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sábado, 15 de março de 2014

A Guerra da Crimeia não vai ter lugar OPINIÃO


OPINIÃO
CARLOS GASPAR 01/03/2014-00:41

Melhor do que ninguém, as elites russas conhecem a sua história e não estão condenadas a repetir os erros do passado.

Presidente Vladimir Putin cometeu dois erros sérios em relação à Ucrânia e parece prestes a cometer um terceiro.

O primeiro erro crasso foi ter impedido o Presidente Viktor Ianukovich de assinar o Acordo de Associação com a União Europeia, na cimeira de Vilnius, em Novembro passado. Desde logo, esse acordo era crucial para inverter a crise económica e financeira e conter o clientelismo do regime presidencialista, sem pôr em causa nem o estatuto internacional da Ucrânia, nem as suas relações com Moscovo. Por outro lado, os acordos não significavam um compromisso definitivo de integração europeia e mesmo uma eventual adesão da Ucrânia à União Europeia, ao contrário da entrada na Organização do Tratado do Atlântico Norte, não implicaria a sua vinculação estratégica à aliança ocidental. Por último, as sondagens indicavam, pela primeira vez, uma clara maioria da opinião ucraniana a favor da adesão à União Europeia, enquanto os partidários da adesão periferia russófona oriental.

Retrospectivamente - ironia da história - é possível admitir que a assinatura dos acordos europeus, ao contrário das prebendas russas, teriam permitido um prolongamento do tempo de vida do regime de Viktor Ianukovich. Mas Putin, aparentemente, teve medo da União Europeia.

O segundo erro, partilhado com um certo número de dirigentes ocidentais, foi ter pensado que Ianukovich não só conseguia adiar o colapso financeiro da Ucrânia com as promessas da Rússia sobre a assistência financeira e a diminuição dos custos da energia, como ia prevalecer, se necessário pela força bruta, contra as manifestações da oposição que cercaram, literalmente, o regime presidencialista durante os longos meses do Inverno. A violência da guarda pretoriana de Ianukovich, que prendeu e assassinou livremente os opositores na Maidan e arredores, desfez o que restava da legitimidade do seu regime.

No momento decisivo, as forças armadas ucranianas recusaram intervir contra os manifestantes: a sociedade ucraniana estava reunida na Maidan para depor um regime sem sustentação interna. O próprio Partido das Regiões, maioritário no Sul e no Leste da Ucrânia, deixou cair Ianukovich. Completamente isolado, o Presidente fugiu de Kiev e, segundo as últimas indicações, está refugiado num sanatório do Kremlin.

O terceiro erro, o mais perigoso, é a multiplicação das provocações, desde a rejeição do regime de transição até à organização das manifestações separatistas na Crimeia, passando pela mobilização das forças armadas russas e a realização de exercícios militares nas fronteiras da Ucrânia. O método é conhecido: os discípulos do KGB desistiram da luta de classes e passaram a manipular divisões étnicas e linguísticas, criando conflitos permanentes, incluindo Estados.fantasma, como a Abkházia ou a Ossétia do Sul, no "estrangeiro próximo".

Mas a Ucrânia não é a Geórgia. A Ucrânia é um grande país, não é independente por acaso e as suas divisões internas, bem marcadas, só podem levar a uma fragmentação do Estado, se a Rússia apoiar, política e militarmente, os movimentos secessionistas na Crimeia. Nesse caso, o Presidente Putin estaria a violar os acordos de desnuclearização da Ucrânia que asseguram à Rússia o seu estatuto como único Estado nuclear sucessor da União Soviética. Com efeito, até à data, o Estado ucraniano foi a única potência relevante que aceitou, para o bem e para o mal, desistir do terceiro maior arsenal nuclear mundial, nos termos do Memorandum de Budapeste, em que os Estados Unidos, a Federação Russa e o Reino Unido se comprometem todos a respeitar "a independência e a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia".

Esses acordos são parte integrante da ordem do pós-Guerra Fria e a sua violação, no caso de uma intervenção da Rússia, não poderia ser aceite pelas outras duas potências nucleares sem pôr em causa ostatu quo internacional.

No dia 27 de Fevereiro de 1854, a Inglaterra e a França apresentaram à Rússia um ultimatum para cessar a ofensiva dos seus exércitos nos Principados Danubianos contra o Império Otomano. Sem resposta, as esquadras das potências ocidentais, que já estavam nos Estreitos, seguiram a caminho de Odessa e Sebastopol para iniciar a Guerra da Crimeia. No ano seguinte, a derrota do império czarista foi um momento de viragem na história da Rússia e nas suas relações com a Europa. Com efeito, a guerra revelou as vulnerabilidades profundas das suas instituições políticas, militares e sociais, e um novo czar, Alexandre II, pôde realizar as grandes reformas internas, incluindo a libertação dos servos, que tornaram possível a modernização da Rússia.

Melhor do que ninguém, as elites russas conhecem a sua história e não estão condenadas a repetir os erros do passado. A Guerra da Crimeia não vai ter lugar.


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