Ocupação militar
As tropas fiéis a Moscovo, diz o Kremlin, têm por missão neutralizar as «ameaças ultranacionalistas» e «proteger a populaçãode fala russa».
Para os EUA, a invasão da Crimeia «é uma acção do século XIX no seculo XXI»
POR JOÃO DIAS MIGUEL, EM
SIMFEROPOL
Em menos de uma semana,
a península do Mar Negro converteu-se na última fronteira da nova Guerra Fria
que opõe a Rússia ao Ocidente. Os blindados e as tropas de Moscovo controlam
agora todas as infraestruturas da república separatista que protagoniza «a
maior crise que a Europa já conheceu no século XXI»
Noite de sábado, 1 de março, num bar de paredes
revestidas a madeira, onde bancos forrados de cabedal vermelho se atravessam à
frente de mesas dispostas ao estilo de um vagão-restaurante,
em Simferopol, capital da Crimeia. Nesta
cave, no centro da cidade, ouve-se, estridentemente, rock russo e bebe-se cerveja local.
Esperamos a chegada de um elemento da agora chamada, com alguma propriedade,
«resistência»: um dos poucos membros das milícias AutoMaidan que, há uma
semana, tomaram o poder em Kiev e que não vai debandar da capital da Crimeia,
região agora considerada como «território ocupado». Daqui por umas horas, a
Ucrânia convocará todos os reservistas das suas forças armadas. Espera-se
uma guerra.
Acabo de decidir ficar numa cidade que, com
uma rapidez estonteante e quase sem tiros, foi tomada de assalto por forças
especiais russas, operando sem bandeira. Uma república autónoma cujo
Parlamento e principais edifícios públicos estão cercados, cuja central de
comunicações foi tomada e cujos aeroportos estão fechados. Uma zona onde os
jornalistas ocidentais são personae
non gratae e onde estão agora a ser proibidos de entrar.
Comigo ainda se encontram Vladimir e Sergey,
com quem assisti à rendição da marinha costeira ucraniana, no sábado à tarde,
frente aos russos, em Balaklava, uma cidade cujo porto no Mar Negro foi palco
das cenas mais brutais da guerra da Crimeia, há exatamente
160 anos (ver Atlas).
Dima - Dimitry, o fotojornalista com quem trabalho, que regressara, na véspera,
a Kiev para afazeres pessoais - já nem tentará reentrar na região. O grupo foi
meu companheiro de viagem durante mais de mil quilómetros e, juntos, passámos
inúmeros momentos de tensão, nas últimas 36 horas.
“A NATO é Bruxelas e hoje é sábado!”
Ainda há pouco, quando regressávamos de Sebastopol,
tivemos uma reunião improvável, num restaurante de estrada. Após termos ido ao
aeroporto de Belbek, apenas para verificarmos que se tratava de mais um tomado
pelos russos - o terceiro -, e conseguido passar por outro checkpoint
das milícias nacionalistas locais, vemos um grupo de jornalistas que come um bortch
(uma sopa) e discute de forma nervosa. Há um par de horas, o Duma - o
Parlamento, em Moscovo - aprovou uma resolução que permite ao Presidente o
uso da força militar na Crimeia - como se ela não estivesse já no terreno.
Mikhail, um jovem ucraniano que veste um
muito fluorescente colete a dizer «PRESS», e que aparenta ser o produtor de
Sergio Cantone, jornalista da Euronews, está muito assustado: «Sergio, temos
de partir agora ou já não partiremos», garante ele, bem relacionado com a
comunidade ucraniana local. «Eu não sei como te explicar isto, mas, daqui a
umas horas, os russos vão estar por todo o lado, aqui. É a guerra, Sergio. Como
mais queres defini-la?!»
Vladimir e Sergey, já sentados, acenam com a
cabeça: «Da.»[Sim]. Oferecem os três lugares vagos do familiar Mitsubishi, para
quem quiser fugir. «Putine é um predador e, se lhe derem oportunidade, só
parará em Kiev - quando muito, deixa o lado ocidental para os ucranianos. Quando
os russos chegarem, vai haver pânico em todo o lado, as bombas de gasolina vão
ficar vazias, os multibancos sem
dinheiro, as estradas engarrafadas. Provavelmente, Kiev cortará o fornecimento
de eletricidade e a água à Crimeia. Vai ser o caos. Temos de
sair daqui», diz, num tom calmo, mas grave, Vladimir, um ex-consultor imobiliário que a crise transformou em perito
de energias alternativas. É um tipo forte, alto e ponderado, e esta é a
primeira vez que o vejo alarmista.
