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sexta-feira, 18 de abril de 2014

Os outros alvos de Putin e o desígnio da União Euro-Asiática

 JORGE ALMEIDA FERNANDES 21/03/2014 - 11:49
Ao anexar a Crimeia, Moscovo cortou as pontes com o Ocidente. Mas não desistiu da Ucrânia, sem a qual a União Euro-Asiática não tem viabilidade. Por isso a Ucrânia será o principal cenário dos confrontos que se anunciam.

A anexação da Crimeia abriu uma fase de confronto aberto entre a Rússia e o Ocidente, com repercussões para lá da Europa. Relançou o quase falhado projecto da União Euro-Asiática (UEA). A decisão significa, por outro lado, uma “viragem decisiva” na política externa russa. O próprio Vladimir Putin proclamou no discurso sobre a Crimeia que “a fase pós-soviética da História russa e mundial está encerrada”. Ou seja, mudou a ordem em vigor há mais de 20 anos — não apenas a da Europa Oriental, mas também as regras do xadrez mundial.

“Estamos no princípio e não no fim de uma turbulenta evolução dos acontecimentos”, diz à AFP Nikolai Petrov, da Alta Escola de Economia de Moscovo. “Agora, a pergunta é: o que se vai passar a seguir?”

Antes do referendo de 16 de Março, analistas e diplomatas aguardavam a decisão de Putin.
Assinaria imediatamente a integração da Crimeia na Rússia ou guardá-la-ia na manga como trunfo negocial para negociar, com Kiev e com o Ocidente, uma ordem favorável na Ucrânia? Ao escolher a primeira opção cortou as pontes. Abriu um precedente que incentiva as secessões. O argumento da protecção das minorias russas alarma os vizinhos, amigos ou adversários.

Os ocidentais não tiveram a percepção da “ameaça” que a expansão da zona de influência da UE representava para a elite russa. Putin não é irracional. A racionalidade das suas acções é que não corresponde aos quadros de pensamento da Europa Ocidental.

Que se segue?

Em termos económicos e militares a Rússia está em patente inferioridade perante os Estados Unidos. Mas, para Moscovo, o que está em jogo na Ucrânia não tem comparação com o que esta significa para europeus e americanos, o que incentiva Putin a correr riscos mais elevados. A Ucrânia e a Bielorrúsia são “Estados-tampões” que Moscovo considera vitais para a sua segurança.

Há outros factores. “Primeiro, o poderio russo está ao lado. Segundo, os europeus não têm poderio.
Terceiro, os americanos estão muito longe” — observa o americano George Friedman, presidente da agência de informação Stratfor. Paradoxalmente, a invasão mascarada da Crimeia foi uma “intervenção de baixo risco, uma acção low cost que desfez a impressão de que o poder russo sofria uma hemorragia”. Anulou a humilhação de Fevereiro em Kiev.

A diplomacia europeia – escreve o Monde – “está em estado de choque”. Os EUA serão forçados a entrar em cena, mas, perante o novo quadro, têm de repensar todo o quadro da sua relação com a Rússia. E, num mundo multipolar, as relações nunca são apenas bilaterais. A curto prazo, Moscovo tem capacidade para criar problemas a Washington e Bruxelas em áreas críticas – como a Síria ou o Irão – ou para destabilizar países na sua periferia.

Que se segue? Sugere Friedman: “A mais provável estratégia que a Rússia seguirá será uma combinação de acções: pressão na Ucrânia com algumas incursões limitadas; criar agitação nos bálticos, onde vivem grandes minorias russófonas, tal como no Cáucaso ou na Moldávia. “Na Moldávia, as autoridades da Transnístria, área russófona que se autoproclamou independente, pediram já a integração na Rússia.

A Ucrânia

É na Ucrânia que se centram as atenções. É a chave da União Euro-Asiática. Moscovo não se apoderou da Crimeia para compensar “ a perda da Ucrânia”. Não desistiu de Kiev. Com ou sem “incursões”, mas certamente com um crescendo de agitação nas cidades do Leste e do Sul, Moscovo tem um plano: uma federalização que daria às regiões federadas não só autonomia em política interna, mas também a liberdade de escolherem as suas relações internacionais. Moscovo não se satisfaz com uma “finlandização” da Ucrânia, ou seja, com um estatuto de neutralidade e a garantia de não integração na NATO. Cada região ucraniana “deve ter a oportunidade de autodeterminação na sua política externa”, escreveu em Fevereiro Serguei Glaziev, presidente da Comissão de negócios Estrangeiros da Duma russa. O poder de Kiev estaria sempre refém das regiões russófonas.

