REPORTAGEM
PAULO MOURA (em Kiev)
22/02/2014 - 22-34
Depois de dois anos e meia presa, a antiga
primeira-ministra apareeeu na Praça da Independência numa cadeira de rodas.
Primeiro comoveu. A seguir deu ordens à multidão: não podem deixar a praça até haver a certeza de que a Ucrânia "não volta atrás".
Horas depois de ter saído da prisão, Iulia Timochenko falou aos milhares de pessoas que a esperavam na
Praça da Independência de Kiev. “Os heróis nunca morrem”,
disse ela quase a chorar, e a multidão respondeu num cântico: “Os heróis nunca
morrem. Os heróis nunca morrem”.
Timochenko,
a maior rival política do
Presidente, agora demitido, estava presa há dois anos e meio, num processo com
mais do que prováveis motivações vindicativas. Ao dirigir-se aos manifestantes
da Maidan, no dia em que tudo aconteceu na Ucrânia, tentou incluir-se nas
malhas do movimento contestatário, assumindo-lhe a herança e a liderança.
“Lamentei tanto não estar aqui, quando vocês lutavam nas barricadas, sem poder
trabalhar para que tudo fosse feito de forma pacífica”, disse ela, na sua
cadeira de rodas, com as suas tranças louras. “Quando vi na
televisão um rapaz cair ferido e os outros a arriscarem a vida para o irem
ajudar, eu chorei e rezei”, contou ainda, antes de começar a dar ordens:
“Ninguém tem o direito de deixar esta praça enquanto não mudarmos o país.
Enquanto não tivermos a certeza de que há uma autoridade que não permitirá que
o país volte para trás, ninguém tem o direito de sair daqui.”
A multidão aplaudiu, mas não foi a apoteose. Para os
milhares de manifestantes armados de bastões, escudos e capacetes, era
demasiado para um só dia. Estavam esgotados, atordoados pelo
seu próprio poder, num dia em que de manhã esperavam um massacre e à tarde já
guardavam as portas do Parlamento.
Foi lá, no edifício à volta do qual costumavam
manifestar-se os apoiantes do regime, que a situação começou a virar. Ao fim da
tarde, o Parlamento demitiu o Presidente do país, Viktor Ianukovich, cumprindo
a exigência dos milhares de pessoas que se
manifestaram durante meses na Praça da Independência de Kiev.
A votação
decorreu quando os manifestantes já controlavam a cidade, de súbito esvaziada
de forças policiais e militares, e o Presidente já voara oportunamente para
Kharkiv, a segunda cidade do país e a mais próxima da Rússia, geográfica e
afectivamente.
De lá,
Ianukovitch anunciou, numa entrevista televisiva, que não aceitava a decisão do
Parlamento, que classificou como "ilegal" e "golpista",
conduzida por forças nazis. Deu a entender que se preparava para regressar a
Kiev e reassumir as suas funções como se nada fosse, mas ninguém acreditou. O
palácio presidencial encontrava-se desde o
início da tarde abandonado, sem qualquer força de segurança que o guardasse, e
pelo interior da residência de luxo do chefe de Estado já grupos de
manifestantes recolhiam lembranças e se espantavam com a piscina interior, as
salas de massagens, etc.
Ou seja, por muito que o desejasse, Ianukovitch não
teria para onde voltar.
Quem voltou
foi Iulia Timoshenko, líder do Pátria, o maior partido da oposição, e líder da
chamada Revolução Laranja, que em 2004 conseguiu anular as eleições que davam a
vitória a Ianukovitch. Mas não é claro o papel que poderá vir a assumir na nova
estrutura do poder. Timoshenko, que foi primeira-ministra durante cerca de três
anos, é por muitos conotada com a oligarquia corrupta e muito daquilo que hoje
fez cair o regime.
Aliás, nada
é certo neste momento na Ucrânia. O poder está na rua, e não se sabe quem
domina a rua. Em algumas horas, os deputados no Parlamento afadigaram-se a
fazer História. Anularam a Constituição, repondo o texto de 2004, convocaram
eleições presidenciais para 25 de Maio, nomearam o número dois do partido
Pátria, Oleksander Tourtchinov, para presidente da assembleia, com carácter
provisório, para que possam ser aprovadas novas leis, anunciaram a constituição
de novo Governo, aprovaram uma moção condenando qualquer tentativa de dividir o
país.
Tudo isto
enquanto cá fora tudo mudava também. Pela manhã, na Maidan, a Praça da Independência, os manifestantes
organizavam-se em brigadas de combate, juntando todos os grupos armados numa
Unidade de Auto-defesa de Maidan, reforçavam as barricadas, acendiam fogueiras,
dispunham colunas de pneus, traziam camiões e blindados roubados à polícia,
para ajudar a bloquear os acessos. Filas de pessoas passavam de mão em mão as
pedras que acumulavam em montes dispostos estrategicamente, para serem facilmente
alcançadas e lançadas contra os polícias.
