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terça-feira, 29 de abril de 2014

A ROLETA RUSSA DA CRIMEIA

Ocupação militar
As tropas fiéis a Moscovo, diz o Kremlin, têm por missão neutralizar as «ameaças ultranacionalistas» e «proteger a populaçãode fala russa». 
Para os EUA, a invasão da Crimeia «é uma acção do século XIX no seculo XXI»
POR JOÃO DIAS MIGUEL, EM SIMFEROPOL
Em menos de uma semana, a península do Mar Negro converteu-se na última fronteira da nova Guerra Fria que opõe a Rússia ao Ocidente. Os blindados e as tropas de Moscovo controlam agora todas as infraestruturas da república separatista que protagoniza «a maior crise que a Europa já conheceu no século XXI»

Noite de sábado, 1 de março, num bar de paredes revestidas a madeira, onde bancos forrados de cabedal vermelho se atravessam à frente de mesas dispostas ao estilo de um vagão-restaurante, em Simferopol, capital da Crimeia. Nesta cave, no centro da cidade, ouve-se, estridentemente, rock russo e bebe-se cerveja local. Esperamos a chegada de um elemento da agora chamada, com alguma propriedade, «resistência»: um dos poucos membros das milícias AutoMaidan que, há uma semana, tomaram o poder em Kiev e que não vai debandar da capital da Crimeia, região agora considerada como «território ocupado». Daqui por umas horas, a Ucrânia convocará todos os reservistas das suas forças armadas. Espera-se uma guerra.

Acabo de decidir ficar numa cidade que, com uma rapidez estonteante e quase sem ti­ros, foi tomada de assalto por forças especiais russas, operando sem bandeira. Uma repú­blica autónoma cujo Parlamento e principais edifícios públicos estão cercados, cuja cen­tral de comunicações foi tomada e cujos ae­roportos estão fechados. Uma zona onde os jornalistas ocidentais são personae non gratae e onde estão agora a ser proibidos de entrar.

Comigo ainda se encontram Vladimir e Sergey, com quem assisti à rendição da ma­rinha costeira ucraniana, no sábado à tarde, frente aos russos, em Balaklava, uma cidade cujo porto no Mar Negro foi palco das cenas mais brutais da guerra da Crimeia, há exa­tamente 160 anos (ver Atlas). Dima - Dimitry, o fotojornalista com quem trabalho, que regressara, na véspera, a Kiev para afazeres pessoais - já nem tentará reentrar na região. O grupo foi meu companheiro de viagem durante mais de mil quilómetros e, juntos, passámos inúmeros momentos de tensão, nas últimas 36 horas.

A NATO é Bruxelas e hoje é sábado!
Ainda há pouco, quando regressávamos de Sebastopol, tivemos uma reunião impro­vável, num restaurante de estrada. Após termos ido ao aeroporto de Belbek, apenas para verificarmos que se tratava de mais um tomado pelos russos - o terceiro -, e conse­guido passar por outro checkpoint das milí­cias nacionalistas locais, vemos um grupo de jornalistas que come um bortch (uma sopa) e discute de forma nervosa. Há um par de ho­ras, o Duma - o Parlamento, em Moscovo - apro­vou uma resolução que permite ao Presiden­te o uso da força militar na Crimeia - como se ela não estivesse já no terreno.

Mikhail, um jovem ucraniano que veste um muito fluorescente colete a dizer «PRESS», e que aparenta ser o produtor de Sergio Cantone, jornalista da Euronews, está muito as­sustado: «Sergio, temos de partir agora ou já não partiremos», garante ele, bem rela­cionado com a comunidade ucraniana local. «Eu não sei como te explicar isto, mas, daqui a umas horas, os russos vão estar por todo o lado, aqui. É a guerra, Sergio. Como mais queres defini-la?!»

Vladimir e Sergey, já sentados, acenam com a cabeça: «Da.»[Sim]. Oferecem os três lugares vagos do familiar Mitsubishi, para quem quiser fugir. «Putine é um predador e, se lhe derem oportunidade, só parará em Kiev - quando muito, deixa o lado ocidental para os ucranianos. Quando os russos che­garem, vai haver pânico em todo o lado, as bombas de gasolina vão ficar vazias, os mul­tibancos sem dinheiro, as estradas engarra­fadas. Provavelmente, Kiev cortará o forne­cimento de eletricidade e a água à Crimeia. Vai ser o caos. Temos de sair daqui», diz, num tom calmo, mas grave, Vladimir, um ex-con­sultor imobiliário que a crise transformou em perito de energias alternativas. É um tipo forte, alto e ponderado, e esta é a primeira vez que o vejo alarmista.

