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sexta-feira, 21 de março de 2014

“A Ucrânia sabe defender-se, a nossa história é feita de guerras!

O representante de Kiev em Lisboa diz que a violação da integridade territorial ucraniana pela Rússia está a unir os cidadãos, e adianta que a embaixada tem recebido chamadas de jovens ucranianos a viver em Portugal e se querem alistar nas brigadas de autodefesa do país.
Oleksandr Nikonenko está em Portugal desde 2010, mas já tinha representado o país na Argentina, no Chile, no Uruguai, no Paraguai, na Polónia, no Brasil, na Bolívia, na Venezuela e no Equador.
Oleksandr Nikonenko
“A Ucrânia sabe defender-se, a nossa história é feita de guerras!
O embaixador da Ucrânia sublinha as tradições europeias do país e destaca o potencial económico da Ucrânia

DIOGO VAZ PINTO (Texto)
ANTÓNIO PEDRO SANTOS (Fotografia)

Na sua longa carreira diplomática e na curta história de vida do seu país desde que se tornou independente, em 1991, o embaixador da Ucrânia em Portugal não hesita em dizer que nunca enfrentou uma situação tão dramática como a actual. A experiência e o optimismo dizem-lhe que a comunidade internacional saberá estar à altura e agir de forma correcta para livrar a ex-república soviética do cerco do antigo mestre. Mas, se insiste que os ucranianos querem a paz, lem­bra que a história do país ao longo de séculos é feita de guerras e que a inva­são russa está já a gerar um sentimen­to de união e mobilização, não apenas na Ucrânia como noutros países onde a comunidade destes europeus de Leste é significativa, como em Portugal.

Como viu a declaração de independên­cia da Crimeia feita esta semana?
Este acto é ilegítimo, porque não corresponde à vontade de todos os ucranianos e realizou-se sem nenhuma consulta pré-via.

E o que pode acontecer quando o refe­rendo de domingo, que prevê a anexa­ção à Rússia, for aprovado?
Do ponto de vista da legislação ucraniana, posso dizer com certeza absoluta que esse referendo não será considerado legí­timo. Isso já foi declarado várias vezes. Não será reconhecido por parte do gover­no da Ucrânia.

O governo de Kiev já disse que não pre­vê enviar mais tropas para a região, nem quer entrar em confronto com as forças russas que lá estão...
Esperamos não ser obrigados a chegar a essa medida extraordinária. Pouco pro­vável, oxalá... Isso significaria um agra­vamento da situação.

Por outro lado, os ucranianos das zonas ocidental e central do país dizem estar preparados para lutar para man­ter a integridade territorial.
Com certeza. Os ucranianos estão dispos­tos a proteger o seu território, o seu país. Isso é normal.

Mesmo que o governo não tome nenhuma iniciativa militar, pode haver uma resposta civil para contrariar esta tentativa de anexação?
Vamos ver. Há um grande ímpeto dos ucranianos... Oxalá isso não aconteça. Ninguém quer sangue, ninguém quer novas vítimas. Todas as partes podem confirmar que estamos a procurar a melhor saída para esta situação, que não foi provocada pela Ucrânia.

O que significa a criação da Guarda Nacional no país?
Que as autoridades ucranianas estão a tomar medidas, enfrentando a ameaça real da intervenção militar contra o ter­ritório nacional.

Da última vez que falámos, disse-me que no Ocidente tinham de compreen­der que as condições de vida na Ucrâ­nia são muito diferentes...
Quis dizer que a Ucrânia é, em si, um país muito variado. É um país multinacional, onde persistem diferenças entre o Leste e o Oeste. Em Portugal há diferenças entre a população do Sul e do Norte, mas as nossas diferenças são bem mais profundas. Isso deve ser sublinhado em todas as análises. O governo actual está consciente dessas diferenças. Lamentavelmente, não foram tidas em conta antes. Agora deveriam ser respeitadas de forma mais cuidadosa.

“O referendo sobre a anexação da Crimeia à Rússia não será reconhecido por Kiev”
“Estamos a contar com o apoio da Europa, e esperamos que juntos possamos encontrar uma solução”
“A Ucrânia é Europa. Vivemos segundo os princípios da civilização europeia”


Mas há algo que une os ucranianos, como as difíceis condições económicas e as climatéricas. E a Gazprom voltou a ameaçar com o corte no fornecimento de gás....
De momento os russos estão apenas a constatar que essa dívida está por pagar, não se fala já num corte. Podemos prever que, se não se paga, certamente os russos irão recorrer uma vez mais a este factor para estabelecer pressão sobre a Ucrânia. Nós estamos a contar com o apoio e a solidariedade da parte dos nossos parceiros europeus e esperamos que, juntos, possamos encontrar uma saída para esta situação, também virtual. Porque não queremos permitir que se chegue a um tal impasse que leve a um corte no fornecimento de gás por parte da Rússia.

