigem de ter perdido um país de um dia para o outro. É perceptível tanto no
medo dos ucranianos, tártaros ou cidadãos de outras etnias, como nos modos
arrogantes dos vencedores.
Tensão
nas bases
militares
Nas bases militares
ucranianas, cercadas há semanas pelas forças russas, a tensão aumentou
visivelmente. Depois do anúncio, feito pelas novas autoridades, de que seria
concedida uma “trégua” a estas bases até ao próximo dia 21, pensou-se que os
cercos seriam levantados durante quatro dias, para que os ucranianos no
interior dos edifícios pudessem fazer a escolha que lhes foi oferecida pelo
governo: integrarem-se nas forças russas, tornarem-se
civis ou fugirem para
a Ucrânia.
Engano. Em vez de
levantarem, os russos apertaram o cerco. Na base de Perevolnia, uns 15
quilómetros a sul de Simferopol, dezenas de camiões e blindados militares
russos estavam estacionados ao longo da estrada. Espalhados pelos campos em
redor, numa paisagem de montanhas desertas, com vastas manchas de neve,
marchavam soldados russos de camuflado verde, fortemente armados.
Os “homens de verde eram, como de
costume, mudos. Nem uma palavra aos jornalistas, nem uma reacção aos fotógrafos
ou repórteres de imagem. Já os elementos das unidades de auto-defesa se
mostraram desusadamente desbocados. “Hoje ainda podes vir aqui, porque me pediram
para ter paciência, e queremos evitar qualquer violência”, disse a um fotógrafo, um homem gigantesco
que estivera a beber de uma garrafa de vodka. “Mas amanhã se vieres
parto-te a câmara”.
Uma jornalista ainda
lança, sem grande convicção: “E que tal
respeitarem a liberdade
de imprensa?”
Resposta imediata de
uma mulher que integrava a unidade de auto-defesa:”Não vos damos liberdade
nenhuma, porque vocês mentem”. Outro homem da milícia: “São uns mentirosos.
Andam a dizer que aqui só há violência, quando tudo está pacífico”. Outro:
“Para trás! Afasta-te já daqui, ou levas um encontrão!”
O líder do grupo
de auto-defesa. Aleksander Bogelshov, um homem atarracado
que foi em tempos, disse, soldado do exército soviético, apresentou a sua
versão do que se passava no interior da base: “Os soldados ucranianos estão lá
todos, mas não sitiados. Podem sair e entrar quando quiserem. Estão bem, têm
comida, boas condições e total liberdade de movimentos”.
Pouco depois, um
soldado ucraniano avançou pela estrada, a passos largos, em direcção ao portão
da base. Entrou, sem responder a nenhuma pergunta dos jornalistas. “Estão a
ver? Ele saiu e entrou, ninguém lhe fez mal”, disse Bogelshov. E acrescentou
que iria ao interior da base chamar o comandante ucraniano, para que ele
dissesse aos jornalistas como tudo estava bem, sem problemas, no interior da base. Após mais
de uma hora de espera, o comandante ucraniano nunca apareceu.
Quem surgiu no portão
foi um padre da Igreia Ortodoxa da Ucrânia, depois de ter
passado uns 40 minutos no interior da base. “Há um clima de grande apreensão e
nervosismo lá dentro”, contou o padre, Ivan Svechen. “Têm medo que haja um
ataque, a qualquer momento. E todos estão firmes em obedecer apenas às ordens
da sua hierarquia legal. Farão o que lhes for ordenado pelos seus chefes, em
Kiev. São fiéis ao seu juramento. Se for preciso combater, tenho a
certeza de que não hesitarão.
Embora eu espere que isso não
aconteça, e que não haja aqui um banho de sangue”.
O padre ortodoxo vai
todos os dias à base, para rezar com os soldados. Até agora, disse ele, nenhum
saiu, nem para ir para a Ucrânia, nem para se render.
“Todos esperam ordens
superiores”.
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