«Mas e a NATO?», interroga outro dos presentes. «A NATO garantiu estar pronta para “defender a unidade territoria” da...» «A NATO?!» interrompe Sergio, entre o di­vertido e o irritado. «A NATO é Bruxelas e hoje é sábado, compreendes?!»

São momentos tensos, em que alguns re­pórteres decidiram partir e outros decidi­ram ficar. Eu decidi ficar. Vladimir, Sergey, Dima e eu vamos separar-nos. Não sem an­tes, no entanto, eles se assegurarem que eu tenho, ao menos, alguém a quem telefonar, em caso de emergência, um apoio local, caso queira fugir. É por isso que estamos, agora, nesta cave de Simferopol, a ouvir rock pesa­do de Moscovo. Para compreender como me encontro com milícias pró-Ucrânia em terri­tório pró-russo, é preciso recuar um pouco.

É sexta-feira, 28 de fevereiro, de manhã, e acabo de percorrer de carro, durante toda a noite, os mais de mil quilómetros que separam Kiev de Simferopol. Começo a pensar se terei tomado a decisão correcta, na noite anterior, quando rasguei um bilhete de avião que a bonita Alyona me arranjou, à última hora. Esta mulher, de 30 anos, espécie de re­lações públicas do Hotel Dniepro e apoiante da revolução da Praça da Independência de Kiev, ajudou-me muito, nestes dias, na ten­tativa, falhada, de encontrar quarto e apoio logístico em Simferopol. Insistira em vir en­tregar-me pessoalmente o bilhete ao quarto, com um sorriso, e uma estranha despedida: «Tem uma boa vida.»

Falhado um último telefonema, e sem garantir qualquer rede de apoio local, deci­di viajar não de avião mas de carro com os membros da AutoMaidan, uma das milícias mais moderadas das Samooborona (autode­fesa), que vão, incógnitos, numa missão de reconhecimento à Crimeia. Tomei-a porque me assegurava tradutor, liberdade de movimentos e alguma proteção, numa zona pobre e de maneiras rudes, em que quase ninguém fala inglês. Pus uma única condição: a de que não houvesse armas na Mitsubishi - o que foi, aparentemente, aceite.

Combinámos encontrar-nos junto da Casa da Ucrânia, Praça Europa, pelas 1 e 30 da manhã. Setphan e Guillaume, dois jor­nalistas, do Le Figaro e de um grande diário francófono suíço, que estiveram para seguir connosco, afinal, decidiram ir de avião: tive­ram sorte, o seu voo será o último a aterrar, antes de os russos terem fechado por completo, por mais de 48 horas, o espaço aéreo a aeronaves civis.

Percorremos, pois, juntos, Mika, Vladimir, Sergey e eu, durante toda a noite, os mais de mil quilómetros que separam Kiev de Simferopol. Depois de apenas duas horas de viagem, acaba a floresta e começa a estepe gelada, de aldeias esparsas e de ar inóspito, com casas de telhados de zinco e caixilhos de madeira, muito pobres. Pelo caminho, ainda falámos um pouco, antes de cada um dormi­tar. A conversa com as milícias da Praça da Independência, começa, como de costume, por temas nacionalistas - as Samooborona são um movimento político muito eclético, mas sempre de pendor extremista, quando toca à defesa dos interesses da pátria. Uma reação que explicam pela sua própria história de subjugação soviética.


«Kiev cortará o fornecimento de eletricidade e água à Crimeia. Vai ser o caos. Temos de sair daqui!»
VLADIMIR, EX-CONSULTOR IMOBILIÁRIO

 Indignados e unidos
Em dezenas de cidades do Leste da Ucrânia mantêm-se as manifestações a favor de Moscoco e contra o novo Governo em Kiev: «Irmãos na Rússia, escravos na Europa», dizem alguns cartazes


A nova “República Independente
Conversamos, depois, sobre a importância de Sebastopol - «nós chamamos-lhe a cidade dos marinheiros russos» -, um enorme porto onde a marinha moscovita deita âncora desde o século XVIII, que lhe permite controlar o Mar Negro e lhe oferece uma saída para o Mediterrâneo, através do estreito do Bósforo, na Turquia. Sempre foi uma cidade com um estatuto especial e, como se verá mais à frente, a sede da riqueza russa na região. O aluguer da base foi renegociado por Victor Ianukovich, até 2042, e como contrapartida a Ucrânia teve uma redução de 30% nos preços do gás russo - indispensável não só à Ucrânia como à Europa Central.

O domínio do território da Crimeia por Kiev foi ratificado pelas grandes potências - China, Rússia, EUA, Reino Unido e França - nos acordos de Budapeste, quando, em 1994, se negociou a entrega das armas nucleares da Ucrânia, em troca da promessa da manutenção da sua integridade territorial. O país é, assim, a única potência nuclear do mundo que deixou de sê-lo - «e estamos a pagá-lo bem caro: é a palavra que os russos têm», diz um dos meus interlocutores.