A propaganda dos meios de comunicação estatais russos, que dão a imagem da revolução de Maidan como um golpe fascista, ilegítimo, pode ser um primeiro passo para outra intervenção?
Um pouco o que os EUA fizeram antes de avançarem para o Iraque?
Preferia não traçar esses paralelismos.
De nenhuma maneira gostaria que o meu país fosse enquadrado numa analogia com aquilo que se passou no Iraque. São duas situações distintas. Mas, evidentemente, os russos estão a justificar as suas acções da maneira que lhes parece mais consistente e mais convincente. Graças a Deus, a Europa não está a alinhar nessa interpretação.

A Rússia tem usado o argumento da forma como a Crimeia foi integrada na Ucrânia, ainda no período
soviético, com Nikita Khrushchev para defender as suas pretensões …
Se usarmos essa abordagem, teremos de rever todas as fronteiras europeias depois da Segunda Guerra Mundial. A Ucrânia foi reconhecida mundialmente, e inclusivamente pela Rússia, nas suas fronteiras actuais – que incluem a Crimeia. Essas análises não têm nenhum fundamento.

Que informações tem em relação às alegações de que os francos-atiradores que abriram fogo sobre os manifestantes na Praça Maidan terão sido contratados pelos actuais líderes ucranianos?
Se me fala da investigação, não posso expressar uma opinião sobre isso. O Parlamento Europeu, segundo sei, pediu que fossem investigadas essas alegações, se a conversa telefónica [entre o chefe da diplomacia da Estónia, Urmas Paet, e a alta representante da EU Catherine Ashton] realmente aconteceu… Vamos ver.

Há fundamento nos relatos sobre a contratação de mercenáriosda empresa de segurança privada americana Arcadi, antiga Blackwater, para lidar com as manifestações pró-Rússia em Donetsk?
Parece-me que não houve comentários oficiais em relação a isso, apenas artigos jornalísticos, a começar pelos dos jorna­listas russos. Para mim, não passa de uma virtualidade. Não está comprovado. E as tecnologias modernas podem fazer a com­posição de qualquer imagem. Eu não tive qualquer informação dos meios de comu­nicação ucranianos sobre esse assunto.

Os grupos extremistas assumiram um grande protagonismo nas manifesta­ções em Kiev e entretanto chegaram à Ucrânia elementos de grupos naciona­listas de outros países para tentar esta­belecer a revolução de Kiev como um bastião do poder nacionalista. Esta revolução pode ser sequestrada por estes grupos extremistas?
Posso responder-lhe que nenhum cida­dão ucraniano pretende que o país se torne um palco de confrontos, seja de que força for. Aquilo que me conta, estou a ouvi-lo pela primeira vez, nunca sou­be disso. Pode ser que agora estejam a surgir histórias, com os jornalistas à pro­cura de factos, digamos, “quentes”... Mas na Ucrânia não estamos debruçados
Sobre esse cenário.

As manifestações foram provocadas só pelo recuo de Yanukovych em relação a assinar o pacto de integração com a União Europeia, preferindo uma aproximação à Rússia?
Foi o factor inicial, que depois se transformou num descontentamento generalizado com a polícia de Yanukovych. Foi o início, depois houve um levantamento, porque as pessoas estavam fartas das polícias anti-sociais e com fracos resultados. Havia muitas expectativas de que a assinatura do acordo de associação daria seguimento às reformas iniciadas pelo governo anterior. Essa perspectiva foi suspensa e o governo actual está a reiniciar as conversações. Foi já anunciado, aliás, pelas autoridades europeias que existe uma possibilidade realista de ser assinada, pelo emnos, a parte política do acordo nas próximas semanas, até às eleições presidenciais antecipadas, marcadas para 25 de Maio. É uma das consequências dos acontecimentos dos últimos meses. Chegámos, finalmente, aos objectivos que tinham sido traçados e legalmente previstos já na lei ucraniana, que diz que o objectivo estratégico da Ucrânia é a integração na EU.

A dívida da Ucrânia e os problemas económicos do país são, provavelmente, a maior ameaça à estabilidade
Precisamos de ajuda financeira para tapar os buracos e assegurar o cumprimento ininterrupto das nossas obrigações, a realização dos programas sociais. A Ucrânia, felizmente, não declarou a bancarrota. Não deixa de ser verdade que a situação económica da Ucrânia é neste momento muito difícil, mas não há dados concretos sobre as consequências desta crise política dos últimos meses. As consequências da desconfiança face ao governo anterior levam a que as obrigações ucranianas não sejam atraentes para os mercados internacionais. E por isso é que digo que precisamos de ajuda para tapar também este buraco, para recuperar a confiança dos investidores internacionais, para que as obrigações do Estado sejam cotadas devidamente. Precisamos dessa alavanca para restituir o funcionamento normal às instituições e à economia nacionais. E contamos que esse apoio chegue em breve. A Ucrânia é um país com um enorme potencial económico e precisamos desse dinheiro para tomar fôlego, para recuperar o ritmo normal do funcionamento da economia.

