JOAO CARLOS ESPADA 03/02/2014 - 00:08
A grande razão política que levou a Rússia a pressionar a
Ucrânia é euro-atlântica, não apenas europeia.
No próximo fim-de-semana, terão início os Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, na Rússia.
Espera-se uma retumbante
manifestação de força e habitual arrogância dos novos czares de Moscovo. Mas o
espectáculo - que, antes de começar, já custou aos contribuintes quatro vezes
mais do que as Olimpíadas de Londres, em 2012 - não deve ser tomado à letra.
Por detrás da fachada imperial da Rússia, esconde-se
uma oligárquica
estrutura de corrupção, arbítrio e despesismo do Estado, à custa dos cidadãos
comuns, que não são protegidos pela lei.
O chamado modelo russo, de que o sr. Putin gosta de se
vangloriar, não estará realmente em exibição em Sochi. Aí estará apenas a
fachada. A verdadeira natureza do modelo russo pode ser observada em Kiev, na
Ucrânia, onde o sr. Putin tem exercido a sua diplomacia de ferro - impondo à
Ucrânia o afastamento do Ocidente.
O resultado desse modelo está à
vista. Desde 22 de Novembro que o regime oligárquico de Ianukovich, o homem de
mão do sr. Putin na Ucrânia,
enfrenta diariamente protestos populares. Estes foram desencadeados pelo
anúncio naquela data de que estavam suspensas as negociações do acordo de
cooperação com a União Europeia – acordo cuja assinatura estava anunciada para
28 de Novembro. Simultaneamente, Ianukovich anunciava um empréstimo russo à
Ucrânia e a intenção de trocar a parceria com a UE por uma parceria com a
Rússia.
Desde essa data, os protestos de
rua não pararam, transformando-se em verdadeiras batalhas campais. Até que, na terça-feira,
o Presidente Ianukovich demitiu o seu Governo e anulou a legislação repressiva
com que tentara, semanas antes, asfixiar os protestos. Convidou ainda Arseny
Iatseniuk, um líder da oposição, para primeiro-ministro o que este recusou. E
os conflitos de rua continuam, em proporções alarmantes. John Kerry, o
secretário de Estado norte-americano, declarou no sábado, em Munique,
que o destino da democracia se jogava em Kiev e que este era um teste decisivo
para a Europa.
Talvez o leitor destas linhas não
leve a mal que eu recorde o que escrevi aqui, a 25 de Novembro - estas
"Cartas do Atlântico" chamavam-se então ainda "Cartas de
Varsóvia" -, sobre a grave decisão do Presidente ucraniano de romper as
negociações com a União Europeia. Recordei nessa altura que, três dias antes, a
22 de Novembro, o embaixador da Polónia em Portugal, Bronsilaw Misztal, reunira
em Lisboa altos-representantes da Geórgia, Moldávia e Ucrânia - incluindo o
embaixador Valeriy Pyatnytskiy, chefe da comissão ucraniana nas negociações com
a UE. Tinha sido nesse mesmo dia que o regime de Kiev anunciara a suspensão das
negociações com a UE.
Observei então que o encontro da
Parceria de Leste em Lisboa deveria ajudar-nos a superar o entediante
paroquialismo de grande parte dos nossos debates caseiros sobre a União
Europeia. É penoso discutir sobretudo se nos pagam, se não pagam, e se
evidentemente nos deviam pagar. Há mais Europa para além do défice, para
parafrasear, em sentido potencialmente diferente, o célebre comentário de um
antigo Presidente da República.
A Europa não é, com efeito,
primordialmente acerca de transferências financeiras entre países-membros, nem, já agora, sobre
sonhos de moedas únicas. A Europa é uma comunidade de nações, cujos valores
desafiam autocratas e fundamentalistas
por esse mundo fora. Foi por isso que a Rússia pressionou a Ucrânia para
impedir o acordo sobre a parceria de Leste. Não foi por causa do euro, nem das
directivas de Bruxelas sobre o tamanho das bananas.
A grande razão política que levou
a Rússia a pressionar a Ucrânia é aliás euro-atlântica, não apenas europeia. A
União Europeia é percepcionada como ameaça pela Rússia porque a Europa é berço
da civilização da liberdade euro-americana. Separada da América, a Europa seria
um jogador menor no xadrez mundial, como muitas vezes aconteceu no passado,
para dizer o mínimo.
Talvez entre nós devêssemos
também recordar estes valores euro-atlânticos. Quando entre nós se continua a
reclamar sempre mais despesa do Estado - para pagar este, aquele e ainda aquele
outro -, convém recordar que é o despesismo do Estado que distingue a
oligarquia russa. Há dez anos, como acaba de recordar The Economist de Londres, o orçamento russo precisaria do barril de
petróleo a 20 dólares para atingir o equilíbrio. Hoje, já precisa de 103
dólares por barril. Ao mesmo tempo, a iniciativa privada é obstruída por
constantes comandos arbitrários de uma burocracia central - que também controla
os tribunais.
É este modelo czarista-leninista
que se sente ameaçado pela simples existência da civilização euro- atlântica:
uma civilização fundada nos ideais de liberdade e responsabilidade da pessoa,
Estado pequeno e limitado pela lei, impostos baixos e justiça célere e
imparcial.
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