Depois da independência, os tártaros, que tinham sido deportados por Estaline para regiões tão distantes como o Usbequistão, começaram a voltar - é por isso que hoje se pode comer samsa, um prato de carneiro gorduroso, cozido em forno de lenha, dentro de um pão, nos botecos da beira da estrada -, constituindo agora 12% por cento da população. «Estão muito bem organizados, numa única associação política, e com eles os rus­sos não se metem. Os ucranianos, ao con­trário, são 24%, talvez um pouco mais, mas dispersam os seus votos por vários partidos e nunca elegem deputados regionais».

Pelas nove da manhã, ainda ecoam as es­tranhas palavras de Alyona na minha cabeça, quando se dá o primeiro sobressalto. «Check- point, checkpoint. Berkut, Berkut». Umas horas antes, enquanto me preparava para a viagem, tinha lido descrições de como grupos de jor­nalistas haviam sido recebidos pelos agentes da dissolvida polícia antimotim que en­contraram refúgio na Crimeia. «Porque não reportaram quando um dos nossos perdeu uma mão?», questionam, zangados, antes de acusarem uma equipa de repórteres de par­cialidade e instigamento à violência. «Porque são agentes dos americanos?», gritam.

Percebo então, horrorizado, que alguém, provavelmente por conforto, para dormir, tinha atirado para o meu lado oseu colete à prova de bala, que pertencera, antes, a um agente da Berkut. Tenho apenas tempo para o esconder debaixo de um saco de viagem - e rezar para que o carro não seja inspecionado. Os homens estão armados de kalashnikovs.
É cedo, mas alguns já bebem cerveja. Fazem perguntas, o carro é revistado - mas ape­nas a bagageira: entramos. Estamos agora, como diz um cartaz com a tricolor russa, na «República Independente da Crimeia».
 As heranças de Simferopol
No dia 27 de Fevereiro, o Parlamento da capital da Crimeia foi ocupado e logo começaram as manifestações a favor e contra a Rússia. Os tártaros, simpatizantes do novo Governo em Kiev, receiam agora novas represálias. Este grupo étnico foi maioritário na região desde o século XIII até à Segunda Guerra Mundial.


“Provocatio! Provocatio!”
Avenida Alexanderneveskiv, edifício do re­presentante da Presidência da Ucrânia na Crimeia, em Simferopol, capital da região, pelas 11h00. Uma centena de milicianos pró-russos exibem velhas bandeiras azuis, bran­cas e vermelhas, com a foice e o martelo da marinha soviética, que estavam em desuso mas foram desenterradas dos baús. Estão ali para se assegurarem, pela força, se neces­sário, que o novo representante do recém-indigitado Presidente interino da Ucrânia, Oleksander Turchynov, não poderá exercer funções, cercando a entrada da residência.

Ali ao pé, na gigantesca Praça Lenine (aqui, as estátuas de Lenine ainda não caíram), a porta de entrada da Administração Gover­namental está tomada por mais de uma de­zena de militares armados, bem equipados e mudos. O mesmo acontece com o Parlamen­to regional, invadido, dia 27 de fevereiro, por um grupo de comandos vestidos de negro e no qual foi «eleito», à porta fechada e sem quórum, um novo primeiro-ministro.

Trata-se de Sergey Aksyonov, líder de um partido ultranacionalista minoritário (4%, nas últimas eleições parlamentares) que defende a reunificação da Crimeia com a Rússia. Junto das fronteiras que separam a Ucrânia da Rússia, 150 mil militares russos, 80 aviões, 880 tanques e 88 navios realizam «manobras de treino» já «previamente pro­gramadas». A comunidade tártara da Cri­meia não reconhece o novo líder da região e recusa falar com esse novo Governo. «Isto já é uma guerra», afirmam os dirigentes.

De repente, a pequena multidão da Avenida Alexanderneveskiv - até aí em clima de confraternização patriótica, comemorando a chegada dos russos - enfurece-se:«Provocatio, provocatio», gritam-me aos ouvidos. Andriy - um jovem que nos acompanha e que acabara de me ser apresentado – começa a ser esmurrado, afastando-se em passo acelerado. Estamos no meio de uma multidão irada, com bastões, garantida por vários militares armados, e as palavras de Olyana - «tem uma boa vida» - soam-me agora a uma profecia tétrica. Alguns polícias intervêm para proteger o homem, de ar juvenil, reconhecido como ucraniano, e, pior ainda como um dos líderes locais do movimento Maidan. Obviamente não é bem-vindo. Saímos, rapidamente.

