SILOPOR – Governo vende empresa que descarrega 50% dos
cereais que se consomem em Portugal
Reportagem
Ana Rute Silva (texto) e Daniel
Rocha (fotos)
Pode uma empresa pública estar para fechar desde o ano
2000?
Pode. De polémica em polémica, o executivo incluiu o
encaixe de 40 milhões de euros este ano com a concessão da Silopor.
No Beato e na Trafaria já se vive com a palavra
“liquidação”
Manuel Veiga Lopes atende o telefone da recepção. A Cerealis, a empresa
portuguesa mais conhecida pela marca de massas Nacional, precisa de trigo com
urgência para não entrar em ruptura. A fábrica está à espera, as linhas de
produção aguardam. E, na última fase desta complexa cadeia, há um consumidor
habituado a estender a mão na prateleira e a ter sempre disponíveis produtos
tão essenciais como a massa.
O engenheiro responsável pelo terminal da Silopor no
Beato, em Lisboa, quer acelerar os trabalhos e carregar os camiões que
abastecem a Cerealis, que está ali bem perto das instalações da empresa pública de descarregamento e
armazenamento de cereais. No rio Tejo, um navio veio de França com quatro mil
toneladas de trigo a granel, usado para a alimentação humana.
Não é preciso muito
mais para perceber o que é, e o que faz, a Silopor, prestes a ser concessionada
à ETE, Empresa de Tráfego e Estiva, depois de anos de sucessivos avanços e
recuos: 50% dos cereais que se consomem em Portugal (alimentação humana e
animal) passam pelos silos da Silopor, instalados nos terminais portuários do
Beato e da Trafaria, e em Vale Figueira. “Esta actividade é essencial ao
abastecimento do país em cereais e oleaginosas. Portugal importa 80% das suas
necessidades e a quase totalidade chega por via marítima”, explica Abel
Vinagre, presidente da comissão liquidatária que gere a empresa pública desde
2000.
A Silopor nasceu
rodeada de problemas. Foi criada em 1986 para travar o monopólio do
abastecimento de cereais detido pela EPAC (Empresa Pública de Abastecimento de
Cereais), que desde a sua fundação, em 1976, controlava todo o mercado,
situação incompatível com a legislação comunitária. Assim que deu à luz, pela
mão do então primeiro-ministro Cavaco Silva, foi travada pela Assembleia da
República (maioria parlamentar de esquerda), que suspendeu a lei que definia a
sua criação. Cavaco pediu uma fiscalização de constitucionalidade desta decisão
ao Tribunal Constitucional, mas sem sucesso.~
O parto acabou por
acontecer, mas veio com problemas extras: a Silopor devia ter pago à EPAC pelos
activos que passou a gerir (os silos, por exemplo) mas nunca teve recursos
financeiros. Os anos passaram e, com os juros que a EPAC começou a debitar à
Silopor, criou-se uma dívida que chegou
aos 163 milhões de euros (à data de 2001), como recorda uma auditoria feita em
2005 pelo Tribunal de Contas. O Governo socialista de António Guterres tentou
auxiliar a empresa pública e conceder-lhe um aval de 149,6 milhões de euros,
além de condições especiais de financiamento, mas a Comissão Europeia
considerou a medida ilegal por violar as regras da concorrência. Sem conseguir
desatar o nó, o Estado avança para a dissolução da Silopor e para a concessão a
privados dos silos de Leixões, Trafaria e Beato.
Mas há um “karma” que
parece não abandonar a empresa estatal. Os concursos públicos para a cedência
destas infra-estruturas foram sempre
contestados, envoltos em polémicas e disputados nos tribunais. Os silos no
porto de Leixões foram os primeiros a serem concessionados (à Sogestão, do
grupo Champalidaud), mas resta colocar um ponto final na adjudicação dos
terminais do Beato, Trafaria e Vale Figueira à ETE, que venceu o concurso em
2011. Além disso, só este ano é que o Governo assinou o despacho que faltava
para avançar com o negócio, que vai render 40 milhões de euros aos cofres do
Estado em 2014 e, ao longo dos 25 anos de concessão, um total de 168 milhões de
euros. A Autoridade da Concorrência e o Tribunal de Contas ainda terão uma
palavra a dizer: quem ficar com os silos de armazenamento de cereais ganha 80%
do mercado em Lisboa. E o terminal da Trafaria é dos poucos no país com
capacidade para descarregar cereais de navios de grande dimensão. A Silopo
isso, um negócio apetecível Abel Vinagre garante que enorme dívida à Direcção-Geral
do Tesouro tem sido abatida na década, a um ritmo de três quatro milhões por
ano. Mas os juros cobrados pela EPAC nunca foram reconhecidos pela Silopor, nem foram espelhados nas suas contas “por se
entender que não estavam de acordo com as propostas da comissão constituída ao
abrigo do n.° 9 do art.° 2 da lei 376/88”, lê-se no documento de certificação legal das contas incluído no relatório
financeiro de 2012.
