Bandeira soviética à porta do Parlamento da Crimeia
PAULO MOURA (em Simferopol)
07/03/2014 - 01:36
Após a decisão do parlamento de Simferopol, teme-se uma atitude mais dura
das forças que ocupam a Crimeia em relação às unidades ucranianas que estão
sitiadas
Num clima surrealista, as novas
autoridades da Crimeia anunciaram ontem a sua decisão de anexar o território à
Rússia. Será realizado um referendo no próximo dia 16, só para ratificar o que
já está decidido, acrescentaram. A partir de agora, quaisquer forças militares
na península serão consideradas hostis e serão tratadas em conformidade,
disseram ainda.
Em frente ao edifício do
Parlamento, uma pequena multidão com bandeiras russas gritava: “Viva a Rússia!”
“Viva Putin!” Ao microfone sucediam-se vozes
entusiásticas invocando a grandeza da Rússia e agradecendo ao Presidente Vladimir Putin a sua generosidade.
Um cordão de milicianos
pró-russos cercava a entrada do parlamento, coadjuvados por soldados vestidos
de cossacos, com farda verde e barrete de pêlo. Mulheres aparentemente muito
felizes corriam a abraçá-los. Nos altifalantes começaram a soar cancões
russas. Algumas soviéticas.
Uma enorme bandeira vermelha com a foice e o martelo ondulava
entre os manifestantes. Um homem mostrava um cartaz
com a frase em inglês:
“America don’t kill people ” As mulheres vestiam casacos
de peles, por vezes muito
usados, e os homens velhas fardas russas ou soviéticas, bonés do Exército
Vermelho ou barretes cossacos, e todos gritavam: “Rússia! Rússia! Viva a
Rússia!”
As informações fornecidas pelo vice-primeiro-ministro do governo pró-russo da Crimeia, Rustam Temirgaliev, que falou aos jornalistas, não foram muito
claras. Disse que o referendo se realizaria dia 16 (o mesmo governo tinha-o
marcado para dia 30) e que se destinava apenas a “confirmar” a decisão do
parlamento. Um deputado tinha garantido minutos antes que a decisão desta
quinta-feira era apenas a “posição” do parlamento, sem efeitos até ao
referendo. Para Temirgaliev, a decisão “já está em vigor” desde esta
quinta-feira.
Disse até:”Um grupo de
especialistas russos está cá a preparar a introdução do rublo na região.” E que
toda a propriedade pertencente ao Estado ucraniano seria nacionalizada.
No entanto, os habitantes da
Crimeia, pertencentes aos vários grupos étnicos, precisou, poderão escolher entre
a anexação imediata na Rússia e um regime de maior autonomia, no seio da
Ucrânia. No caso de vitória desta última opção, explicara o líder de uma
milícia, previamente industriado sobre o plano, a “integração na Rússia será
feita depois, por etapas”.
Com o actual clima de intimidação
e polarização, e considerando que os russos constituem cerca de 60% da
população da Crimeia, é previsível que a opção pela anexação vença o referendo.
Tanto mais que os representantes da comunidade tártara (12% da população) já
fizeram saber que tencionam boicotar o referendo.
Em Kiev, o primeiro-ministro
interino, Arseni Iatseniuk (que foi eleito por um sistema de braço no ar e
gritaria na Maidan), rejeitou a decisão do governo de Simferopol (que foi
nomeado e empossado por um grupo de milicianos armados e mascarados que atacou o
parlamento).
“Isto é uma decisão
ilegítima", disse Iatseniuk. “Este suposto referendo não tem qualquer base
legal. A Crimeia foi, é e será parte integrante da Ucrânia.” E disse ainda: “No
caso de haver uma escalada e uma intervenção militar no território ucraniano
por parte de forças estrangeiras, o Governo ucraniano e as Forças Armadas
ucranianas agirão de acordo com a Constituição e as leis. Estamos prontos para
defender o nosso país.”
Na Crimeia, várias bases
militares estavam cercadas por forças russas (que continuavam a não se identificar
como tal, apesar de um membro do governo de Simferopol ter dito ontem que só as
forças russas no território seriam consideradas legítimas). No interior das
bases, os militares ucranianos continuavam sitiados, sem se terem rendido.
Vários navios ucranianos estavam também bloqueados no mar por vasos de guerra
russos pertencentes à Frota do Mar Negro, fundeada em Sebastopol.
Não são claras as intenções das
novas autoridades russas quanto aos militares ucranianos, mas é de recear uma
atitude mais agressiva a partir desta sexta-feira. Ignora-se
também qual será a
reacção dos ucranianos.
Na praça em frente ao parlamento
de Simferopol, a euforia era diferente da dos dias anteriores. As cerca de cem
pessoas dançavam e saltavam agora sem quaisquer constrangimentos, apesar da
idade que já pesava sobre a maioria. “Isto é uma vitória. Sinto que entrámos na
nossa casa. É o dia mais feliz da minha vida”, disse Natalia, 67 anos.
A atitude dos elementos das
milícias e do corpo de cossacos, que tinha ultimamente vindo a tornar-se mais dura para com
jornalistas não russos e para com membros de organizações internacionais, é
agora abertamente hostil. Há dois dias, Robert Serry, o enviado especial do
secretário-geral da ONU ao território, foi ameaçado por milicianos armados nas
ruas de Simferopol e teve de abortar a sua missão. Ontem de manhã, uma delegação
de observadores da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa)
foi impedida por milicianos de entrar na Crimeia.~
À tarde, depois do anúncio da
integração na Rússia, duas mulheres em topless correram entre os manifestantes pró-anexação e os
elementos das milícias, gritando: “Parem a guerra de Putin!” Eram activistas
do grupo Femen e tinham a mesma frase escrita no peito nu. Uma delas foi logo
detida pelos milicianos fardados de cossacos, mas a outra conseguiu correr
pelo pátio do parlamento, gritando a plenos pulmões. Os jornalistas correram
atrás dela, tal como fizeram os milicianos e os “cossacos”. O orador que estava
na altura ao microfone do comício gritou: “Prostituta!” E depois: “Isto é uma
provocação!” Várias vezes: “Rússia! Rússia! Rússia!” Por fim: “Isto é só
espectáculo para os jornalistas! Tirem daí os jornalistas!”
Era o que os “cossacos” queriam
ouvir. Desataram a empurrar, a arrastar, a agredir os jornalistas. Pelo menos
um caiu e foi pontapeado no chão. A mulher seria finalmente agarrada e
transportada a espernear por quatro homens. Meteram-na numa carrinha e levaram-na. Nos altifalantes
recomeçaram as canções patrióticas russas.
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