“Há já semanas que mandei a minha família para o campo», conta agora, numa sala de refeições vazia, num segundo andar de um café, Andriy Shchekien, 40 anos. «Isto não é seguro para nenhum ucraniano. Nessa altura, todos os dirigentes a favor da integração na Europa receberam uma 'carta negra’, nas suas casas, um aviso claro de que as suas vidas correm perigo.» No princípio da revolta, Kiev, há três meses, a igreja de um padre presente na reunião, que pediu o anonimato, foi queimada. Razão? «Sou do patriarcado de Kiev, não do de Moscovo», explica.

Por volta das 5 da tarde começa a escurecer. Vladimir e Sergey têm uma casa-refúgio à sua espera e eu pretendo ainda arranjar hotel (preciso de internet; um luxo que o apartamento, nos subúrbios, não tem). Mas, às 18h00 chega a notícia: uma coluna militar russa que terá saído de Sebastopol sem a necessária prévia autorização de Kiev, dirige-se à capital. Seguimos, pois, pela es­trada que leva a Bacthtisaray, o antigo pos­to de controlo militar de Sebastopol, a uns 30 quilómetros. Está lá, de facto, uma coluna militar composta por velhos veículos - tão velhos que um se avariou e os outros não pa­recem em melhor estado. Como de costume, os russos, não dizem ao que vêm. «Secret», ainda consigo arrancar a um.

O ex-Presidente Ianukovich, entretanto, fez novo discurso, o segundo esta semana. É agora oficial: está na Rússia, sob a proteção de Putine. Diz que ainda se considera Chefe de Estado ucraniano e, curiosamente, consi­dera a Crimeia parte do seu país. São agora 08h00 da noite. Confesso que estranhei a fa­cilidade com que arranjei quarto, no Hotel Jaguar, a apenas cinco quilómetros do cen­tro de Simferopol e por, apenas, 300 grivna (30 euros).

Simferopol, a cidade dos Lada
Sábado de manhã, 1 de março. Simferopol é uma cidade feia. Percebo agora, ao olhar para os símbolos da Land Rover, Toyota e outras marcas que decoram o hotel, um edifício de três andares, porque se chama Jaguar: trata- se de um stande de automóveis reconverti­do em unidade hoteleira, e o dono não teve outro remédio senão aproveitar para seu nome o maior dos símbolos presentes na fachada. Tem wi-fi, mas, em compensação, não tem telefomnes e a electrividade falha, de tempos a tempos.

À sua frente, estão velhos prédios de cinco andares, de construção soviética, que já pas­saram o prazo de validade. «Sabe-se que não caem nos próximos cinco anos, depois disso ninguém sabe», diz Vladimir, evocando a sua experiência de profissional do imobiliário. Não há passeios para os peões, as estradas estão esburacadas e o meio de transporte mais comum ainda são os velhos Lada - e mesmo estes são para a classe média baixa. Os pobres deslocam-se de bicicleta, na qual pregam grandes caixotes de fruta que ser­vem para transportar a bagagem. Há muitos cães abandonados nas ruas.

Dirigimo-nos outra vez para o centro da cidade - sem Andriy, para evitar problemas. Todas as entradas continuam sob dupla guarda. Noto que me enganei e trouxe um bloco de apontamentos da semana passada, sobre Kiev. O espaço aéreo da Crimeia con­tinua fechado, há notícias de que 2 mil solda­dos russos protagonizaram uma ponte aérea que terá ainda envolvido dez helicópteros e outros aviões de transporte.


«Todos os dirigentes a favor da Europa receberam uma ácarta negra’, um aviso de que as suas vidas correm perigo»
ANDRIY SHCHKIEN, activista

Os jornalistas russos são recebidos de braços abertos pelas milícias, os ocidentais são vistos com desconfiança, e nós estamos marcados: «Provocatio; provocatio.» Não adianta tentar entrevistar russos, os nacionalistas seguem-nos e afastam-nos das pessoas. Estamos proibidos de fotografar. A dada altura, sou rodeado por quatro milicianos que me arrancam das mãos o caderno de apontamentos. «Está confiscado», afirmam. «Niet problem», arrisco dizer.

Seguimos agora para Balaklava, que foi, em tempos, uma «cidade fechada» soviética. Albergava uma antiga oficina de reparação de submarinos, num canal escavado numa gigantesca montanha, a fazer lembrar um filme do 007. Descoberta pelos serviços secretos ocidentais, foi sendo progressivamente abandonada, até se transformar num museu. Ainda ali existe uma base da marinha ucraniana, mas são os restaurantes chiques sobre o porto, as barraquinhas de souvenirs e de equipamentos de praia e os gigantescos iates na marina que se destacam, hoje, na paisagem.

