OPINIÃO
ELISIO ESTANQUE e
NATALIYA NAUMENKO 27/03/2014 - 02:31
Espera-se que a UE tenha
uma palavra a dizer, distinguindo o trigo do joio no Governo de Kiev, enquanto
a força da Maidan continuar viva.
A situação
vivida na Ucrânia nos últimos meses e o debate entretanto desencadeado na nossa
imprensa e nas redes sociais tem revelado a persistência, entre nós, de
opiniões tão seguidistas em relação ao Kremlin que o mundo parece ter voltado
atrás, aos tempos da “gloriosa pátria do socialismo”.
Alguns dirão
que isso se deve ainda à presença da ortodoxia comunista na nossa sociedade.
Mas não é já de “ideologia” que se trata. Porque na atual Rússia de Putin a
ideologia (“marxista-leninista” ou os seus derivados) esvaziou-se totalmente de
qualquer conteúdo doutrinário, sendo substituída pela pura praxis do poder e da violência, fundada
numa conceção maniqueísta do mundo e movida por sentimentos de antiamericanismo
primário (para o qual, diga-se, a incontinência imperialista dos EUA tem fornecido bons pretextos).
As rebeliões e
movimentos sociais sempre suscitaram tentativas de instrumentalização da parte
de grupos organizados, prontos a cavalgá-los, tal como são uma constante as
interferências das potências internacionais. Foi assim no tempo da Guerra Fria
e continua a ser na atualidade, onde, aliás, a mesma está a ressurgir. Tal não justifica, porém, que se
deva reduzir as mobilizações aos grupos organizados que nelas se insinuam. Na
ausência de uma “vanguarda”, a dinâmica emancipatória dos protestos - quando
existe - emerge dos interstícios dessa complexidade, isto é, das suas
contradições internas. Não é preciso sermos marxistas para acreditarmos na
“força do povo” nas ruas, e o século XXI tem vindo a comprovar essa evidência
em diversos continentes. Maidan foi uma ação genuína e corajosa desencadeada por jovens estudantes e que mobilizou
múltiplos setores sociais (embora mais tarde minada por
grupos radicais).
Entalada entre os fortes laços culturais, linguísticos e a dependência
energética e económica da Rússia, de um lado, e as tentativas de aproximação à
União Europeia, de outro lado, a Ucrânia não conseguiu consolidar a soberania
face a Moscovo, apesar da independência adquirida em 1991. Perante as
sucessivas pressões e chantagens por parte das redes mafiosas ao serviço das
oligarquias nascidas do enriquecimento ilícito (e do saque descarado a partir
dos destroços do velho Estado soviético), a economia e as instituições do país
ficaram reféns de poderes obscuros e ilegítimos, muitos deles sediados na
capital russa e apoiados pela máquina da ex-KGB. A vocação violenta e imperial
do poder russo ficou patente em episódios como o envenenamento do ex-Presidente Iutchenko e a construção e destruição de
“candidatos-fantoches”, num contexto onde os “negócios” e a política se
tornaram indestrinçáveis e onde, na própria Rússia e fora
dela, os inimigos de Putin foram sendo perseguidos e eliminados uns após
outros. A chamada “revolução laranja” de 2004 revelou, pela primeira vez, os
sentimentos patrióticos do povo ucraniano e a sua vontade de “ocidentalização”,
com Julia Timochenko como principal protagonista a
tentar desligar-se dos seus antigos compromissos com as
referidas redes
Oligárquicas. Seguiram-se em 2010 as manobras para eleger Ianukovich – um servidor
incondicional de Putin cuja incompetência e falta de sentido de Estado se
tornaram motivo de chacota, e cuja popularidade se desvaneceu na sequência do
processo sujo de acusação e prisão da ex-primeira- ministra. Com uma economia
atrofiada e o futuro das novas gerações hipotecado às mãos das oligarquias,
estavam criadas as condições para a sublevação social, que irrompeu em Kiev em
novembro, quando o ex-Presidente, seguindo mais uma vez as ordens do Kremlin,
deu o dito por não dito em relação ao acordo com a UE e se vergou perante o
“abraço do urso”.
É por isso que, quando olhamos para as posições de uma certa “esquerda”
portuguesa relativamente à Ucrânia, a mesma que por todo o lado não faz outra
coisa senão tentar manobrar os movimentos e os sindicatos, incentivando
permanentemente os protestos de rua, ficamos pasmados de espanto perante as
acusações de “golpismo” aos manifestantes da Maidan por terem tomado o poder
pela força, enquanto as “milícias” e os “homens de verde” da Crimeia, que
invadiram, ocuparam, humilharam os ucranianos (e marcaram com cruzes as portas
onde residem famílias da minoria tartar), são tomados por “salvadores” contra
as supostas ameaças “fascistas” a mando de Kiev. Em contrapartida, as imagens
de Ianukovich em fuga a esconder os tesouros
roubados ao povo ucraniano, ou o confirmado saque de
milhões ao erário público parecem não impressionar os nossos eternos seguidores
da propaganda do Kremlin.
O que esteve e está em causa na Ucrânia prende-se também com a história e a
geo-estratégia num mundo desnorteado. Mas quem conhece a história não pode
acusar os povos ucraniano ou tartar de “colaboracionistas” com o nazismo -
quando os seus territórios estavam ocupados pelas tropas de Hitler e a maioria
dos homens tinha sido alistada no Exército Vermelho – e ao mesmo tempo ignorar
o genocídio deliberado de milhões de camponeses mortos à fome (o Holodomor,
em 1932-33), e o extermínio e deportação dos tártaros por ordens de Estaline em
1944 (o Sürgün).Já os cientistas
políticos, com a sua abordagem calculista, tendem a olhar o xadrez das disputas
e as movimentações dos poderes hegemónicos como um mero jogo onde as populações
locais não contam. Claro que a influência de grupos de extrema-direita como o
Svoboda ou o Sector Direito (e dos seus líderes neofascistas) terá de ser neutralizada para que uma Ucrânia democrática e pró-ocidental
seja viável, e para que, mesmo amputado, este país possa constituir uma zona
amortecedora de conflitos e não um campo de batalha de consequências
aterradoras. Não se trata de defender o Ocidente contra a Rússia, mas de
defender a democracia contra a tirania e o “neofascismo” (que existem em ambos
os lados da barricada). Para tal, espera-se que a UE tenha uma
palavra a dizer, desde logo, distinguindo o trigo do joio no Governo de Kiev,
enquanto a força da Maidan continuar viva.
Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra
Imigrante ucraniana e apoiante dos protestos da Maidan
Sem comentários:
Enviar um comentário