OPNIÃO
MIGUEL
GASPAR (http.//www.publico.pt/autor/miguel-gaspar) 27/03/2014
- 00 :34
Precisamos hoje de um
realismo progressista e não do cinismo conformista
e ressentido dos que
ficaram parados na história e acham,
por isso, que a história parou.
Num país como Portugal, onde o culto
dos consensos é
inversamente proporcional à capacidade em os concretizar, existe, à esquerda e
à direita, um paradoxal consenso negativo que a partir de pólos contraditórios considera justificáveis a
anexação da Crimeia e a política agressiva da Rússia em relação à Ucrânia.
À direita a expansão imperial da Rússia é natural e
inevitável e apenas os mentecaptos podem imaginar que é possível (ou desejável)
impedir Moscovo de fazer tudo o que quiser. De resto, se Putin fizer o mesmo ao
Leste da Ucrânia, assume-se que daí não virá grande mal ao mundo. É um problema “deles”,
vale a lei do mais forte. E não é sequer certo que a Ucrânia seja um país, argumenta-se.
À esquerda questiona-se
a legitimidade moral
do Ocidente e assume-se que, por os habitantes da Crimeia serem
maioritariamente russos, os resultados do referendo devem ser considerados
validos. Aceita-se o precedente do
Kosovo, a pedra-de-toque da argumentação de Putin para justificar a anexação. E
defende-se que quem violou a ordem
internacional invadindo o Iraque,
em 2003, devia ficar calado.
É um facto que o Iraque foi um desastre e uma ilegalidade
que os EUA ainda não acabaram de pagar; a independência do Kosovo um erro e uma
precipitação, mas que ocorreu em circunstâncias incomparáveis com o que se
passa na Crimeia. E oblitera-se também que o actual Presidente dos Estados
Unidos não apoiou a invasão do Iraque e que a sua política
externa está nos antípodas
da do seu antecessor.
O mais grave nesta argumentação
é a ideia de que se os americanos um dia invadiram, então os outros têm direito
a fazer o mesmo. O primarismo desta abordagem toca as raias do absurdo. Uma
mesma pulsão quase salazarista parece habitar estas visões da crise ucraniana.
A hipocrisia e o moralismo de vão de escada fazem a ponte entre perspectivas
ideológicas diferentes, que têm em comum a aceitação passiva destes
acontecimentos, ignorando a ameaça gravíssima que eles representam para a
Europa e para a segurança do mundo.
É inaceitável
comparar um referendo ilegal, como o da Crimeia, com
os casos da Catalunha
ou da Escócia. Os catalães e os escoceses que defendem a independência querem referendá-la no quadro de um
referendo legal teria chegado eventualmente ao mesmo resultado, a integração da
Crimeia na Rússia. Se assim fosse, nada haveria a dizer. Mas o respeito pelas
regras não é uma questão menor.
O extraordinário é uma visão nacionalista conservadora e uma visão supostamente progressista convergirem na obliteração do
papel da Ucrânia. Ambas pensam nos termos da velha lógica da Guerra Fria e do
confronto leste-oeste. Ora um dos pontos cruciais de toda esta história é
precisamente o direito dos ucranianos a serem eles (e não Vladimir Putin)
a escolher que futuro querem para o seu país.
Aliás, um mito comum relativamente à questão ucraniana é o extrapolar do
peso da extrema-direita no pós-revolução de Maidan. A questão, no entanto, é
outra. A extrema-direita será tanto mais poderosa quanto o Ocidente for incapaz
de apoiar o novo poder de Kiev.
Olha-se para a Ucrânia como se fosse um país artificial, dividido em dois e
com um fraco sentimento de identidade nacional. Mas as identidades nacionais
são construções. Embora esteja muito longe de ser uma democracia exemplar, a
bipolaridade cultural da Ucrânia permite-lhe ser um país mais aberto do que a
Rússia, por exemplo, A resistência a Moscovo é um factor constitutivo da
identidade ucraniana. A Europa e os Estados Unidos precisam de
aproveitar o momentum desta crise para levar os ucranianos a romper com
o sistema corrupto que domina o país desde a independência.
Não é fácil. Mesmo os europeus (e, inicialmente, os americanos) reagiram de
forma apática e resignada às investidas imperiais da Rússia, que vê agora os
capitais fugir do seu país e começa a perceber que a factura da sua fuga para a frente poderá chegar mais cedo do
que o previsto. Mas Putin está longe de ter desistido do seu jogo. É uma
corrida de fundo.
A crise ucraniana prova que o combate por um sistema global baseado no
respeito pela legalidade e pelas liberdades é necessário e constante. Estão em
jogo duas visões opostas: a de um mundo governado pelas relações de força ou a
de um mundo regido pela cooperação entre Estados. Foi a força desta visão que
Obama sublinhou, quando tratou a Rússia como uma “potência regional”.
Precisamos hoje de um realismo progressista que mantenha viva a convicção
de que a democracia está na ponta final de um combate global, não do cinismo conformista e ressentido dos que ficaram parados na
história e acham, por isso, que a história parou.
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