«Mas e a NATO?», interroga outro dos
presentes. «A NATO garantiu estar pronta para “defender a unidade territoria”
da...» «A NATO?!» interrompe Sergio, entre o divertido e o irritado. «A NATO é
Bruxelas e hoje é sábado, compreendes?!»
São momentos tensos, em que alguns repórteres
decidiram partir e outros decidiram ficar. Eu decidi ficar. Vladimir, Sergey,
Dima e eu vamos separar-nos. Não sem antes, no entanto, eles se assegurarem
que eu tenho, ao menos, alguém a quem telefonar, em caso de emergência, um
apoio local, caso queira fugir. É por isso que estamos, agora, nesta cave de
Simferopol, a ouvir rock pesado de Moscovo. Para compreender como me encontro
com milícias pró-Ucrânia em território pró-russo, é preciso recuar um pouco.
É sexta-feira, 28 de fevereiro, de manhã, e acabo de
percorrer de carro, durante toda a noite, os mais de mil quilómetros que separam
Kiev de Simferopol. Começo a pensar se terei tomado a decisão correcta, na
noite anterior, quando rasguei um bilhete de avião que a bonita Alyona me
arranjou, à última hora. Esta mulher, de 30 anos, espécie de relações públicas
do Hotel Dniepro e apoiante da revolução da Praça da Independência de Kiev, ajudou-me muito, nestes dias, na tentativa, falhada,
de encontrar quarto e apoio logístico em Simferopol. Insistira em vir entregar-me
pessoalmente o bilhete ao quarto, com um sorriso, e uma estranha despedida:
«Tem uma boa vida.»
Falhado um último telefonema, e sem garantir
qualquer rede de apoio local, decidi viajar não de avião mas de carro com os
membros da AutoMaidan, uma das milícias mais moderadas das Samooborona (autodefesa),
que vão, incógnitos, numa missão de reconhecimento à Crimeia. Tomei-a porque me
assegurava tradutor, liberdade de movimentos e alguma proteção,
numa zona pobre e de maneiras rudes, em que
quase ninguém fala inglês. Pus uma única condição: a de que não houvesse armas
na Mitsubishi - o que foi, aparentemente, aceite.
Combinámos encontrar-nos junto da Casa da
Ucrânia, Praça Europa, pelas 1 e 30 da manhã. Setphan e Guillaume, dois jornalistas,
do Le Figaro
e de um grande diário francófono suíço, que estiveram para seguir connosco,
afinal, decidiram ir de avião: tiveram sorte, o seu voo será o último a
aterrar, antes de os russos terem fechado por completo, por mais de 48 horas, o
espaço aéreo a aeronaves civis.
Percorremos, pois, juntos, Mika, Vladimir, Sergey e eu,
durante toda a noite, os mais de mil quilómetros que separam Kiev de
Simferopol. Depois de apenas duas horas de viagem, acaba a floresta e começa a
estepe gelada, de aldeias esparsas e de ar inóspito, com casas de telhados de
zinco e caixilhos de madeira, muito pobres. Pelo caminho, ainda falámos um
pouco, antes de cada um dormitar. A conversa com as milícias da Praça da
Independência, começa, como de costume, por temas nacionalistas - as
Samooborona são um movimento político muito eclético,
mas sempre de pendor extremista, quando toca
à defesa dos interesses da pátria. Uma reação
que explicam pela sua própria história de
subjugação soviética.
«Kiev cortará o fornecimento de eletricidade e água à Crimeia. Vai
ser o caos. Temos de sair daqui!»
