O representante de Kiev em Lisboa diz que a violação da integridade territorial ucraniana pela Rússia está a unir os cidadãos, e adianta que a embaixada tem recebido chamadas de jovens ucranianos a viver em Portugal e se querem alistar nas brigadas de autodefesa do país.
Oleksandr Nikonenko está em Portugal desde 2010, mas já tinha representado o país na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Paraguai, na Polónia, no Brasil, na Bolívia, na Venezuela e no Equador.
Oleksandr Nikonenko
“A Ucrânia sabe defender-se, a nossa história
é feita de guerras!
O embaixador da Ucrânia sublinha as tradições
europeias do país e destaca o potencial económico da Ucrânia
DIOGO VAZ PINTO (Texto)
ANTÓNIO PEDRO SANTOS (Fotografia)
Na sua longa carreira diplomática e na curta
história de vida do seu país desde que se tornou independente, em 1991, o
embaixador da Ucrânia em Portugal não hesita em dizer que nunca enfrentou uma
situação tão dramática como a actual. A experiência e o optimismo dizem-lhe que
a comunidade internacional saberá estar à altura e agir de forma correcta para
livrar a ex-república soviética do cerco do antigo mestre. Mas, se
insiste que os ucranianos querem a paz, lembra que a história do país ao longo
de séculos é feita de guerras e que a invasão russa está já a gerar um
sentimento de união e mobilização, não apenas na Ucrânia como noutros países
onde a comunidade destes europeus de Leste é significativa, como em Portugal.
Como viu a declaração de independência da
Crimeia feita esta semana?
Este acto é ilegítimo, porque não corresponde à vontade
de todos os ucranianos e realizou-se sem nenhuma consulta pré-via.
E o que pode acontecer quando o referendo de
domingo, que prevê a anexação à Rússia, for aprovado?
Do ponto de vista da legislação ucraniana,
posso dizer com certeza absoluta que esse referendo não será considerado legítimo.
Isso já foi declarado várias vezes. Não será reconhecido por parte do governo
da Ucrânia.
O governo de Kiev já disse que não prevê
enviar mais tropas para a região, nem quer entrar em confronto com as forças
russas que lá estão...
Esperamos não ser obrigados a chegar a essa
medida extraordinária. Pouco provável, oxalá... Isso significaria um agravamento
da situação.
Por outro lado, os ucranianos das zonas
ocidental e central do país dizem estar preparados para lutar para manter a
integridade territorial.
Com certeza. Os ucranianos estão dispostos a
proteger o seu território, o seu país. Isso é normal.
Mesmo que o governo não tome nenhuma
iniciativa militar, pode haver uma resposta civil para contrariar esta
tentativa de anexação?
Vamos ver. Há um grande ímpeto dos ucranianos...
Oxalá isso não aconteça. Ninguém quer sangue, ninguém quer novas vítimas. Todas
as partes podem confirmar que estamos a procurar a melhor saída para esta
situação, que não foi provocada pela Ucrânia.
O que significa a criação da Guarda Nacional
no país?
Que as autoridades ucranianas estão a tomar
medidas, enfrentando a ameaça real da intervenção militar contra o território
nacional.
Da última vez que falámos, disse-me que no Ocidente tinham de compreender que as
condições de vida na Ucrânia são muito diferentes...
Quis dizer que a Ucrânia é, em si, um país
muito variado. É um país multinacional, onde persistem diferenças entre o Leste
e o Oeste. Em Portugal há diferenças entre a população do Sul e do Norte, mas
as nossas diferenças são bem mais profundas. Isso deve ser sublinhado em todas
as análises. O governo actual está consciente dessas diferenças.
Lamentavelmente, não foram tidas em conta antes. Agora deveriam ser respeitadas
de forma mais cuidadosa.
“O
referendo sobre a anexação da Crimeia à Rússia não será reconhecido por Kiev”
“Estamos a
contar com o apoio da Europa, e esperamos que juntos possamos encontrar uma
solução”
“A Ucrânia
é Europa. Vivemos segundo os princípios da civilização europeia”
Mas há algo que une os ucranianos, como as
difíceis condições económicas e as climatéricas. E a Gazprom voltou a ameaçar
com o corte no fornecimento de gás....
De
momento os russos estão apenas a constatar que essa dívida está por pagar, não
se fala já num corte. Podemos prever que, se não se paga, certamente os russos
irão recorrer uma vez mais a este factor para estabelecer pressão sobre a
Ucrânia. Nós estamos a contar com o apoio e a solidariedade da parte dos nossos
parceiros europeus e esperamos que, juntos, possamos encontrar uma saída para esta situação, também virtual.
Porque não queremos permitir que se chegue a um tal impasse que leve a um corte
no fornecimento de gás por parte da Rússia.