Em 2010, o saldo devedor da Silopor nos registos da
Direcção-Geral do Tesouro e Finanças (citados pelo relatório da empresa desse
ano) era de 45,5 milhões de euros, 21 milhões dos quais assumidos peia Silopor
como dívida. No ano seguinte, o valor foi reduzido para 41,4 milhões. Mas em
2012 o relatório e contas referia que, à data, a Direcção-Geral do Tesouro
reportava uma dívida total de 162.339.967 euros. A Silopor assume apenas 13
milhões de euros e o presidente da comissão liquidatária avança que o valor
actual, de 2013, é de nove milhões de euros. O PÚBLICO contactou o Ministério
das Finanças para saber qual é, afinal, o entendimento do Governo sobre a
dívida da empresa pública à EPAC e quem a assume, mas não obteve esclarecimentos
em tempo útil. Também pediu esclarecimentos, sem sucesso, ao Ministério da
Economia sobre os motivos do atraso na concessão.
Enquanto isso, os 105 trabalhadores - 75 dos quais no
quadro - foram-se habituando à palavra “liquidação”. “Nos primeiros anos
tínhamos algum stress e expectativas, mas a partir de certa altura deixou de
ser importante. Já encaramos com naturalidade”, conta Veiga Lopes, 62 anos, que
mexe em cereais desde que tirou o curso de engenharia agronómica. Apesar de a
empresa estar nesta situação há 14 anos, o maior impacto sente-se no contacto com os fornecedores. “Temos de explicar sempre que estamos em
liquidação mas pagamos as contas. E já houve quem não nos quisesse vender
determinada peça de que precisávamos”, revela.
No Beato, sente-se o frio do rio. Ouve-se o som das máquinas a aspirar o trigo do navio Karl Jacob K, 90 metros de
comprimento, que demorou quatro dias a chegar a Lisboa, vindo de França. Nos
porões, lá estão as quatro mil toneladas de trigo. O dia está tranquilo. Mas,
por vezes, há fila de espera no rio. “Nessas alturas, os navios respeitam
rigorosamente a hora de chegada” explica Veiga Lopes.
A máquina de descarga tem um gigantesco tubo que suga o trigo a grande
velocidade (600 toneladas por hora). No comando está Albino. Com 30 anos de
experiência, sabe onde colocar o tubo de forma a não afectar a estabilidade do
navio. “Tem de se respeitar o navio”, sentencia o responsável pelo terminal. Os
cereais são pesados antes de serem armazenados nos gigantescos cilindros de
betão. Seguem por tapetes rolantes, de borracha, que não são visíveis, estão
escondidos em estruturas metálicas que ligam a máquina de descarga às células
de armazenamento. O cereal é “despejado” de cima para baixo. Cada um no seu
devido lugar, para um cliente específico. A Silopor trabalha para os
importadores de cereais que, por sua vez, vendem o produto à indústria. O maior
cliente é a Louis Dreyfus, um gigante que fornece matérias-primas suficientes para alimentar e vestir mais de 500 milhões de pessoas em todo
o mundo e que produz e transporta cerca de 70 milhões de toneladas de produtos
anualmente.
No porão do barco, atracado no terminal da Silopor, está trigo no valor de
92 mil euros. Um tesouro apetecível, controlado desde a chegada à saída com
pesagens constantes.
“Todos comemos daqui. O pão que se come de Coimbra para baixo [até ao
Algarve] vem daqui”, recorda Veiga Lopes.