VLADIMIR, EX-CONSULTOR IMOBILIÁRIO
Indignados e unidos
Em dezenas de cidades do Leste da Ucrânia mantêm-se as manifestações a favor de Moscoco e contra o novo Governo em Kiev: «Irmãos na Rússia, escravos na Europa», dizem alguns cartazes
A nova “República Independente”
Conversamos, depois, sobre a importância de Sebastopol -
«nós chamamos-lhe a cidade dos marinheiros russos» -, um enorme porto onde a
marinha moscovita deita âncora desde o século XVIII, que lhe
permite controlar o Mar Negro e lhe oferece uma saída para o Mediterrâneo, através
do estreito do Bósforo, na Turquia. Sempre foi uma cidade com um estatuto
especial e, como se verá mais à frente, a sede da riqueza russa na região. O
aluguer da base foi renegociado por Victor Ianukovich, até 2042, e como contrapartida
a Ucrânia teve uma redução de 30% nos preços do gás russo - indispensável não só
à Ucrânia como à Europa Central.
O domínio do território da Crimeia por Kiev foi
ratificado pelas grandes potências - China, Rússia, EUA, Reino Unido e França -
nos acordos de Budapeste, quando, em 1994, se negociou a entrega das armas nucleares
da Ucrânia, em troca da promessa da manutenção da sua integridade territorial.
O país é, assim, a única potência nuclear do mundo que deixou de sê-lo - «e estamos a pagá-lo
bem caro: é a palavra que os russos têm», diz
um dos meus interlocutores.
Depois da independência, os tártaros, que
tinham sido deportados por Estaline para regiões tão distantes como o
Usbequistão, começaram a voltar - é por isso que hoje se pode comer samsa, um prato de
carneiro gorduroso, cozido em forno de lenha, dentro de um pão, nos botecos da beira da estrada -, constituindo agora 12%
por cento da população. «Estão muito bem organizados, numa única associação
política, e com eles os russos não se metem. Os ucranianos, ao contrário, são
24%, talvez um pouco mais, mas dispersam os seus votos por vários partidos e
nunca elegem deputados regionais».
Pelas nove da manhã, ainda ecoam as estranhas
palavras de Alyona na minha cabeça, quando se dá o primeiro sobressalto. «Check- point, checkpoint. Berkut, Berkut». Umas horas antes, enquanto me preparava para a viagem,
tinha lido descrições de como grupos de jornalistas haviam sido recebidos
pelos agentes da dissolvida polícia antimotim que encontraram refúgio na Crimeia.
«Porque não reportaram quando um dos nossos perdeu uma mão?», questionam,
zangados, antes de acusarem uma equipa de repórteres de parcialidade e
instigamento à violência. «Porque são agentes dos americanos?», gritam.
Percebo então, horrorizado, que alguém,
provavelmente por conforto, para dormir, tinha atirado para o meu lado oseu
colete à prova de bala, que pertencera, antes, a um agente da Berkut. Tenho
apenas tempo para o esconder debaixo de um saco de viagem - e rezar para que o
carro não seja inspecionado. Os
homens estão armados de kalashnikovs.
É cedo, mas alguns já bebem cerveja. Fazem perguntas, o
carro é revistado - mas apenas a bagageira: entramos. Estamos agora, como diz
um cartaz com a tricolor russa, na «República Independente da Crimeia».
As heranças de Simferopol
No dia 27 de Fevereiro, o Parlamento da capital da Crimeia foi ocupado e logo começaram as manifestações a favor e contra a Rússia. Os tártaros, simpatizantes do novo Governo em Kiev, receiam agora novas represálias. Este grupo étnico foi maioritário na região desde o século XIII até à Segunda Guerra Mundial.
“Provocatio! Provocatio!”
Avenida Alexanderneveskiv, edifício do representante da
Presidência da Ucrânia na Crimeia, em Simferopol, capital da região, pelas 11h00.
Uma centena de milicianos pró-russos exibem velhas bandeiras azuis, brancas e
vermelhas, com a foice e o martelo da marinha soviética, que estavam em desuso
mas foram desenterradas dos baús. Estão ali
para se assegurarem, pela força, se necessário,
que o novo representante do recém-indigitado Presidente interino da Ucrânia,
Oleksander Turchynov, não poderá exercer funções, cercando a entrada da
residência.
Ali ao pé, na gigantesca Praça Lenine (aqui, as
estátuas de Lenine ainda não caíram), a porta de entrada da Administração Governamental
está tomada por mais de uma dezena de militares armados, bem equipados e
mudos. O mesmo acontece com o Parlamento regional, invadido, dia 27 de
fevereiro, por um grupo de comandos vestidos de negro e no qual foi «eleito», à
porta fechada e sem quórum, um novo primeiro-ministro.