A propaganda dos meios de comunicação
estatais russos, que dão a imagem da revolução de Maidan como um golpe
fascista, ilegítimo, pode ser um primeiro passo para outra intervenção?
Um pouco o que os EUA fizeram antes de
avançarem para o Iraque?
Preferia não traçar esses paralelismos.
De nenhuma maneira gostaria que o meu país
fosse enquadrado numa analogia com aquilo que se passou no Iraque. São duas situações
distintas. Mas, evidentemente, os russos estão a justificar as suas acções da
maneira que lhes parece mais consistente e mais convincente. Graças a Deus, a
Europa não está a alinhar nessa interpretação.
A Rússia tem usado o argumento da forma como
a Crimeia foi integrada na Ucrânia, ainda no período
soviético, com Nikita Khrushchev para defender as suas pretensões …
soviético, com Nikita Khrushchev para defender as suas pretensões …
Se
usarmos essa abordagem, teremos de rever todas as fronteiras europeias depois
da Segunda Guerra Mundial. A Ucrânia foi reconhecida mundialmente, e
inclusivamente pela Rússia, nas suas fronteiras actuais – que incluem a
Crimeia. Essas análises não têm nenhum fundamento.
Que informações tem em relação às alegações
de que os francos-atiradores que abriram fogo sobre os manifestantes na Praça
Maidan terão sido contratados pelos actuais líderes ucranianos?
Se
me fala da investigação, não posso expressar uma opinião sobre isso. O
Parlamento Europeu, segundo sei, pediu que fossem investigadas essas alegações,
se a conversa telefónica [entre o chefe da diplomacia da Estónia, Urmas Paet, e
a alta representante da EU Catherine Ashton] realmente aconteceu… Vamos ver.
Há fundamento nos relatos sobre a contratação
de mercenáriosda empresa de segurança privada americana Arcadi, antiga
Blackwater, para lidar com as manifestações pró-Rússia em Donetsk?
Parece-me que não houve comentários oficiais em relação a isso,
apenas artigos jornalísticos, a começar pelos dos jornalistas russos. Para mim, não passa de uma virtualidade. Não está
comprovado. E as tecnologias modernas
podem fazer a composição de qualquer imagem. Eu não tive qualquer informação
dos meios de comunicação ucranianos sobre esse assunto.
Os grupos
extremistas assumiram um grande protagonismo nas manifestações em Kiev e
entretanto chegaram à Ucrânia elementos de grupos nacionalistas de outros
países para tentar estabelecer a revolução de Kiev como um bastião do poder
nacionalista. Esta revolução pode ser sequestrada por estes grupos extremistas?
Posso responder-lhe que nenhum cidadão
ucraniano pretende que o país se torne um palco de confrontos, seja de que
força for. Aquilo que me conta, estou a ouvi-lo
pela primeira vez, nunca soube disso. Pode
ser que agora estejam a surgir histórias, com os jornalistas à procura de
factos, digamos, “quentes”... Mas na Ucrânia não estamos debruçados
Sobre esse cenário.
As manifestações foram provocadas só pelo recuo de
Yanukovych em relação a assinar o pacto de integração com a União Europeia,
preferindo uma aproximação à Rússia?
Foi
o factor inicial, que depois se transformou num descontentamento generalizado
com a polícia de Yanukovych. Foi o início, depois houve um levantamento, porque
as pessoas estavam fartas das polícias anti-sociais e com fracos resultados.
Havia muitas expectativas de que a assinatura do acordo de associação daria
seguimento às reformas iniciadas pelo governo anterior. Essa perspectiva foi
suspensa e o governo actual está a reiniciar as conversações. Foi já anunciado,
aliás, pelas autoridades europeias que existe uma possibilidade realista de ser
assinada, pelo emnos, a parte política do acordo nas próximas semanas, até às
eleições presidenciais antecipadas, marcadas para 25 de Maio. É uma das
consequências dos acontecimentos dos últimos meses. Chegámos, finalmente, aos
objectivos que tinham sido traçados e legalmente previstos já na lei ucraniana,
que diz que o objectivo estratégico da Ucrânia é a integração na EU.
A dívida da Ucrânia
e os problemas económicos do país são, provavelmente, a maior ameaça à
estabilidade
Precisamos de ajuda financeira para tapar os
buracos e assegurar o cumprimento ininterrupto das nossas obrigações, a realização
dos programas sociais. A Ucrânia, felizmente, não declarou a bancarrota. Não
deixa de ser verdade que a situação económica da Ucrânia é neste momento muito
difícil, mas não há dados concretos sobre as consequências desta crise política
dos últimos meses. As consequências da desconfiança face ao governo anterior
levam a que as obrigações ucranianas não sejam atraentes para os mercados
internacionais. E por isso é que digo que precisamos de ajuda para tapar também
este buraco, para recuperar a confiança dos investidores internacionais, para que as obrigações do Estado sejam cotadas
devidamente. Precisamos dessa alavanca para restituir o funcionamento normal às
instituições e à economia nacionais. E contamos que esse apoio chegue em breve.
