JORGE ALMEIDA
FERNANDES 21/03/2014 - 11:49
Ao anexar a Crimeia, Moscovo cortou as pontes com o Ocidente. Mas não desistiu da
Ucrânia, sem a qual a União Euro-Asiática não tem viabilidade. Por isso a
Ucrânia será o principal cenário dos confrontos que se anunciam.
A anexação da Crimeia abriu uma fase de confronto aberto
entre a Rússia e o Ocidente, com repercussões para lá da Europa. Relançou o
quase falhado projecto da União Euro-Asiática (UEA). A decisão significa, por
outro lado, uma “viragem decisiva” na política externa russa. O próprio Vladimir
Putin proclamou no discurso sobre a Crimeia que “a fase pós-soviética da
História russa e mundial está encerrada”. Ou seja, mudou a ordem em vigor há
mais de 20 anos — não apenas a da Europa Oriental, mas também as regras do
xadrez mundial.
“Estamos no
princípio e não no fim de uma turbulenta evolução dos acontecimentos”, diz à
AFP Nikolai Petrov, da Alta Escola de Economia de Moscovo. “Agora, a pergunta
é: o que se vai passar a seguir?”
Antes do
referendo de 16 de Março, analistas e diplomatas aguardavam a decisão de Putin.
Assinaria
imediatamente a integração da Crimeia na Rússia ou guardá-la-ia na manga como
trunfo negocial para negociar, com Kiev e com o Ocidente, uma ordem favorável
na Ucrânia? Ao escolher a primeira opção cortou as
pontes. Abriu um precedente que incentiva as secessões. O argumento da
protecção das minorias russas alarma os vizinhos, amigos ou adversários.
Os
ocidentais não tiveram a percepção da “ameaça” que a expansão da zona de
influência da UE representava para a elite russa. Putin não é irracional. A
racionalidade das suas acções é que não corresponde aos quadros de pensamento
da Europa Ocidental.
Que se segue?
Em termos
económicos e militares a Rússia está em patente inferioridade perante os Estados Unidos. Mas, para Moscovo, o que está em jogo na Ucrânia não tem comparação com o
que esta significa para europeus e americanos, o que incentiva Putin a correr
riscos mais elevados. A Ucrânia e a Bielorrúsia são “Estados-tampões” que
Moscovo considera vitais para a sua segurança.
Há outros factores. “Primeiro, o poderio russo está ao lado. Segundo, os
europeus não têm poderio.
Terceiro, os americanos estão muito longe” — observa o americano George
Friedman, presidente da agência de informação Stratfor. Paradoxalmente, a
invasão mascarada da Crimeia foi uma “intervenção de baixo risco, uma
acção low cost que desfez a impressão de que o poder
russo sofria uma hemorragia”. Anulou a humilhação de Fevereiro em Kiev.
A diplomacia europeia – escreve o Monde
– “está em estado de choque”. Os EUA serão forçados a entrar em cena, mas,
perante o novo quadro, têm de repensar todo o quadro da sua relação com a
Rússia. E, num mundo multipolar, as relações nunca são apenas bilaterais. A
curto prazo, Moscovo tem capacidade para criar problemas a Washington e
Bruxelas em áreas críticas – como a Síria ou o Irão – ou para destabilizar
países na sua periferia.
Que se segue? Sugere Friedman: “A mais provável estratégia que a Rússia
seguirá será uma combinação de acções: pressão na Ucrânia com algumas incursões
limitadas; criar agitação nos bálticos, onde vivem grandes minorias russófonas,
tal como no Cáucaso ou na Moldávia. “Na Moldávia, as autoridades da
Transnístria, área russófona que se autoproclamou independente, pediram já a
integração na Rússia.
A Ucrânia
É na Ucrânia que se centram as atenções. É a chave da União Euro-Asiática.
Moscovo não se apoderou da Crimeia para compensar “ a perda da Ucrânia”. Não
desistiu de Kiev. Com ou sem “incursões”, mas certamente com um crescendo de
agitação nas cidades do Leste e do Sul, Moscovo tem um plano: uma federalização
que daria às regiões federadas não só autonomia em política interna, mas também
a liberdade de escolherem as suas relações internacionais. Moscovo não se
satisfaz com uma “finlandização” da Ucrânia, ou seja, com um estatuto de
neutralidade e a garantia de não integração na NATO. Cada região ucraniana “deve
ter a oportunidade de autodeterminação na sua política externa”, escreveu em
Fevereiro Serguei Glaziev, presidente da Comissão de negócios Estrangeiros da
Duma russa. O poder de Kiev estaria sempre refém das regiões russófonas.