Trata-se de Sergey Aksyonov, líder de um partido
ultranacionalista minoritário (4%, nas últimas eleições parlamentares) que
defende a reunificação da Crimeia com a Rússia. Junto das fronteiras que
separam a Ucrânia da Rússia, 150 mil militares russos, 80 aviões, 880 tanques e
88 navios realizam «manobras de treino» já «previamente programadas». A
comunidade tártara da Crimeia não reconhece o novo líder da região e recusa
falar com esse novo Governo. «Isto já é uma guerra», afirmam os dirigentes.
De repente, a pequena multidão da Avenida Alexanderneveskiv - até aí em clima de confraternização patriótica,
comemorando a chegada dos russos - enfurece-se:«Provocatio, provocatio»,
gritam-me aos ouvidos. Andriy - um jovem que nos acompanha e que acabara de me ser apresentado – começa a ser
esmurrado, afastando-se em passo acelerado. Estamos no meio de uma multidão irada,
com bastões, garantida por vários militares armados, e as palavras de Olyana - «tem
uma boa vida» - soam-me agora a uma profecia tétrica.
Alguns polícias intervêm para proteger o homem, de ar juvenil,
reconhecido como ucraniano, e, pior ainda como um dos líderes locais do movimento
Maidan. Obviamente não é bem-vindo. Saímos, rapidamente.
“Há já semanas que mandei a minha família para o campo», conta agora,
numa sala de refeições vazia, num segundo andar de um café, Andriy Shchekien,
40 anos. «Isto não é seguro para nenhum ucraniano. Nessa altura, todos os
dirigentes a favor da integração na Europa receberam uma 'carta negra’, nas suas
casas, um aviso claro de que as suas vidas correm perigo.» No princípio da
revolta, Kiev, há três meses, a igreja de um padre presente na reunião, que
pediu o anonimato, foi queimada. Razão? «Sou do patriarcado de Kiev, não do de Moscovo», explica.
Por volta das 5 da tarde começa a escurecer. Vladimir e Sergey têm uma
casa-refúgio à sua espera e eu pretendo ainda arranjar hotel (preciso de
internet; um luxo que o apartamento, nos subúrbios, não tem). Mas, às 18h00
chega a notícia: uma coluna militar russa que terá saído de Sebastopol sem a
necessária prévia autorização de Kiev, dirige-se à capital. Seguimos, pois,
pela estrada que leva a Bacthtisaray, o antigo posto de controlo militar de
Sebastopol, a uns 30 quilómetros. Está
lá, de facto, uma
coluna militar composta por velhos veículos - tão velhos que um se avariou e os
outros não parecem em melhor estado. Como de costume, os russos, não dizem ao
que vêm. «Secret», ainda consigo arrancar a um.
O ex-Presidente Ianukovich, entretanto, fez novo discurso, o segundo
esta semana. É agora oficial: está na Rússia, sob a proteção de Putine. Diz que
ainda se considera Chefe de Estado ucraniano e, curiosamente, considera a
Crimeia parte do seu país. São agora 08h00 da noite. Confesso que estranhei a
facilidade com que arranjei quarto, no Hotel Jaguar, a apenas cinco quilómetros do centro de Simferopol e
por, apenas, 300 grivna (30 euros).
Simferopol, a cidade dos Lada
Sábado de manhã, 1 de março. Simferopol é uma cidade feia. Percebo
agora, ao olhar para os símbolos da Land Rover, Toyota e outras marcas que
decoram o hotel, um edifício de três andares, porque se chama Jaguar: trata- se
de um stande de automóveis reconvertido em unidade hoteleira, e o dono não
teve outro remédio senão aproveitar para seu nome o maior dos símbolos
presentes na fachada. Tem wi-fi, mas, em compensação, não tem telefomnes e a electrividade falha, de
tempos a tempos.
À sua frente, estão velhos prédios de cinco andares, de construção
soviética, que já passaram o prazo de validade. «Sabe-se que não caem nos
próximos cinco anos, depois disso ninguém sabe», diz Vladimir, evocando a sua
experiência de profissional do imobiliário. Não há passeios para os peões, as
estradas estão esburacadas e o meio de transporte mais comum ainda são os velhos
Lada - e mesmo estes são para a classe média baixa. Os pobres deslocam-se de
bicicleta, na qual pregam grandes caixotes de fruta que servem para
transportar a bagagem. Há muitos cães abandonados nas ruas.
