soldados armados à porta do edifício do governo na cidade de slavtansk
ALEXANDRE MARTINS 14/04/2014 - 20:10
Ocupações no Leste do país por milícias pró-russas têm deixado o Governo de mãos atadas. Pró-russos não acatam
ultimatos de Kiev e Moscovo já alertou contra uma operação em larga escala dos
militares ucranianos.
Enquanto
chegava ao fim mais um ultimato imposto pelo Governo interino de Kiev para que
as milícias pró-russas desocupassem edifícios governamentais no Leste do país,
as barricadas continuavam a ser reforçadas com pneus e sacos de areia e
dois novos símbolos caíam na cidade de Horlivka, muito perto da fronteira com a
Rússia.
Na manhã desta segunda-feira, a situação no terreno mostrava bem o
colete-de-forças com que Moscovo paralisou Kiev: se o Presidente Oleksander
Turchinov cumprir a ameaça de expulsar as milícias pró-russas pela força, Vladimir
Putin poderá encontrar aí a justificação para fazer avançar as suas tropas
e pôr fim ao que resta da unidade territorial ucraniana; se nada for feito, a
unidade territorial estará definitivamente comprometida.
Para tentar evitar qualquer um destes cenários, o Presidente interino da
Ucrânia acenou com a possibilidade da realização de um referendo
sobre o faturo das fronteiras do país, uma concessão que,
ainda assim, está longe de agradar aos separatistas pró-russos.
A ideia de Oleksander Turchinov e do governo provisório liderado por Arseni
Iatseniuk é perguntar a toda a população da Ucrânia se prefere continuar a
viver sob a autoridade de Kiev ou se defende uma maior autonomia regional - uma
proposta que deixa em aberto a possibilidade de um Estado federal, como defende
a Rússia.~
Mas as milícias pró-russas - que a Ucrânia, os Estados Unidos e a
União Europeia dizem ser cidadãos instigados e manipulados por agentes a mando
de Moscovo - exigem um referendo muito diferente, rejeitando qualquer proposta
em que sejam ouvidos os habitantes do Oeste do país, maioritariamente
pró-União Europeia.
Para aprofundar a divisão entre as duas propostas, as autoridades de Kiev
admitem consultar a população a 25 de Maio, no mesmo dia das eleições presidenciais.
Os porta-vozes das milícias pró-russas querem um
referendo já - esta é mesmo uma das suas exigências para aceitarem desocupar
edifícios governamentais em dez cidades do Leste do país.
O ultimato lançado por Kiev chegou ao fim às 9h00 desta segunda-feira
(7h00 em Portugal continental), e nada no terreno aponta para que a ameaça
do Governo venha a ser cumprida. Para além do reforço das barricadas, os
separatistas voltaram a apelar à intervenção de Vladimir Putin: “Ajude-nos o máximo que puder”, apelou um dos líderes
rebeldes na cidade de Slaviansk, onde as autoridades
ucranianas tentaram lançar no domingo uma “operação anti-terrorista”, que se saldou em dois mortos, um número indeterminado de feridos e no
aparente reforço da resistência pró-russa.
A somar-se à complexidade da situação, com pelo menos 40.000 soldados
russos colocados ao longo da fronteira, segundo as estimativas da NATO, há
sinais de falta de união entre as estruturas políticas, militares e policiais
da Ucrânia. Nesta segunda-feira - no mesmo dia em que as forças ucranianas
deviam estar prontas a avançar contra os separatistas pró-russos -, o
Presidente Turchinov demitiu o responsável pelas operações anti-terroristas, Vitali Tsihanok, criticado pela forma como
tem gerido a crise no Leste.
No domingo à noite, numa reunião de emergência do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, o embaixador russo, Vitali Churkin, acusou o governo interino de
Kiev - ou os “conspiradores de Maidan”, segundo as suas palavras, em referência
às manifestações que levaram à deposição do Presidente Viktor Ianukovich, em
Fevereiro - de “atacarem o seu próprio povo”.
Em nome da Rússia, Vitali Churkin disse ainda que o “autoproclamado governo
em Kiev” deve “dar início a um diálogo genuíno”.
