OPINIÃO
CARLOS GASPAR 01/03/2014-00:41
Melhor do que ninguém, as elites russas conhecem a sua
história e não estão condenadas a repetir os erros do passado.
Presidente Vladimir
Putin cometeu dois erros
sérios em relação à Ucrânia e parece prestes a cometer um terceiro.
O primeiro erro
crasso foi ter impedido o Presidente Viktor Ianukovich de assinar o Acordo de
Associação com a União Europeia, na cimeira de Vilnius, em Novembro passado.
Desde logo, esse acordo era crucial para inverter a crise económica e
financeira e conter o clientelismo do regime presidencialista, sem pôr em causa
nem o estatuto internacional da Ucrânia, nem as suas relações
com Moscovo. Por outro lado, os
acordos não significavam um compromisso definitivo de integração europeia e
mesmo uma eventual adesão da Ucrânia à União Europeia, ao contrário da entrada
na Organização do Tratado do Atlântico Norte, não implicaria a sua vinculação
estratégica à aliança ocidental. Por último, as sondagens indicavam, pela
primeira vez, uma clara maioria da opinião ucraniana a favor da adesão à União
Europeia, enquanto os partidários da adesão periferia
russófona oriental.
Retrospectivamente - ironia
da história - é possível admitir que a assinatura dos acordos europeus, ao
contrário das prebendas russas, teriam permitido um prolongamento do tempo de vida do regime de
Viktor Ianukovich. Mas Putin, aparentemente, teve medo da União Europeia.
O segundo erro, partilhado
com um certo número de dirigentes ocidentais, foi ter pensado que Ianukovich
não só conseguia adiar o colapso
financeiro da Ucrânia com as promessas da Rússia sobre a assistência financeira e a diminuição dos custos da energia, como ia prevalecer, se necessário
pela força bruta, contra as manifestações da oposição que cercaram, literalmente,
o regime presidencialista durante os longos meses do Inverno. A violência da
guarda pretoriana de Ianukovich, que prendeu e assassinou livremente os
opositores na Maidan e arredores, desfez o que restava da legitimidade do seu
regime.
No momento decisivo, as forças armadas ucranianas recusaram intervir contra os manifestantes:
a sociedade ucraniana estava reunida na Maidan para depor um regime sem
sustentação interna. O próprio Partido das Regiões, maioritário no Sul e no
Leste da Ucrânia, deixou cair Ianukovich. Completamente isolado, o Presidente
fugiu de Kiev e, segundo as últimas indicações, está refugiado num sanatório do
Kremlin.
O terceiro erro, o mais
perigoso, é a multiplicação das provocações, desde a rejeição do regime de
transição até à organização das manifestações separatistas na Crimeia, passando
pela mobilização das forças armadas
russas e a realização de exercícios militares nas fronteiras da Ucrânia.
O método é conhecido: os discípulos do KGB desistiram da luta de classes e
passaram a manipular divisões étnicas e linguísticas, criando conflitos
permanentes, incluindo Estados.fantasma, como a Abkházia ou a Ossétia do Sul, no "estrangeiro
próximo".
Mas a Ucrânia não é a
Geórgia. A Ucrânia é um grande
país, não é independente por acaso e as suas divisões internas, bem marcadas, só
podem levar a uma fragmentação do Estado, se a Rússia apoiar, política e
militarmente, os movimentos secessionistas na Crimeia. Nesse caso, o Presidente
Putin estaria a violar os acordos de desnuclearização da Ucrânia que asseguram
à Rússia o seu estatuto como único Estado nuclear sucessor da União Soviética.
Com efeito, até à data, o Estado ucraniano foi a única potência relevante que
aceitou, para o bem e para o mal, desistir do terceiro maior arsenal nuclear
mundial, nos termos do Memorandum de Budapeste, em que os Estados Unidos, a
Federação Russa e o Reino Unido se comprometem todos a respeitar "a
independência e a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia".
Esses acordos são
parte integrante da ordem do pós-Guerra Fria e a sua violação, no caso de uma
intervenção da Rússia, não poderia ser aceite pelas outras duas potências
nucleares sem pôr em causa ostatu quo internacional.
No dia 27 de
Fevereiro de 1854, a Inglaterra e a França apresentaram à Rússia um ultimatum para cessar a ofensiva dos seus exércitos nos
Principados Danubianos contra o Império Otomano. Sem resposta, as esquadras das
potências ocidentais, que já estavam nos Estreitos, seguiram a caminho de
Odessa e Sebastopol para iniciar a Guerra da Crimeia. No ano seguinte, a
derrota do império czarista foi um momento de viragem na história da Rússia e
nas suas relações com a Europa. Com efeito, a guerra revelou as
vulnerabilidades profundas das suas instituições políticas, militares e
sociais, e um novo czar, Alexandre II, pôde realizar as grandes reformas
internas, incluindo a libertação dos servos, que tornaram possível a
modernização da Rússia.
Melhor do que
ninguém, as elites russas conhecem a sua história e não estão condenadas a
repetir os erros do passado. A Guerra da Crimeia não vai ter lugar.
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