Dirigimo-nos outra
vez para o centro da cidade - sem Andriy, para evitar problemas. Todas as
entradas continuam sob dupla guarda. Noto que me enganei e trouxe um bloco de apontamentos da semana passada, sobre Kiev.
O espaço aéreo da Crimeia continua fechado, há notícias de que 2 mil soldados
russos protagonizaram uma ponte aérea que terá ainda envolvido dez helicópteros
e outros aviões de transporte.
«Todos os dirigentes a favor da Europa receberam uma ácarta
negra’, um aviso de que as suas vidas correm perigo»
ANDRIY SHCHKIEN, activista
Os jornalistas russos são recebidos de braços
abertos pelas milícias, os ocidentais são vistos com desconfiança, e nós
estamos marcados: «Provocatio;
provocatio.» Não adianta tentar entrevistar russos, os nacionalistas
seguem-nos e afastam-nos das pessoas. Estamos proibidos de fotografar. A dada
altura, sou rodeado por quatro milicianos que me arrancam das mãos o caderno de
apontamentos. «Está confiscado», afirmam. «Niet problem»,
arrisco dizer.
Seguimos agora para Balaklava, que foi, em
tempos, uma «cidade fechada» soviética. Albergava uma antiga oficina de
reparação de submarinos, num canal escavado numa gigantesca montanha, a fazer
lembrar um filme do 007. Descoberta pelos serviços secretos ocidentais, foi
sendo progressivamente abandonada, até se transformar num museu. Ainda ali existe uma base da marinha ucraniana, mas são
os restaurantes chiques sobre o porto, as barraquinhas de souvenirs e de equipamentos de praia e os gigantescos iates na
marina que se destacam, hoje, na paisagem.
Um cruzeiro no Mar Negro
Pode parecer estranho que, a meio de uma invasão russa,
nos preparemos para entrar a bordo da Península
da Tatiana, uma velha embarcação de pesca transformada em navio para
pequenos cruzeiros no Mar Negro. Mas é exatamente
o que fazemos. Como já vos disse, Vladimire
Sergey têm várias «missões» - e uma delas é fotografar a casa de férias de
Victor Ianukovich, em plena reserva natural, nas costas do Mar Negro. Será,
para eles, mais um importante elemento de propaganda, a forma ostensivamente
luxuosa como vivia o ex-Presidente.
Entramos, pois. É uma viagem de 45 minutos
até ao lado de lá de uma escarpa longínqua, de onde poderemos ver a casa. O Tatiana
é uma casca de noz e luta contra cada onda. «Chama-se
assim porque, durante as tempestades as
ondas são enormes e negras», diz o guia, ao ver o meu ar desconfortável.
Passam por nós quatro navios de porte médio, a toda a velocidade, precisamente
no local onde, ainda ontem, duas grandes embarcações de guerra russas
bloqueavam todas as embarcações no porto. Levam bandeira ucraniana.
Para distrair, o guia vai contando a história
de Balaklava. Os primeiros registos têm mais de 2 500 anos de idade e, em
grego, chamava-se Symbolon. Trata-se de um antigo porto para piratas de costa, os tavor,
que ninguém sabe muito bem de onde vieram, mas que tinham por hábito acender
fogueiras no topo dos montes onde, em 1365, os genoveses construíram um forte.
A partir dessas fogueiras, os tavor
atraíam navios que, ao entrarem na enseada, eram atacados por dezenas de
pequenas embarcações. Foi palco de inúmeras batalhas navais, durante a guerra
da Crimeia e os restos de navios dessa época ainda repousam nas suas águas
profundas. Foi aqui que se deu a célebre batalha de Balaklava, que os
britânicos ainda recordam como uma heróica, mas suicida, carga de cavalaria
ligeira.