Na outra margem do Tejo, os silos da Trafaria
impõem-se na paisagem, instalados em 12 hectares de terreno. Destoam da pitoresca
localidade piscatória que desde sempre contestou o cimento esmagador, o “mamarracho”, que nasceu à sua porta, o pó que por mais aspiradores que haja garantem sentir.
“A população nunca aceitou que viessem colocar um monstro na sua bela praia”, admite
Cario Belo, director do terminal.
A dimensão do terminal de descarga não se compara à do Beato. Nem a
qualquer outra estrutura semelhante no país.
Aqui passam navios com um comprimento que pode chegar aos 260 metros e há,
não um, mas quatro postos de acostagem, que possibilitam, inclusive, a carga de
cereais entre navios (transhipment). As três máquinas de descarga (que sugam o cereal dos porões) têm uma
potência equivalente a dois mil aspiradores domésticos (ver infografia).
» Temos de fazer diariamente o que tem de ser feito e da
melhor forma possível. Seja o patrão Estado ou não»
Carlos Belo
Director do terminal
Carlos Belo conhece cada canto de olhos fechados. Mas diz, com lucidez, que
de nada vale ter infra-estruturas de topo se o custo do serviço prestado não for competitivo. O “fantasma” da
concessão, que paira há demasiados anos sobre a empresa pública, é um tema
recorrente nas conversas que tem com os trabalhadores. “Há que avançar. Temos
de fazer diariamente o que tem de ser feito e da melhor forma possível. De
maneira a que o rendimento seja o máximo. Seja o patrão Estado ou não”, diz. E
continua: “Existe sempre a expectativa de saber como vai ser. É legítimo. O que
transmito às pessoas é que, aqui, acabam por ter a valorização máxima porque
conseguem fazer qualquer coisa dentro da instalação. E quem vier vai sempre
precisar de gente conhecedora.”
A
chuva miudinha parece cair na horizontal. A bordo do gigante navio carregado de
60 mil toneladas de milho que chegou da Ucrânia - o celeiro da Europa -, um
trabalhador comanda a máquina de descarga, posicionando o gigante tubo rio
porão para aspirar o cereal. Os ritmos de descarga são contratualizados com o
cliente. Podem chegar às 21 mil toneladas por dia, mas em dias de chuva os
trabalhos param. A estiva (contratualizada fora) é uma tarefa dura, árdua e
áspera. ”Nós aqui prometemos trabalho e inferno. Com o esforço de todos,
tomamos isto um pouco mais de céu”, diz Carlos Belo.
Depois de retirado do navio e armazenado nas
células (há 114 no total, com uma capacidade para guardar 200 mil toneladas), o
cereal está pronto a ser recolhido. Por dia, passam pela Trafaria entre 220 e
230 camiões que transportam, em média, seis mil toneladas. “A expedição
rodoviária é uma operação importante. É assim que se alimenta o país”, explica
o director do terminal. Há 13 pontos de entrega de cereais: cada um é
controlado através de câmaras de videovigilância. A quantidade de produto a
expedir é comunicada à entrada. Depois de tudo acertado, o motorista posiciona
o camião debaixo de um edifício e o cereal é “despejado”. Três minutos e está
pronto para se fazer à estrada.
Junto a uma das áreas de expedição, cheira a
ração para animais. O tubo de onde saíram os cereais está coberto de um pó
branco e, no chão, vêm-se uns quantos bagos de milho. Das oito da manhã à
meia-noite, a Trafaria não pára.
A demora no processo de liquidação não travou
a actividade dos silos portuários, empresa que em 2013 terá mantido os lucros
líquidos nos 1.602.723 euros (valor de 2012, que caiu cerca de 29% face a
2011). “Ao longo deste período sucederam-se vários governos. Não posso dizer
que tenham sido fixados objectivos e uma estratégia imutável, entre o ‘vamos lá
dar a volta à empresa e depois privatizamos’ e o ‘vamos privatizar e depois
logo se vê’. As decisões foram mudando”, conta Abel Vinagre, sentado numa ampla
sala de reuniões com vista para o Tejo, no terminal do Beato. A novela
terminará este ano?
Ou seja, como sempre, Leis a mais, soberanias a mais e decisões a menos!
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