Um analista liberal russo, Dmitri Trenin, do Carnegie Center de Moscovo,
argumenta que a Ucrânia chegou a um ponto tal que a federalização pode ser o
único meio de manter o país unidos e de evitar uma guerra civil. ”As
alternativas podem ser piores.”
A capacidade de interferência de Moscovo tem, no entanto, limites. Se há
uma divisão, há também um nacionalismo ucraniano. Primeiro, a grande maioria da
população do Leste e Sul é favorável a uma integração económica no bloco russo
mas francamente hostil a uma integração política na Rússia. Segundo, um excesso
de intervenção arrisca-se a colocar em Kiev um governo manifestamente
anti-russo.
Em qualquer cenário, a Rússia tem a ganhar com uma Ucrânia económica e
institucionalmente caótica. Foi a principal “alavanca” para o seu controlo
sobre Kiev. O resto são incógnitas.
Dos Bálticos à Ásia Central
Mais difícil para Moscovo será a desestabilização dos países bálticos,
membros da NATO. Pode haver uma vaga de agitação, mas os russófonos bálticos
têm um nível de vida que os russos invejam.
No Cáucaso, a agitação é uma constante. O novo Governo da Geórgia reaproximou-se de Moscovo por razões
pragmáticas mas recusa-se a cair na órbita russa.
Continua a privilegiar as relações com o Ocidente. O Azerbaijão, economicamente independente graças ao petróleo, sempre recusou a hipótese
de adesão à UEA, jogando habilmente entre Moscovo e o Ocidente. A Arménia, sem
recursos, optou pela aliança com Moscovo.
Que se passa na Ásia Central? Note-se que foi nesta área —
rica em gás e petróleo — que os americanos começaram a corroer a influência de
Moscovo. O Cazaquistão, pilar da união aduaneira com a Rússia e a Bielorrússia,
não gostou da anexação da Crimeia. O seu Presidente “eterno”, Nursultan
Nazarbaiev, criticou Moscovo: o seu país tem uma enorme minoria de “russos
étnicos” e não aceita que ela sirva de pretexto para ingerências. Procura um
equilíbrio entre os dois vizinhos gigantes, a Rússia e a China, servindo-se de
um para compensar o peso do outro.
Os outros países da região têm posições distintas. Se o Tajiquistão e a
Quirguízia são candidatos à adesão à UEA, o Uzbequistão navega entre a Rússia e o Ocidente. Por fim, o Turquemenistão afastou-se de
Moscovo, aproximando-se do Ocidente e da China.
O futuro da UEA
O projecto da União Euro-Asiática foi lançado por Vladimir Putin no dia 4 de Outubro de 2011, pouco antes
da sua reeleição. Apresentou-o como o desígnio central
do seu segundo mandato.
“Propomos uma associação supranacional poderosa, capaz de se tornar num dos
pólos do mundo moderno e que servirá de ponte entre a Europa e a dinâmica
região Ásia-Pacífico.”
Ainda que partilhando temas das antigas ideologias eslavófilas e
euro-asiatistas, que exaltam a superioridade e o destino histórico da Rússia
perante a cultura “corrompida” do Ocidente, é uma ideia moderna. Não é uma
viragem para a Ásia, depois da viragem ao Ocidente na era de Gorbatchov e
Ieltsin. “De facto, a Rússia continua à procura de si mesma, incluindo do seu
próprio papel no mundo. A Rússia não pode e não poderia ser Ásia”, comentou
Dimitri Trenin.
Representa um desígnio de Putin desde que tomou o poder: restabelecer a
grandeza e o poderio da Rússia. Para isso tentou várias fórmulas de progressiva
integração do espaço pós-soviético. Não se resume a uma reconstrução da União
Soviética. Insere-se num contexto “pós-imperial”, tendo em conta
as ambições da China e a crise económica do Ocidente. Esta crise surgiu como
uma oportunidade para a Rússia.
Putin vê na União o meio de restaurar o poderio e a centralidade política
de uma Rússia economicamente débil. Para isso, tem de forçar a mão a vizinhos
que têm uma má memória de serem satélites e que, por isso, resistem. A UEA não
visa apenas uma integração económica mas também política e militar.
No dia 24 de Dezembro, em plena crise ucraniana, Putin decidiu acelerar a
implantação da União, que deveria tornar-se realidade em Janeiro de
2015. O grande problema da UEA chama-se Ucrânia. Sem Kiev não
tem viabilidade. Daí a ousadia e a temeridade dos últimos gestos de Vladimir
Putin.
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