O cerco de Balaklava
A cidade foi também residência de férias favorita dos czares,
que aqui mandaram construir um complexo de três belíssimas vilas, de um luxo
estonteante, mas que foram caindo em ruínas. Recentemente compradas e
reconstruídas por Olegksander Ianukovich, o dentista filho do ex-Presidente,
agora bilionário, nunca terão sido utilizadas. «Comprou-as para coleção, nunca cá veio», afirma o guia.
E chegamos à casa que Vladimir quer fotografar.
Parece tratar-se de mais um chalet ao estilo suíço (que ainda está em
construção), de quatro andares, com gigantescas janelas rasgadas sobre a costa.
Tem um ancuradouro próprio, onde o iate da família – significativamente chamado
Bandido
- deverá atracar, uma vez acabada a obra. Era um antigo sanatório soviético,
comprado por um oligarca, cujo filho assassinou alguém. Depois, e de uma forma
habitual nos processos da justiça ucraniana, o assassino acabou libertado, o
sanatório demolido e a propriedade nas mãos de Ianukovich
- que aí mandou construir mais um dos seus
«palácios».
Missão cumprida, as fotos estão tiradas.
Eis quando, a meio do caminho de regresso, pelas
redes sociais e plataformas de comunicação por voz com as quais as Samooborona
sempre se mantêm informadas, Sergey dá a notícia: 300 forças especiais russas acabam de cercar
a base naval de Balaklava - precisamente onde estamos. «Então os navios
ucranianos que nós vimos estavam a fugir», digo. «Da»,
acenam em simultâneo.
Chegados ao porto, uma criança anda de
bicicleta com uma bandeira azul, branca e vermelha e, um pouco mais à frente, a
informação confirma-se: os russos acabaram de chegar e negoceiam -
com sete ou oito militares ucranianos dos que ficaram para trás - a rendição.
É uma imponente afirmação de poder: oito camiões de transporte militar cheios,
cinco enormes jipes - Tiger’s, chamam-se
aqui - encimados por metralhadoras, rodeiam a entrada. Os soldados, estão,
como de costume, equipados ao estilo força especial: não lhes falta sequer um
estranho dispositivo para beberem água directamente de um pequeno recipiente
que trazem às costas. Dois pormenores interessantes: as matrículas são russas,
os jipes tinham uma estrela vermelha que a marinha moscovita
ainda usa em algumas embarcações de maior
idade, que foi arrancada, mas é visível, por causa das diferentes camadas de
pó.
Será uma informação irrelevante: daqui por um
par de horas, Putine, respondendo a dois supostos «ataques de nacionalistas
ucranianos», reconhecerá que enviou tropas para a Crimeia. Trata-se de mais uma manobra da velha escola soviética
a que o Presidente da Rússia, um ex-KGB, pertence: quando as imagens forem
difundidas toda a gente terá a possibilidade de ver que os camiões dos
supostos ataques estavam matriculados na Crimeia e que boa parte das armas
neles usadas são exclusivas do exército russo. Resta agora saber o que se
sehue.
Chegamos ao chalet inacabado de
lanukovich. Tem um ancoradouro onde pode ter estado o Bandido, o iate do ex-Presidente
Pode a Crimeia ter o mesmo destino que as
duas regiões separatistas da Geórgia que se autoproclamaram independentes em 2008, com o apoio
de Moscovo? E onde vigoram regimes autoritários que praticamente ninguém
reconhece? Pode a Crimeia alimentar um conflito generalizado entre a Rússia e a
Ucrânia, provocando inúmeras divisões nesta última?
A resposta do Ocidente - de que haverá
«consequências», como a suspensão das reuniões preparatórias da Cimeira do G-8,
agendada para Junho, em Sochi - não deixa antever,
para já, nenhum recuo de Moscovo. Muitos ucranianos sentem-se
traídos.
Sábado, ao final da tarde, somos avisados de
que Andriy pegou na família e fugiu em direção
a oeste. O mesmo fizeram dezenas de ativistas conotados com os novos governantes em Kiev.
Seguir-se-á a votação unânime da autorização para o uso da força, da Duma, em
Moscovo, o pânico dos jornalistas à beira do restaurante de estrada e, na velha
cave/bar de Simferopol, a minha separação de Vladimir e Sergey - que ainda me
escrevem uns quantos números de telefone de «amigos» no bloco. Com um abraço e
um recado: «Desta vez, não deixes qu Putine tem sido aclamado pore to apanhem.»