Um cruzeiro no Mar Negro
Pode parecer estranho que, a meio de uma invasão russa, nos preparemos para entrar a bordo da Península da Tatiana, uma velha embarcação de pesca transformada em na­vio para pequenos cruzeiros no Mar Negro. Mas é exatamente o que fazemos. Como já vos disse, Vladimire Sergey têm várias «mis­sões» - e uma delas é fotografar a casa de fé­rias de Victor Ianukovich, em plena reserva natural, nas costas do Mar Negro. Será, para eles, mais um importante elemento de pro­paganda, a forma ostensivamente luxuosa como vivia o ex-Presidente.

Entramos, pois. É uma viagem de 45 mi­nutos até ao lado de lá de uma escarpa longínqua, de onde poderemos ver a casa. O Tatiana é uma casca de noz e luta contra cada onda. «Chama-se assim porque, duran­te as tempestades as ondas são enormes e ne­gras», diz o guia, ao ver o meu ar desconfor­tável. Passam por nós quatro navios de porte médio, a toda a velocidade, precisamente no local onde, ainda ontem, duas grandes embarcações de guerra russas bloqueavam todas as embarcações no porto. Levam ban­deira ucraniana.

Para distrair, o guia vai contando a histó­ria de Balaklava. Os primeiros registos têm mais de 2 500 anos de idade e, em grego, chamava-se Symbolon. Trata-se de um antigo porto para piratas de costa, os tavor, que ninguém sabe muito bem de onde vieram, mas que tinham por hábito acender fogueiras no topo dos montes onde, em 1365, os genoveses construíram um forte. A partir dessas fogueiras, os tavor atraíam navios que, ao en­trarem na enseada, eram atacados por deze­nas de pequenas embarcações. Foi palco de inúmeras batalhas navais, durante a guerra da Crimeia e os restos de navios dessa época ainda repousam nas suas águas profundas. Foi aqui que se deu a célebre batalha de Ba­laklava, que os britânicos ainda recordam como uma heróica, mas suicida, carga de cavalaria ligeira.

O cerco de Balaklava
A cidade foi também residência de férias favorita dos czares, que aqui mandaram construir um complexo de três belíssimas vilas, de um luxo estonteante, mas que fo­ram caindo em ruínas. Recentemente com­pradas e reconstruídas por Olegksander Ianukovich, o dentista filho do ex-Presidente, agora bilionário, nunca terão sido utili­zadas. «Comprou-as para coleção, nunca cá veio», afirma o guia.

E chegamos à casa que Vladimir quer foto­grafar. Parece tratar-se de mais um chalet ao estilo suíço (que ainda está em construção), de quatro andares, com gigantescas janelas rasgadas sobre a costa. Tem um ancuradouro próprio, onde o iate da família – significativamente chamado Bandido - deverá atracar, uma vez acabada a obra. Era um antigo sana­tório soviético, comprado por um oligarca, cujo filho assassinou alguém. Depois, e de uma forma habitual nos processos da justi­ça ucraniana, o assassino acabou libertado, o sanatório demolido e a propriedade nas mãos de Ianukovich - que aí mandou cons­truir mais um dos seus «palácios».

Missão cumprida, as fotos estão tiradas.

Eis quando, a meio do caminho de re­gresso, pelas redes sociais e plataformas de comunicação por voz com as quais as Samooborona sempre se mantêm informadas, Sergey dá a notícia: 300 forças especiais rus­sas acabam de cercar a base naval de Balaklava - precisamente onde estamos. «Então os navios ucranianos que nós vimos estavam a fugir», digo. «Da», acenam em simultâneo.

Chegados ao porto, uma criança anda de bicicleta com uma bandeira azul, branca e vermelha e, um pouco mais à frente, a infor­mação confirma-se: os russos acabaram de chegar e negoceiam - com sete ou oito mi­litares ucranianos dos que ficaram para trás - a rendição. É uma imponente afirmação de poder: oito camiões de transporte militar cheios, cinco enormes jipes - Tiger’s, cha­mam-se aqui - encimados por metralhado­ras, rodeiam a entrada. Os soldados, estão, como de costume, equipados ao estilo força especial: não lhes falta sequer um estranho dispositivo para beberem água directamente de um pequeno recipiente que trazem às costas. Dois pormenores interessantes: as matrículas são russas, os jipes tinham uma estrela vermelha que a marinha moscovita ainda usa em algumas embarcações de maior idade, que foi arrancada, mas é visível, por causa das diferentes camadas de pó.