A Ucrânia é um país com um enorme potencial económico e precisamos desse
dinheiro para tomar fôlego, para recuperar o ritmo normal do funcionamento da
economia.
Mas
as indústrias ucranianas estão baseadas mais a leste do país, muito dependentes
do comércio com a Rússia, e é preciso saber se estas indústrias podem competir
de igual para igual no mercado livre europeu...
Teremos que reorientar alguns fluxos das nossas
exportações. Mas foi anunciado há pouco pelo actual líder do país que a UE tomou a decisão
de abrir unilateralmente os seus mercados aos produtos ucranianos. Quer dizer,
retirar as barreiras para os produtos ucranianos. Para que o que antes era
vendido nos mercados russos possa, em parte, ser desviado para o Ocidente,
para que a Ucrânia não sofra grandes perdas nas suas exportacões. As
exportações ucranianas para a união aduaneira [Rússia e outras ex-repúblicas
soviéticas] são 36% do total, e foram destinados 26% para a UE, uma diferença
de 10%. Quanto às importações, os valores são praticamente iguais: 37% e 35%. Por
isso, se falarmos de uma diferença 10%, com a abertura dos mercados e retirada
de algumas barreiras aos produtos ucranianos, a diferença poderá ser
compensada. É claro que ninguém está seguro das eventuais perdas numa situação destas,
mas também por isso é que estamos tão reticentes em suspender as relações
económicas com a Rússia. Queríamos preservar essas relações e continuamos a
considerar a Rússia um país parceiro, um país irmão. Nenhum responsável
político na Ucrânia está a defender que a Rússia não é mais um parceiro
comercial e continuamos a contar com o seu mercado. Mas a Rússia é que estava
a impor as condições para essa relação, a ameaçar que se assinássemos o pacto
de integração com a UE reduziria a entrada de produtos ucranianos no país. Se
houver este tipo de exigências não será do nosso interesse voltarmos ao fluxo
que mantínhamos até aqui.
Com um governo que até 25 de Maio vai estar sempre
assombrado pela questão da legitimidade, com o país dividido, com as diferenças
e clivagens que referiu a aumentarem...
Esperemos que não. Tenho, de resto, a
impressão de que perante a ameaça de invasão do território ucraniano, com a
violação da integridade territorial pela Rússia, os cidadãos ucranianos estão a
unir-se. Há um grande espírito de consolidação
perante uma ameaça externa Por isso, independentemente das diferenças, essa
será a tendência mais forte. Os próprios políticos ucranianos estão a apelar
aos cidadãos para que esqueçam as diferenças e se unam perante uma ameaça
“A Ucrânia tem um enorme
potencial económico, precisamos de apoio para recuperar o ritmo da economia”
“Com a violação da
integridade territorial pela Rússia, os cidadãos ucranianos estão aunir-se”
Os analistas têm afirmado que Putin parece ter uma
estratégia ardilosa, tendo criado uma situação de crise que se poderá arrastar
por meses, asfixiando a economia ucraniana e forçando o país a ceder aos
interesses russos...
Não posso falar pelo presidente russo, não
sei quais são as suas intenções. Posso falar-lhe das relações que o governo da
Ucrânia mantém. Não queremos guerra com a Rússia, queremos
viver em paz. Mas ao mesmo tempo queremos gozar do nosso direito de eleger o
rumo do nosso desenvolvimento. Não há dúvida nenhuma de que a Ucrânia vive
actualmente uma situação muito difícil, um momento crítico. Mas para isso é
que serve a comunidade internacional. Nós não estamos a viver num vazio.
No caso da Síria, um relatório de investigadores
independentes dentro das Nações Unidas acusou os membros permanentes do
Conselho de Segurança de não agirem de uma forma responsável face à guerra
naquele país. O Conselho de Segurança devia fazer mais no caso da Ucrânia?
Não há comparação. Não nos podemos esquecer
de uma coisa: Ucrânia é Europa. Vivemos segundo os princípios da civilização
europeia. A Ucrânia é um país de tradição e valores cristãos. Há uma diferença
de percepção. Mais uma vez lhe digo que esperamos o apoio da comunidade
internacional, o apoio dos mecanismos internacionais previstos para bloquear um
cenário de conflito. Existem mecanismos previstos, sobretudo depois da Segunda
Guerra Mundial, depois da criação da ONU, e a Ucrânia está protegida por uma
série de acordos internacionais que não deixarão de ser respeitados. Contamos
com uma acção adequada da comunidade internacional para regularizar a situação
que envolve actualmente a Ucrânia.