Consequências Merkel e o frenesim diplomático
A Europa pode estar à beira de uma nova guerra. Quem o diz é o Governo polaco
e os desenvolvimentos dos últimos dias parecem dar-lhe razão.
A escalada político-militar entre Moscovo e Kiev tem sido imparável e o Governo
interino ucraniano já acusa o Kremlin de «agressão militar». Por isso mesmo,
decidiu, esta semana, colocar o exército em alerta máximo, mobilizar os reservistas
do país e tudo fazer para
defender as suas fronteiras: «Jamais entregaremos a Crimeia», garantiu, a 3 de
março, o primeiro-ministro, Arseni latseniuk. Os tambores bélicos impuseram um frenesim
diplomático nas principais chancelarias do planeta, com vários dirigentes
europeus e dos EUA a viajarem para as capitais ucraniana e russa, de modo a
negociarem uma solução pacífica para a crise, ao mesmo tempo que, em Genebra e
Nova Iorque, se sucedem as reuniões sob a égide das Nações Unidas. No entanto,
tudo indica que a crise pode vir a ser resolvida em Viena de Áustria, através
da Organização para a Cooperação e Segurança na Europa (OCSE).
Graças a Angela Merkel, que fala russo e terá convencido Vladimir Puntine nesse sentido, a organização deverá promover um grupo de contacto que pode
vir a acordar o envio de observadores para a Ucrânia.
Objetivo: mediar o diálogo entre as partes desavindas.
Uma novela que promete muitos e imprevisíveis episódios...
Sebastopol 'Uma guerra de dois mundos’
Não é preciso
andar muito por Sebastopol, uma autêntica cidade-estado, para se perceber que
esta cidade é, em simultâneo, a mais rica, a mais russa e a mais militarizada
da península da Crimeia – não albergasse ela a frota russa do mar Negro. A
autarquia desenvolve-se à volta do gigantesco porto, onde existem dezenas de enormes gruas,
rebocadores e navios de guerra. Os seus prédios são muito mais abastados do que
os da capital, Simferopol, os automóveis são quase todos modernos - e muitos
topo de gama - e, nas sua praças, estão semeados lindíssimos monumentos à
memória imperial russa ou soviética. Os seus jardins, as suas casas apalaçadas
com bustos de poetas e heróis russos nas frontarias, fazem lembrar algo de São
Petersburgo. Até o hábito de espalhar velhos tanques T-39 nas praças urbanas,
aqui, é substituído pela exposição dos mais modernos Mig 21 ou 29.
Koista,
Anatoly e Alek praticam o orgulhoso culto do heroísmo histórico da cidade de
Sebastopol, que vendeu cara as suas derrotas (em particular o cerco
franco-britânico, durante a guerra da Crimeia, e o cerco nazi, na Segunda
Guerra Mundial). Os três jovens fazem parte de uma associação arqueológica
dedicada a descobrir os sítios militares de possível escavação, para a «maior
glória da cidade» e estão com uma bandeira branca com uma cruz azul (a atual bandeira da Marinha) na Praça Almirante Nahimov. São eles quem nos explica
as razões dos russos, neste conflito - que alguém escreveu ser, sobretudo, uma
guerra de televisões - e aqui só chegam televisões russas: «Nós nunca aceitaremos
o fascismo e foram os nacionais-socialistas, inspirados pelas potências
ocidentais, que tomaram o poder, na rua, em Kiev.
Agora aqui
estamos a fazer o mesmo: a tomar o poder com as nossa mãos: se os ucranianos
podem, porque é que nós não podemos?», perguntam.
Mas Julia Timoshenko, a ex-primeira-ministra que poderá ser candidata à presidência da Ucrânia
nas eleições de 25 de maio, é fascista? «Não, mas apoiou-os, vai dar ao mesmo.»
E as casas, a corrupção de Ianukovich, não vos
interessam? «Nós não estamos com Ianukovich, mas
as casas dele não são diferentes das dos outros políticos ucranianos.
Kiev nunca nos ligou nenhuma, nunca cá chegou dinheiro nenhum.
E um dos
últimos insultos foi anularem a lei que permitia, também, o uso do russo como língua
oficial.
É uma guerra
de dois mundos: eles não querem o nosso e nós não queremos o deles!»