Será uma informação irrelevante: daqui por um par de horas, Putine, respondendo a dois supostos «ataques de nacionalistas ucranianos», reconhecerá que enviou tro­pas para a Crimeia. Trata-se de mais uma manobra da velha escola soviética a que o Presidente da Rússia, um ex-KGB, pertence: quando as imagens forem difundidas toda a gente terá a possibilidade de ver que os cami­ões dos supostos ataques estavam matriculados na Crimeia e que boa parte das armas neles usadas são exclusivas do exército russo. Resta agora saber o que se sehue.


Chegamos ao chalet  inacabado de lanukovich. Tem um ancoradouro onde pode ter estado o Bandido, o iate do ex-Presidente


Pode a Crimeia ter o mesmo destino que as duas regiões separatistas da Geórgia que se autoproclamaram independentes em 2008, com o apoio de Moscovo? E onde vigoram regimes autoritários que praticamente nin­guém reconhece? Pode a Crimeia alimentar um conflito generalizado entre a Rússia e a Ucrânia, provocando inúmeras divisões nes­ta última?

A resposta do Ocidente - de que haverá «consequências», como a suspensão das reuniões preparatórias da Cimeira do G-8, agendada para Junho, em Sochi - não deixa antever, para já, nenhum recuo de Moscovo. Muitos ucranianos sentem-se traídos.

Sábado, ao final da tarde, somos avisados de que Andriy pegou na família e fugiu em di­reção a oeste. O mesmo fizeram dezenas de ativistas conotados com os novos governan­tes em Kiev. Seguir-se-á a votação unânime da autorização para o uso da força, da Duma, em Moscovo, o pânico dos jornalistas à beira do restaurante de estrada e, na velha cave/bar de Simferopol, a minha separação de Vladimir e Sergey - que ainda me escrevem uns quantos números de telefone de «ami­gos» no bloco. Com um abraço e um recado: «Desta vez, não deixes qu Putine tem sido aclamado pore to apanhem.»

 Os alvos de Moscovo
Na capital russa, o Presidente Putine tem sido aclamado por combater os «banderovski» ucranianos, os supostos herdeiros de Stefan Bandera, um polémico líder da Ucrânia Ocidental que colaborou com os nazis e morreu assassinado, aos 50 anos, emMunique, na Alemanha






Consequências Merkel e o frenesim diplomático
A Europa pode estar à beira de uma nova guerra. Quem o diz é o Governo polaco e os desenvolvimentos dos últimos dias parecem dar-lhe razão.
A escalada político-militar entre Moscovo e Kiev tem sido imparável e o Governo interino ucraniano já acusa o Kremlin de «agressão militar». Por isso mesmo, decidiu, esta semana, colocar o exército em alerta máximo, mobilizar os reservistas do país e tudo fazer para defender as suas fronteiras: «Jamais entregaremos a Crimeia», garantiu, a 3 de março, o primeiro-ministro, Arseni latseniuk. Os tambores bélicos impuseram um frenesim diplomático nas principais chancelarias do planeta, com vários dirigentes europeus e dos EUA a viajarem para as capitais ucraniana e russa, de modo a negociarem uma solução pacífica para a crise, ao mesmo tempo que, em Genebra e Nova Iorque, se sucedem as reuniões sob a égide das Nações Unidas. No entanto, tudo indica que a crise pode vir a ser resolvida em Viena de Áustria, através da Organização para a Cooperação e Segurança na Europa (OCSE).
Graças a Angela Merkel, que fala russo e terá convencido Vladimir Puntine nesse sentido, a organização deverá promover um grupo de contacto que pode vir a acordar o envio de observadores para a Ucrânia.
Objetivo: mediar o diálogo entre as partes desavindas.
Uma novela que promete muitos e imprevisíveis episódios...