Mas as indústrias ucranianas estão baseadas mais a leste do país, muito dependentes do comércio com a Rússia, e é preciso saber se estas indústrias podem competir de igual para igual no mercado livre europeu... 
Teremos que reorientar alguns fluxos das nossas exportações. Mas foi anunciado há pouco pelo actual líder do país que a UE tomou a decisão de abrir unilateralmente os seus mercados aos produtos ucranianos. Quer dizer, retirar as barreiras para os produtos ucranianos. Para que o que antes era vendido nos merca­dos russos possa, em parte, ser desviado para o Ocidente, para que a Ucrânia não sofra grandes perdas nas suas exportacões. As exportações ucranianas para a união aduaneira [Rússia e outras ex-repúblicas soviéticas] são 36% do total, e foram destinados 26% para a UE, uma diferença de 10%. Quanto às importações, os valores são praticamente iguais: 37% e 35%. Por isso, se falarmos de uma diferença 10%, com a abertura dos mercados e retirada de algumas barreiras aos produtos ucranianos, a diferença poderá ser compensada. É claro que ninguém está seguro das eventuais perdas numa situação destas, mas também por isso é que estamos tão reticentes em suspender as relações económicas com a Rússia. Que­ríamos preservar essas relações e conti­nuamos a considerar a Rússia um país parceiro, um país irmão. Nenhum res­ponsável político na Ucrânia está a defen­der que a Rússia não é mais um parcei­ro comercial e continuamos a contar com o seu mercado. Mas a Rússia é que esta­va a impor as condições para essa rela­ção, a ameaçar que se assinássemos o pacto de integração com a UE reduziria a entrada de produtos ucranianos no país. Se houver este tipo de exigências não será do nosso interesse voltarmos ao fluxo que mantínhamos até aqui.

Com um governo que até 25 de Maio vai estar sempre assombrado pela questão da legitimidade, com o país dividido, com as diferenças e clivagens que referiu a aumentarem...
Esperemos que não. Tenho, de resto, a impressão de que perante a ameaça de invasão do território ucraniano, com a violação da integridade territorial pela Rússia, os cidadãos ucranianos estão a unir-se. Há um grande espírito de conso­lidação perante uma ameaça externa Por isso, independentemente das diferenças, essa será a tendência mais forte. Os pró­prios políticos ucranianos estão a apelar aos cidadãos para que esqueçam as diferenças e se unam perante uma ameaça

“A Ucrânia tem um enorme potencial económico, precisamos de apoio para recuperar o ritmo da economia”
“Com a violação da integridade territorial pela Rússia, os cidadãos ucranianos estão aunir-se”


Os analistas têm afirmado que Putin parece ter uma estratégia ardilosa, ten­do criado uma situação de crise que se poderá arrastar por meses, asfixiando a economia ucraniana e forçando o país a ceder aos interesses russos...
Não posso falar pelo presidente russo, não sei quais são as suas intenções. Pos­so falar-lhe das relações que o governo da Ucrânia mantém. Não queremos guer­ra com a Rússia, queremos viver em paz. Mas ao mesmo tempo queremos gozar do nosso direito de eleger o rumo do nos­so desenvolvimento. Não há dúvida nenhu­ma de que a Ucrânia vive actualmente uma situação muito difícil, um momen­to crítico. Mas para isso é que serve a comunidade internacional. Nós não estamos a viver num vazio.

No caso da Síria, um relatório de inves­tigadores independentes dentro das Nações Unidas acusou os membros permanentes do Conselho de Seguran­ça de não agirem de uma forma res­ponsável face à guerra naquele país. O Conselho de Segurança devia fazer mais no caso da Ucrânia?
Não há comparação. Não nos podemos esquecer de uma coisa: Ucrânia é Euro­pa. Vivemos segundo os princípios da civi­lização europeia. A Ucrânia é um país de tradição e valores cristãos. Há uma diferen­ça de percepção. Mais uma vez lhe digo que esperamos o apoio da comunidade internacional, o apoio dos mecanismos internacionais previstos para bloquear um cenário de conflito. Existem mecanismos previstos, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, depois da criação da ONU, e a Ucrânia está protegida por uma série de acordos internacionais que não deixa­rão de ser respeitados. Contamos com uma acção adequada da comunidade interna­cional para regularizar a situação que envolve actualmente a Ucrânia.

