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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

De Moscovo a sochi, passando por Kiev - Opinião


JOAO CARLOS ESPADA 03/02/2014 - 00:08

A grande razão política que levou a Rússia a pressionar a Ucrânia é euro-atlântica, não apenas europeia.

No próximo fim-de-semana, terão início os Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, na Rússia.

Espera-se uma retumbante manifestação de força e habitual arrogância dos novos czares de Moscovo. Mas o espectáculo - que, antes de começar, já custou aos contribuintes quatro vezes mais do que as Olimpíadas de Londres, em 2012 - não deve ser tomado à letra. Por detrás da fachada imperial da Rússia, esconde-se uma oligárquica estrutura de corrupção, arbítrio e despesismo do Estado, à custa dos cidadãos comuns, que não são protegidos pela lei.

O chamado modelo russo, de que o sr. Putin gosta de se vangloriar, não estará realmente em exibição em Sochi. Aí estará apenas a fachada. A verdadeira natureza do modelo russo pode ser observada em Kiev, na Ucrânia, onde o sr. Putin tem exercido a sua diplomacia de ferro - impondo à Ucrânia o afastamento do Ocidente.

O resultado desse modelo está à vista. Desde 22 de Novembro que o regime oligárquico de Ianukovich, o homem de mão do sr. Putin na Ucrânia, enfrenta diariamente protestos populares. Estes foram desencadeados pelo anúncio naquela data de que estavam suspensas as negociações do acordo de cooperação com a União Europeia – acordo cuja assinatura estava anunciada para 28 de Novembro. Simultaneamente, Ianukovich anunciava um empréstimo russo à Ucrânia e a intenção de trocar a parceria com a UE por uma parceria com a Rússia.

Desde essa data, os protestos de rua não pararam, transformando-se em verdadeiras batalhas campais. Até que, na terça-feira, o Presidente Ianukovich demitiu o seu Governo e anulou a legislação repressiva com que tentara, semanas antes, asfixiar os protestos. Convidou ainda Arseny Iatseniuk, um líder da oposição, para primeiro-ministro o que este recusou. E os conflitos de rua continuam, em proporções alarmantes. John Kerry, o secretário de Estado norte-americano, declarou no sábado, em Munique, que o destino da democracia se jogava em Kiev e que este era um teste decisivo para a Europa.

Talvez o leitor destas linhas não leve a mal que eu recorde o que escrevi aqui, a 25 de Novembro - estas "Cartas do Atlântico" chamavam-se então ainda "Cartas de Varsóvia" -, sobre a grave decisão do Presidente ucraniano de romper as negociações com a União Europeia. Recordei nessa altura que, três dias antes, a 22 de Novembro, o embaixador da Polónia em Portugal, Bronsilaw Misztal, reunira em Lisboa altos-representantes da Geórgia, Moldávia e Ucrânia - incluindo o embaixador Valeriy Pyatnytskiy, chefe da comissão ucraniana nas negociações com a UE. Tinha sido nesse mesmo dia que o regime de Kiev anunciara a suspensão das negociações com a UE.

Observei então que o encontro da Parceria de Leste em Lisboa deveria ajudar-nos a superar o entediante paroquialismo de grande parte dos nossos debates caseiros sobre a União Europeia. É penoso discutir sobretudo se nos pagam, se não pagam, e se evidentemente nos deviam pagar. Há mais Europa para além do défice, para parafrasear, em sentido potencialmente diferente, o célebre comentário de um antigo Presidente da República.

A Europa não é, com efeito, primordialmente acerca de transferências financeiras entre países-membros, nem, já agora, sobre sonhos de moedas únicas. A Europa é uma comunidade de nações, cujos valores desafiam autocratas e fundamentalistas por esse mundo fora. Foi por isso que a Rússia pressionou a Ucrânia para impedir o acordo sobre a parceria de Leste. Não foi por causa do euro, nem das directivas de Bruxelas sobre o tamanho das bananas.

A grande razão política que levou a Rússia a pressionar a Ucrânia é aliás euro-atlântica, não apenas europeia. A União Europeia é percepcionada como ameaça pela Rússia porque a Europa é berço da civilização da liberdade euro-americana. Separada da América, a Europa seria um jogador menor no xadrez mundial, como muitas vezes aconteceu no passado, para dizer o mínimo.

Talvez entre nós devêssemos também recordar estes valores euro-atlânticos. Quando entre nós se continua a reclamar sempre mais despesa do Estado - para pagar este, aquele e ainda aquele outro -, convém recordar que é o despesismo do Estado que distingue a oligarquia russa. Há dez anos, como acaba de recordar The Economist de Londres, o orçamento russo precisaria do barril de petróleo a 20 dólares para atingir o equilíbrio. Hoje, já precisa de 103 dólares por barril. Ao mesmo tempo, a iniciativa privada é obstruída por constantes comandos arbitrários de uma burocracia central - que também controla os tribunais.

É este modelo czarista-leninista que se sente ameaçado pela simples existência da civilização euro- atlântica: uma civilização fundada nos ideais de liberdade e responsabilidade da pessoa, Estado pequeno e limitado pela lei, impostos baixos e justiça célere e imparcial.


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