Apelo à ONU
Numa outra medida para tentar garantir mais apoio contra a estratégia de
Moscovo para além das ameaças de reforço de sanções, o Presidente ucraniano
disse ao secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, estar disposto a
receber no país um grupo de soldados de manutenção da paz para, em conjunto com
as forças ucranianas, realizarem uma “operação antiterrorista”.
“Não nos opomos, e até recebemos com agrado, a ideia da realização de
operações antiterroristas conjuntas no Leste [da Ucrânia]. Os especialistas e
observadores poderão testemunhar a legalidade das nossas acções”, disse
Turchinov, num comunicado publicado no site da presidência ucraniana.
O secretário-geral da ONU não se comprometeu com nada (e qualquer proposta
de envio de uma força da ONU seria muito provavelmente vetada pela Rússia), mas
deixou claro o seu apoio a Kiev: “Quero expressar-lhe o meu apoio total a si,
pessoalmente, e ao povo da Ucrânia. Pode contar com a ONU como um parceiro.
Farei tudo o que puder para que a situação se resolva de forma pacífica o mais
depressa possível”, disse Ban Ki-moon.
Em linha com o que tem sido afirmado pelos governos dos EUA, do Reino Unido
e da Alemanha, o Presidente ucraniano acusou Moscovo de envolvimento directo
nas manifestações e ocupações.
“A Federação Russa envia unidades especiais para o Leste do nosso país, que
lideram a ocupação de edifícios administrativos e ameaçam a vida de centenas de
milhares de cidadãos”, disse Turchinov, referindo-se a uma estratégia decalcada da que levou à anexação da Crimeia, mas com uma
diferença - desta vez, afirma o Presidente ucraniano, “a maioria do povo não
quer apoiar os separatistas”.
“Choque estratégico”
Esta ideia é partilhada por Keir Giles, especialista em
assuntos sobre o poder militar da Rússia e director do Centro de Investigação
de Estudos sobre Conflitos, um think tank com sede em Shrivenham, Inglaterra.
Se na Crimeia a vontade da maioria da população estendeu uma passadeira
vermelha a Moscovo, no Leste e no Sudeste da Ucrânia a situação é muito mais
complexa, argumenta Giles, ouvido pela BBC.
Questionado sobre se os acontecimentos dos últimos dias - e uma possível
resposta em larga escala das autoridades ucranianas - indicam a iminência de
uma intervenção militar russa, o analista qualificou esse cenário como
“perfeitamente plausível”. “Iria ao encontro não só da narrativa de Moscovo a
longo prazo sobre a segurança dos direitos e das vidas dos cidadãos russos [na
Ucrânia], mas também ao imperativo doutrinário de garantir a segurança e a estabilidade
das fronteiras da Rússia”, defende Keir Giles.
O analista Roger McDermott, da The Jamestown Foundation, com sede em
Washington, concordam também que a Ucrânia foi colocada num colete-de-forças, e
que a NATO e os países ocidentais têm opções limitadas.
“Se o Exército ucraniano e as forças de segurança oferecerem mais
resistência do que a que Moscovo espera, isto pode tornar-se longo, arrastado e sujo”, diz McDermott. “Mas se as forças de Kiev se
desfizerem, ou se levarem muito tempo a responder, Moscovo terá um enorme
trunfo para levar para a mesa de negociações e garantir os seus objectivos: ou
o Ocidente reconhece um Estado ucraniano desmembrado, ou promove a ideia de um
compromisso que inclua uma nova Constituição e a emergência de um Estado federal
ucraniano mais fraco e mais dócil perante o Kremlin.”
Para este analista, Washington e Bruxelas têm sido lentas a responder
porque receberam um “choque estratégico” e insistem em não perceber o que está
em jogo: “O Kremlin está a apostar forte porque acredita que pode ganhar.”
A crise na Ucrânia tem revelado “fraquezas nas avaliações sobre a Rússia e
sobre a potencial ameaça que ela pode representar para a Europa Ocidental”,
defende ainda Roger McDermott, que termina com uma crítica e um conselho: “Nem
os analistas nem os governos ocidentais conseguem explicar como se pode evitar
que a Rússia alcance os seus objectivos estratégicos na Ucrânia. Em vez de
pensamento racional, vemos apenas exasperação e embaraço.”
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