Sebastopol 'Uma guerra de dois mundos’
Não é preciso andar muito por Sebastopol, uma autêntica cidade-estado, para se perceber que esta cidade é, em simultâneo, a mais rica, a mais russa e a mais militarizada da península da Crimeia – não albergasse ela a frota russa do mar Negro. A autarquia desenvolve-se à volta do gigantesco porto, onde existem dezenas de enormes gruas, rebocadores e navios de guerra. Os seus prédios são muito mais abastados do que os da capital, Simferopol, os automóveis são quase todos modernos - e muitos topo de gama - e, nas sua praças, estão semeados lindíssimos monumentos à memória imperial russa ou soviética. Os seus jardins, as suas casas apalaçadas com bustos de poetas e heróis russos nas frontarias, fazem lembrar algo de São Petersburgo. Até o hábito de espalhar velhos tanques T-39 nas praças urbanas, aqui, é substituído pela exposição dos mais modernos Mig 21 ou 29.
Koista, Anatoly e Alek praticam o orgulhoso culto do heroísmo histórico da cidade de Sebastopol, que vendeu cara as suas derrotas (em particular o cerco franco-britânico, durante a guerra da Crimeia, e o cerco nazi, na Segunda Guerra Mundial). Os três jovens fazem parte de uma associação arqueológica dedicada a descobrir os sítios militares de possível escavação, para a «maior glória da cidade» e estão com uma bandeira branca com uma cruz azul (a atual bandeira da Marinha) na Praça Almirante Nahimov. São eles quem nos explica as razões dos russos, neste conflito - que alguém escreveu ser, sobretudo, uma guerra de televisões - e aqui só chegam televisões russas: «Nós nunca aceitaremos o fascismo e foram os nacionais-socialistas, inspirados pelas potências ocidentais, que tomaram o poder, na rua, em Kiev.
Agora aqui estamos a fazer o mesmo: a tomar o poder com as nossa mãos: se os ucranianos podem, porque é que nós não podemos?», perguntam.
Mas Julia Timoshenko, a ex-primeira-ministra que poderá ser candidata à presidência da Ucrânia nas eleições de 25 de maio, é fascista? «Não, mas apoiou-os, vai dar ao mesmo.»
E as casas, a corrupção de Ianukovich, não vos interessam? «Nós não estamos com Ianukovich, mas as casas dele não são diferentes das dos outros políticos ucranianos.
Kiev nunca nos ligou nenhuma, nunca cá chegou dinheiro nenhum.
E um dos últimos insultos foi anularem a lei que permitia, também, o uso do russo como língua oficial.
É uma guerra de dois mundos: eles não querem o nosso e nós não queremos o deles!»

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Observador da OSCE libertado no Leste da Ucrânia, sete ainda estão detidos

Viatcheslav Ponomarev, de pé, ladeado pelos observadores da OSCE
JOÃO MANUEL ROCHA 27/04/2014 - 14:08 (actualizado às 17:48)
Um dos representantes da OSCE foi libertado na tarde deste domingo. Decorrem contactos entre a organização e os rebeldes pró-russos. Separatistas ocuparam a delegação da televisão ucraniana em Donetsk.

Os oito observadores internacionais detidos por pró-russos no Leste da Ucrânia desde sexta-feira foram este domingo apresentados à imprensa em Slaviansk. Vestidos à civil, aparentavam, e disseram estar, de boa saúde. Horas depois, um deles foi libertado, por precaução médica.

Uma porta-voz do grupo pró-russo que controla Slaviansk disse que o observador libertado tem nacionalidade sueca e a sua libertação se justifica por sofrer de diabetes. Questionada sobre se seria o único a ser libertado, Stella Korosheva respondeu, segundo a Reuters: "Sim".

Na manhã deste domingo, os observadores da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação da Europa) foram apresentados à imprensa e o líder do grupo de oito - inicialmente foi anunciado que eram sete, a que se somará o tradutor - disse que “todos" estavam "bem de saúde”. Axel Schneider, coronel alemão, acrescentou que nenhum sofreu maus-tratos físicos e que recebeu garantias de segurança do líder separatista local, Viatcheslav Ponomarev.

"Somos representantes da OSCE, com um estatuto diplomático", disse Schneider. O militar alemão acrescentou que, quando foram detidos, os observadores estavam a fazer o seu trabalho, dentro das regras da organização, desarmados.

Os observadores que continuavam ao fim da tarde detidos pelos separatistas pró-russos são três alemães, um dinamarquês, um polaco e um checo. Estavam na região no âmbito de uma missão da OSCE e foram acusados pelos sequestradores de espionagem a favor da Aliança Atlântica, a NATO. O grupo interceptado por separatistas inclui ainda quatro militares ucranianos. No sábado foi anunciado que um dos 13 elementos do grupo, o condutor, foi libertado.

“Desejamos do fundo do nosso coração voltar aos nossos países tão breve e tão depressa quanto possível”, declarou Axel Schneider, citado pela Reuters, no encontro com a imprensa realizada no edifício da administração municipal de Slaviank.

Os observadores, segundo a descrição das agências noticiosas, entraram na sala onde decorreu o encontro atrás do líder separatista local, Viatcheslav Ponomarev. A conversa com a imprensa decorreu na presença de guardas vestidos de camuflado e armados com espingardas automáticas Kalashikov.

“Na nossa cidade, que está em guerra, todo o pessoal militar que não tem a nossa autorização [para estar] é considerado prisioneiro de guerra”, disse, no sábado, Viatcheslav Ponomarev que, segundo a AFP, rejeitou na mesma altura o uso do termo “refém”. Os observadores disse, “não são nossos reféns, são nossos convidados".

“Os soldados são reféns da situação, mas penso que tudo ficará bem. Vamos chegar a alguma forma de acordo”, afirmou também. O líder separatista de Slaviansk, uma das cidades do Leste da Ucrânia controlada por pró-russos, tem feito depender a partida dos observadores da libertação pelas autoridade ucranianas de militantes da sua causa.

