OPINIÃO
JORGE ALMEIDA FERNANDES
(http://www.publico.pt/autor/jorge-almeida-fernandes)
20/04/2014 - 12:21
O Ocidente tem um problema russo e tem de repensar a sua relação estratégica
1. No dia 16 de Abril a Ucrânia assistiu à debandada do seu Exército no Leste do pais às mãos de bandos
“pró-russos”. No dia 6, estes grupos armados começaram a ocupar edifícios
públicos em cidades do Leste.
No dia seguinte, os “pró-russos”
proclamaram uma “República Popular de Donetsk”, exigindo um referendo sobre a
“soberania” até 11 de Maio. Kiev ordenou uma operação “antiterrorismo” que, na quarta-feira, terminou em humilhação.
Relatou Piotr Smolar, enviado do Le Monde, na
cidade de Kramatorsk, a 100 km de Donetsk: “O sol estava esplêndido. As árvores
de fruto não disfarçavam as emanações dos velhos carros de combate BMD, de fabrico
soviético. Perante centenas de habitantes, os soldados foram forçados a
intermináveis conversações. Acabaram a infligir-se uma castração simbólica:
entregaram, em sacos de plástico, os percutores das suas espingardas, a
fim de poderem passar entre a multidão.”
Outros 15 carros foram
abandonados e muitos soldados entregaram as armas.
“Como qualificar um exército que se desarma?”—
pergunta o jornalista. Os seis BMD foram levados como um troféu para Slaviansk, praça forte dos “pró-russos”. Os soldados da operação “antiterrorismo”
acabaram a debandar, protegidos pelos “terroristas” — milicianos “pró-russos”
que se intitulam “força de autodefesa” e que, na versão de Kiev, são soldados
de elite russos que já actuaram na Crimeia.
As acções “separatistas” começaram por ser obra
de um punhado de homens armados. A maciça propaganda russa sobre
“a agressão” aos russófonos começa a assustar e a mobilizar mais gente.
O Presidente Vladimir Putin cria caos e
depois dramatiza a situação. Previne os ucranianos — e os ocidentais — contra o
risco de “guerra civil”, se Kiev usar a força no Leste. Diz que espera “não ser
obrigado” a enviar tronas para a Ucrânia. A Rússia continua a ter alguns
milhares de soldados na fronteira. Graças a tudo isto, Putin está em vantagem
na frente diplomática: negociar a “normalização” da Ucrânia nos seus próprios
termos — uma federalização da Ucrânia que garanta a tutela russa.
As conversações de
Genebra (Rússia, EU, EUA e Ucrânia) começaram na quinta-feira – dia em que
escrevo este texto. Foi acordada uma “desescalada por etapas”: desarmamento dos
“grupos armados ilegais”, fim das “acções violentas e intimidação”, uma
amninistia para os implicados e um largo dialogo nacional. Irá à Ucrânia uma missão
da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa. Nada foi dito sobre a
articulação entre estas medidas e as eleições
presidenciais de 25 de Maio.
Comentou um
pessimista: a Crimeia é já passado e todos ficarão gratos a Putin, se não
invadir a Ucrânia.
2. De facto, pouco
mudou nestes dias. Escreveu-se no PÚBLICO a 8 de Abril: “O objectivo [de Putin
é] desorganizar e dividir a Ucrânia, de forma a impedir as eleições de 25 de Maio
que, calcula, legitimariam um poder político hostil e pró-ocidental. (...)
Impor referendos regionais que consagrariam um sistema federal e a autonomia
das regiões, inclusive em política externa, ‘balcanizando’ a Ucrânia. Pretende
acentuar a polarização entre o Leste e o Oeste e convencer os ucranianos de que
o seu modelo federal será a solução mais realista e pacífica.”
A diferença é que
tudo se passou depressa e com mais facilidade do que se poderia prever. Os
últimos dias voltaram a ilustrar a impotência do Governo provisório de Kiev. Se
o Leste e o Sul boicotarem as eleições, os eleitores do centro e do Oeste
elegerão um poder hostil a Moscovo, que as regiões “pró-russas” não
reconhecerão
A maioria da
população do Leste e do Sul não quer ser anexada pela Rússia. É uma população
russófona, mas ucraniana — os chamados “russos étnicos” são minoritários. No
entanto, uma dinâmica de polarização pode mudar o quadro. Será um dos
objectivos do Kremlin.
Os analistas russos
chamam a atenção para o investimento pessoal de Putin, cuja popularidade subiu
acima dos 80%. Está refém desta popularidade, o que o incentiva a correr mais
riscos. As sanções ferem — se forem elevadas a nível mais alto —, mas não serão
neste caso uma arma de dissuasão. Moscovo sabe que, em nenhum caso, os EUA
usarão da força para proteger a Ucrânia. E a aparência de um “cerco da Rússia”
poderia até reforçá-lo politicamente.
Mas uma intervenção
militar russa na Ucrânia não só parece desnecessária como perigosa. Teria
efeitos diplomáticos devastadores. Moscovo dispõe de outros meios — políticos e
económicos — para enfraquecer e fazer ceder o débil e caótico Estado ucraniano.
Se a ocupação da Crimeia, com 60% de russos, foi uma operação low cost, uma
intervenção na Ucrânia, para lá do seu custo internacional, despertaria uma
resistência nacional ucraniana. Explica a analista russa Maria Lipman: “O hard power está do lado da
Rússia. Se a Rússia procurar usurpar território ucraniano (...), consegui-lo-á.
Mas não poderá ter segurança perante o ressentimento popular e a resistência.”
A ameaça de
intervenção faz parte da retórica de intimidação de Putin.
É para lhe dar credibilidade
– e estimular os “pró-russos” – que tem tropas na fronteira.
3- A atrapalhada
reacção ocidental e a hesitação sobre as sanções não têm apenas a ver com
interesses económicos e diplomáticos. O problema é maior.
Os ocidentais
equivocaram-se quanto à reacção de Moscovo, o que suscitou o esboço de uma
discussão académica, sintetizada pela historiadora Angela Stent na pergunta “Por que
é que a América não compreende Putin?”. Em parte por desconhecimento da
História russa. Mas a agressão à Ucrânia ultrapassa a dimensão regional. As
políticas de reset de Washington — o “reiniciar” da cooperação com a Rússia —
revelaram-se condenadas e vazias de sentido.
A analista russa
Lilia Chevtsova questiona a natureza do regime russo. Frisa que Putin não só
está a tentar desmantelar a ordem “pós-Guerra Fria” como o que resta da “ordem
pós-Ialta” — desafiando as fronteiras internacionalmente reconhecidas. É o
significado da anexação da Crimeia. A nova “doutrina Putin” visaria “assegurar
a sobrevivência de um poder autocrático, restaurando na Rússia o militarismo e
a mentalidade de fortaleza cercada”. A Rússia não vai começar a invadir outros
países, mas “pretende criar uma perpétua atmosfera de suspense e de incerteza”.
Abriu uma fase de confronto estratégico.
O americano Walter
Russell Mead vai ao cerne da questão: “O Ocidente tem um problema russo e é
necessário repensar toda a relação estratégica com a Rússia como primeiro passo
para formular uma resposta à agressão de Putin [na Ucrânia]. É improvável
formular depressa tal política, mas não podemos ter uma política sensata na
Ucrânia sem uma séria política russa; e desenvolver uma séria política russa
requer uma estratégia euro-asiática de longo curso.”
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