Um analista liberal russo, Dmitri Trenin, do Carnegie Center de Moscovo, argumenta que a Ucrânia chegou a um ponto tal que a federalização pode ser o único meio de manter o país unidos e de evitar uma guerra civil. ”As alternativas podem ser piores.”

A capacidade de interferência de Moscovo tem, no entanto, limites. Se há uma divisão, há também um nacionalismo ucraniano. Primeiro, a grande maioria da população do Leste e Sul é favorável a uma integração económica no bloco russo mas francamente hostil a uma integração política na Rússia. Segundo, um excesso de intervenção arrisca-se a colocar em Kiev um governo manifestamente anti-russo.

Em qualquer cenário, a Rússia tem a ganhar com uma Ucrânia económica e institucionalmente caótica. Foi a principal “alavanca” para o seu controlo sobre Kiev. O resto são incógnitas.

Dos Bálticos à Ásia Central

Mais difícil para Moscovo será a desestabilização dos países bálticos, membros da NATO. Pode haver uma vaga de agitação, mas os russófonos bálticos têm um nível de vida que os russos invejam.

No Cáucaso, a agitação é uma constante. O novo Governo da Geórgia reaproximou-se de Moscovo por razões pragmáticas mas recusa-se a cair na órbita russa. Continua a privilegiar as relações com o Ocidente. O Azerbaijão, economicamente independente graças ao petróleo, sempre recusou a hipótese de adesão à UEA, jogando habilmente entre Moscovo e o Ocidente. A Arménia, sem recursos, optou pela aliança com Moscovo.

Que se passa na Ásia Central? Note-se que foi nesta área — rica em gás e petróleo — que os americanos começaram a corroer a influência de Moscovo. O Cazaquistão, pilar da união aduaneira com a Rússia e a Bielorrússia, não gostou da anexação da Crimeia. O seu Presidente “eterno”, Nursultan Nazarbaiev, criticou Moscovo: o seu país tem uma enorme minoria de “russos étnicos” e não aceita que ela sirva de pretexto para ingerências. Procura um equilíbrio entre os dois vizinhos gigantes, a Rússia e a China, servindo-se de um para compensar o peso do outro.

Os outros países da região têm posições distintas. Se o Tajiquistão e a Quirguízia são candidatos à adesão à UEA, o Uzbequistão navega entre a Rússia e o Ocidente. Por fim, o Turquemenistão afastou-se de Moscovo, aproximando-se do Ocidente e da China.

O futuro da UEA

O projecto da União Euro-Asiática foi lançado por Vladimir Putin no dia 4 de Outubro de 2011, pouco antes da sua reeleição. Apresentou-o como o desígnio central do seu segundo mandato.
“Propomos uma associação supranacional poderosa, capaz de se tornar num dos pólos do mundo moderno e que servirá de ponte entre a Europa e a dinâmica região Ásia-Pacífico.”

Ainda que partilhando temas das antigas ideologias eslavófilas e euro-asiatistas, que exaltam a superioridade e o destino histórico da Rússia perante a cultura “corrompida” do Ocidente, é uma ideia moderna. Não é uma viragem para a Ásia, depois da viragem ao Ocidente na era de Gorbatchov e Ieltsin. “De facto, a Rússia continua à procura de si mesma, incluindo do seu próprio papel no mundo. A Rússia não pode e não poderia ser Ásia”, comentou Dimitri Trenin.

Representa um desígnio de Putin desde que tomou o poder: restabelecer a grandeza e o poderio da Rússia. Para isso tentou várias fórmulas de progressiva integração do espaço pós-soviético. Não se resume a uma reconstrução da União Soviética. Insere-se num contexto “pós-imperial”, tendo em conta as ambições da China e a crise económica do Ocidente. Esta crise surgiu como uma oportunidade para a Rússia.

Putin vê na União o meio de restaurar o poderio e a centralidade política de uma Rússia economicamente débil. Para isso, tem de forçar a mão a vizinhos que têm uma má memória de serem satélites e que, por isso, resistem. A UEA não visa apenas uma integração económica mas também política e militar.


No dia 24 de Dezembro, em plena crise ucraniana, Putin decidiu acelerar a implantação da União, que deveria tornar-se realidade em Janeiro de 2015. O grande problema da UEA chama-se Ucrânia. Sem Kiev não tem viabilidade. Daí a ousadia e a temeridade dos últimos gestos de Vladimir Putin.

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