Então a Ucrânia espera neste momento uma reacção
responsável e humana da comunidade internacional?
A Ucrânia
sabe defender-se, a nossa história
é feita de guerras. Estamos fartos de guerras, mas sabemos defender-nos. Não
queremos que a Ucrânia se torne num foco de tensão e conflito no seio da Europa.
Quando o povo não tem outro remédio senão defender-se, defender a
sua vida, defende-a. Mas somos um povo civilizado: achamos que qualquer
problema deve ser solucionado com base nos compromissos internacionais que
assume qualquer membro da comunidade internacional. E quando falamos da
Rússia um membro qualquer da comunidade internacional: é um membro do Conselho
de Segurança das Nações Unidas, um país que se posiciona como um pólo da política
internacional e um garante da paz internacional. A Rússia vária defendeu que
queria liderar esse compromisso: é o momento para confirmá-lo
Na Maidan houve um ponto de viragem, quando Yanukovych
começou a ceder. Os oligarcas que o apoiavam, puxaram-lhe o tapete, Yulia
Tymoshenko foi libertada e uniu os oligarcas em torno das novas autoridades. O próprio Putin disse que via as
manifestações como o protesto de um povo farto de ver ladrões a sucederem-se no
poder. Não há o perigo de em pouco tempo o povo ucraniano ter as mesmas razões
para se queixar de corrupção?
Eu não posso prever o futuro, mas tudo vai depender
dos passos que o governo der. O govemo agora tem os poderes e condições, o
apoio das pessoas que se manifestaram na Maidan, tem capacidade para restabelecer
a confiança do povo na sua autoridade. Todos nós queremos ver o nosso país
calmo, gostaríamos de voltar ao funcionamento normal, ao desenvolvimento normal
e que não nos ameacem. Que o povo ucraniano não seja dividido, que a nossa
integridade territorial se mantenha intocada, inalterável e tudo isso.
Queremos que os outros povos também esperem isso, apostem nisso e não tracem
cenários violentos, que nos parecem inaceitáveis.
“Não queremos que a Ucrânia se tome um foco
de tensão e conflito no seio da Europa”
“Temos recebido chamadas de jovens ucranianos
em Portugal que se querem alistar nas brigadas de autodefesa”
Quais são as grandes
preocupações da comunidade ucraniana em Portugal, nos contactos que tem mantido
com a embaixada?
Muito curioso é que, com todas as preocupações
que pode haver, temos recebido chamadas telefónicas a pedir informação sobre o
que fazer para se alistarem nas brigadas de autodefesa na Ucrânia.
Jovens ucranianos que vivem aqui em Portugal
procuram saber o que devem fazer para se juntar àqueles que agora estão
envolvidos nos esforços civis de autodefesa do país. Há uma onda muito forte
de patriotismo neste momento na Ucrânia, e esperamos que isso nos ajude a
enfrentar os problemas que estão a aparecer. O principal agora é sair da
situação de crise criada na Crimeia, e estamos convencidos de que só sairemos
dela com o apoio da comunidade internacional.
Há já algum prazo definido para a entrega do apoio financeiro de Bruxelas?
Estamos a falar dos próximos dois ou três
anos. Ouvi o primeiro-ministro da Ucrânia informar os deputados no parlamento
sobre o acordo alcançado na última visita a Bruxelas, que falou de 11 mil
milhões de euros para os próximos anos e que estarão divididos em distintos programas.
A decisão quanto à entrega de ajuda financeira já foi tomada e isso, psicologicamente,
é uma ajuda.
Da última vez que falámos, lamentava que havia uma certa falta de
atenção de alguns países ocidentais sobre Ucrânia, até de Portugal, onde há uma
significativa comunidade de ucranianos. A Ucrânia tornou-se agora um símbolo de uma grande capacidade de mobilização popular em
luta contra a corrupção?
Absolutamente. Essa foi uma das exigências
principais na Maidan, que a luta contra a corrupção se tornasse uma prioridade
para o novo governo.
Há então um balanço positivo, pelo menos no que diz respeito à imagem
do país, quando há dúvidas sobre a capacidade das populações reassumirem o
comando dos seus destinos contra uma classe corrupta e com dinheiro, como tem
sido a classe dirigente na Ucrânia. Esse lado positivo significa uma ameaça à
posição de Vladimir, associado também a oligarcas e a casos de corrupção?
Podemos especular sobre a forma como esta
revolução na Ucrânia pode influenciar o mundo. Com certeza é um exemplo
positivo, e por isso pode ser uma influência positiva. Mas isso já vai para lá
da minha imaginação.
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