Ao longo deste domingo têm decorrido contactos entre uma delegação da OSCE enviada para discutir a libertação e rebeldes pró-russos. O grupo detido em Slaviansk faz parte de uma missão de cerca de cem observadores enviados pela OSCE para o Leste da Ucrânia.

A Reuters noticiou entretanto que separatistas ocuparam a delegação regional da televisão estatal ucraniana na cidade de Donetsk. "Dizem mentiras, tentam influenciar as pessoas, fazem desinformação", disse um dos homens mascarados que montou guarda à entrada do edifício. Os pró-russos já controlavam os edifícios da administração central na cidade.


Na segunda-feira prevê-se que os EUA e a União Europeia imponham sanções à Rússia, a qual responsabilizam pela crise ucraniana. Obama repetiu este domingo a ideia de que os EUA e a Europa devem juntar esforços como forma de pressão para levar a Rússia a travar a desestabilização do leste da Ucrânia. O Presidente dos EUA disse que as autoridades de Moscovo não só não “levantaram um dedo” para levar os separatistas pró-russos a desarmarem e a desocuparem edifícios públicos que ocupam como “há fortes provas de que encorajam as suas actividades” - o que a Rússia sempre tem negado. Declarações de responsáveis norte-americanos e europeus indicam que as sanções poderão ser anunciadas nesta segunda-feira.

Presidente de câmara de Kharkov, no Leste da Ucrânia, ferido a tiro

Separatista pró-russo à porta do edifício da administração de Kostiantinivka
PÚBLICO 28/04/2014- 12:06 (actualizado às 17:50)
 Separatistas pró-russos tomaram, também esta segunda-feira, o controlo da sede da polícia e do edifício da administração da cidade de Kostiantinivka. Observadores da OSCE continuam detidos em Slaviansk.

O presidente da câmara de Kharkov, no Leste da Ucrânia, foi gravemente ferido a tiro nesta segunda-feira. O ataque foi cometido por desconhecidos, informou o município.

Gennady Kernes, presidente da segunda maior cidade da Ucrânia, pró-russo, foi atingido nas costas, quando circulava de bicicleta.
“Os médicos estão a lutar para lhe salvar a vida”, disse a porta-voz do município, Tatiana Gruzinskaya, citada pela agência Interfax Ucrânia.

O autarca está a ser alvo de uma investigação judicial por suspeita de rapto e tortura mas mantém-se em funções. É acusado de, durante os três meses de protestos que levaram à queda do regime pró-russo de Viktor Ianukovich, em Fevereiro, ter respondido com repressão violenta à contestação. Chegou a fugir da cidade após a queda do ex-Presidente mas depressa regressou.

Também esta segunda-feira, separatistas pró-russos tomaram o controlo da sede da polícia e do edifícios da administração da cidade de Kostiantinivka, informou um porta-voz da administração regional de Donetsk. “Penso que são as exigências do costume, as mesmas de outras cidades, o cenário não muda: referendo e sistema de governo federal”, disse Ilia Suzdaliev.

Em Donetsk, 300 militantes pró-russos mascarados e armados de tacos de basebol atacaram durante a manhã uma agência do banco Privat do milionário e governador Igor Kolomoiski, noticiou a AFP. “Kolomoiski fascista!”, “Kolomoiski inimigo do povo", gritavam. O milionário foi recentemente nomeado governador da vizinha região de Dnipropetrovsk, com o objectivo de tentar travar os ímpetos separatistas.

À tarde, pelo menos cinco pessoas ficaram feridas, aparentemente sem gravidade, quando, segundo um repórter da Reuters, separatistas pró-russos tentaram dispersar uma manifestação de apoio à unidade da Ucrânia. Os ferimentos terão sido provocados por granadas de atordoamento.

Sete observadores internacionais permaneciam ao fim do dia detidos por pró-russos, que os sequestraram sexta-feira noutra cidade do Leste da Ucrânia, Slaviansk. No domingo foi libertado um oitavo, um sueco que sofre de diabetes. Nas mãos dos separatistas estão três alemães, um dinamarquês, um polaco e um checo que estavam na região em serviço para a OSCE (Organização para a Cooperação e Segurança na Europa).

Esta segunda-feira, os EUA e a União Europeia devem impor sanções à Rússia, a qual responsabilizam pelos levantamentos pró-russos no Leste da Ucrânia. O presidente norte-americano, Barack Obama, repetiu no domingo a ideia de que os EUA e a Europa devem juntar esforços para pressionar o governo de Moscovo.

Cooperação e Segurança na Europa).