Então a Ucrânia espera neste momen­to uma reacção responsável e humana da comunidade internacional?
A Ucrânia sabe defender-se, a nossa his­tória é feita de guerras. Estamos fartos de guerras, mas sabemos defender-nos. Não queremos que a Ucrânia se torne num foco de tensão e conflito no seio da Euro­pa. Quando o povo não tem outro remé­dio senão defender-se, defender a sua vida, defende-a. Mas somos um povo civiliza­do: achamos que qualquer problema deve ser solucionado com base nos compromissos internacionais que assume qualquer membro da comunidade internacional. E quando falamos da Rússia um membro qualquer da comunidade internacional: é um membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, um país que se posiciona como um pólo da política internacional e um garante da paz internacional. A Rússia vária defendeu que queria liderar esse compromisso: é o momento para confirmá-lo

Na Maidan houve um ponto de viragem, quando Yanukovych começou a ceder. Os oligarcas que o apoiavam, puxaram-lhe o tapete, Yulia Tymoshenko foi libertada e uniu os oligarcas em torno das novas autoridades. O próprio Putin disse que via as manifestações como o protesto de um povo farto de ver ladrões a sucederem-se no poder. Não há o perigo de em pouco tempo o povo ucraniano ter as mesmas razões para se queixar de corrupção?
Eu não posso prever o futuro, mas tudo vai depender dos passos que o governo der. O govemo agora tem os poderes e condições, o apoio das pessoas que se manifestaram na Maidan, tem capacidade para restabe­lecer a confiança do povo na sua autorida­de. Todos nós queremos ver o nosso país calmo, gostaríamos de voltar ao funciona­mento normal, ao desenvolvimento nor­mal e que não nos ameacem. Que o povo ucraniano não seja dividido, que a nossa integridade territorial se mantenha into­cada, inalterável e tudo isso. Queremos que os outros povos também esperem isso, apostem nisso e não tracem cenários vio­lentos, que nos parecem inaceitáveis.

“Não queremos que a Ucrânia se tome um foco de tensão e conflito no seio da Europa”
“Temos recebido chamadas de jovens ucranianos em Portugal que se querem alistar nas brigadas de autodefesa”


Quais são as grandes preocupações da comunidade ucraniana em Portugal, nos contactos que tem mantido com a embaixada?
Muito curioso é que, com todas as preo­cupações que pode haver, temos recebi­do chamadas telefónicas a pedir informação sobre o que fazer para se alista­rem nas brigadas de autodefesa na Ucrânia.
Jovens ucranianos que vivem aqui em Portugal procuram saber o que devem fazer para se juntar àqueles que agora estão envolvidos nos esforços civis de autodefesa do país. Há uma onda mui­to forte de patriotismo neste momento na Ucrânia, e esperamos que isso nos ajude a enfrentar os problemas que estão a aparecer. O principal agora é sair da situação de crise criada na Crimeia, e estamos convencidos de que só saire­mos dela com o apoio da comunidade internacional.

Há já algum prazo definido para a entrega do apoio financeiro de Bruxe­las?
Estamos a falar dos próximos dois ou três anos. Ouvi o primeiro-ministro da Ucrâ­nia informar os deputados no parlamen­to sobre o acordo alcançado na última visita a Bruxelas, que falou de 11 mil milhões de euros para os próximos anos e que estarão divididos em distintos pro­gramas. A decisão quanto à entrega de ajuda financeira já foi tomada e isso, psi­cologicamente, é uma ajuda.

Da última vez que falámos, lamentava que havia uma certa falta de atenção de alguns países ocidentais sobre Ucrânia, até de Portugal, onde há uma significativa comunidade de ucranianos. A Ucrânia tornou-se agora um símbolo de uma grande capacidade de mobilização popular em luta contra a corrupção?
Absolutamente. Essa foi uma das exigên­cias principais na Maidan, que a luta con­tra a corrupção se tornasse uma priori­dade para o novo governo.

Há então um balanço positivo, pelo menos no que diz respeito à imagem do país, quando há dúvidas sobre a capacidade das populações reassumi­rem o comando dos seus destinos con­tra uma classe corrupta e com dinhei­ro, como tem sido a classe dirigente na Ucrânia. Esse lado positivo significa uma ameaça à posição de Vladimir, associado também a oligarcas e a casos de corrupção?
Podemos especular sobre a forma como esta revolução na Ucrânia pode influen­ciar o mundo. Com certeza é um exem­plo positivo, e por isso pode ser uma influência positiva. Mas isso já vai para lá da minha imaginação.


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