Vários
carros com os corpos de pessoas mortas nos confrontos dos últimos dias entraram
na Praça. Os corpos foram retirados dos carros, mostrados à multidão, que
gritou “Heróis! Heróis!”. Os mortos são levados a seguir para as suas regiões
de origem.
A mãe de um
dos assassinados disse: “O meu filho não era um extremista nem terrorista. Só
estava a manifestar-se, como todas as outras pessoas.”
Após um dia
de paz, que se seguiu a outro de violenta repressão, com mais de 80 mortos, esperava-se
um novo ataque da polícia ou dos militares.
Ianukovith anunciara um acordo com a oposição, que ninguém levou a sério. Era
decerto uma manobra de diversão, para ganhar tempo. Ninguém mata 100 pessoas em
três dias, com a ajuda de snipers altamente
especializados, para a seguir desistir de tudo, pensava-se na Maidan.
Nada
aconteceu. E quando os primeiros camiões carregados de manifestantes se
aventuraram pelas ruas da cidade, encontraram-nas vazias. Não havia polícias,
não havia militares. A cidade era deles agora.
“Vamos ao
Parlamento, e lançamos cocktails molotov sobre todos os deputados do
(Partido das) Regiões”, alvitrava um manifestante ensanduichado entre centenas
na caixa aberta de um camião. “Não”, respondia outro. “Vamos esperar que eles
resolvam as questões lá dentro, de forma pacífica”.
No Parque
Marinski, em frente ao Parlamento, começaram a concentrar-se centenas de manifestantes. Ali, onde, desde
que os protestos começaram, no fim de Novembro, se reuniam frequentemente os apoiantes de Ianukovitch, restavam agora apenas restos de estrados, de bandeiras,
de merendas. Alguns manifestantes removiam estes vestígios, preparando o local
para um novo tipo de festa, enquanto, porém, um grupo de médicos já montava um
hospital de tendas, para ajudar os feridos de um eventual confronto. “Eles
disparam a matar”, disse Andrei, 27 anos, voluntário e médico dentista.
“Dispararam sobre duas pessoas da Cruz Vermelha, que estavam bem
identificadas.”
Ali ao lado, alguém já erguera uma
espécie de altar, com um crucifixo e velas acesas, onde várias mulheres se
ajoelham para rezar. Como as portas do Parlamento se encontrassem de súbito
evacuadas de polícia, alguns jovens de capacetes, bastões e escudos assumiram
os seus lugares, assegurando, de cócoras, que os deputados da nação cumpriam
adequadamente a sua função.
A notícia da
libertação da cidade correu depressa, e a meio da tarde já milhares de pessoas
se concentravam junto do Parlamento. Não já os activistas do costume, com os
seus equipamentos de combate, mas grupos de estudantes, famílias com crianças.
Para Anna,
21 anos, estudante de Biologia (a especializar-se em morcegos), a mobilização
generalizada em apoio a Maidan representa uma nova fase na consciência popular
da Ucrânia. “Neste momento a situação é pacífica, e espero que continue assim.
Não vimos aqui para lutar, mas para nos manifestarmos. Com a nossa presença
queremos mostrar que nos importamos, que nos preocupamos. Que, a partir de
agora, o povo está a controlar os acontecimentos.”
Para ela,
isso é o essencial da revolução em curso: inaugurar uma era em que o povo
fiscaliza os actos do poder. “Há três categorias de pessoas: os que apoiam
Maidan, os que condenam Maidan e os que não querem saber e ficam em casa. Estes
últimos não contam para nada, é como se não existissem. Os segundos foram derrotados.
O primeiro grupo é que vai conduzir os acontecimentos."
Para Anna,
as lógicas eleitorais não têm muito significado no momento. Manda quem se
preocupou, quem sofreu, quem agiu. “O Presidente é um criminoso. Fez da Ucrânia
um país de corrupção, de terror. Os mais pobres não têm qualquer possibilidade
de ganhar um salário decente, e os homens de negócios honestos, que trabalharam
e se esforçaram, são vítimas de extorsão permanente, por parte de funcionários
e amigos do regime. Vivemos num regime feudal. Mas as pessoas têm uma
mentalidade aberta, não querem mais viver no feudalismo.”
Anna é
oriunda de Kharkiv, a cidade considerada o feudo de Ianukovitch. Mas não
acredita que a população da zona, apesar das suas afinidades com a Rússia,
esteja interessada numa secessão da Ucrânia. Há notícias de que vários líderes
locais já fugiram para a Rússia, mas isso é
porque, diz Anna, “foram eleitos de forma fraudulenta, não querem ficar isolados, sabem que o povo os iria demitir. O povo nessas regiões não
quer a separação”.
Anna tem
consciência do perigo que representam os grupos de extrema-direita que estão a
conduzir a revolução. “Não sei o que pretendem no futuro, quais são os seus interesses.
Mas neste momento estão muito motivados, têm capacidade de agir.”
O amigo de
Anna, Ivan, 27 anos, que trabalha como técnico na fábrica de aviões Antonov,
não vê motivos para preocupação. “Eles não são violentos, não querem morte e
sangue, como se diz na Europa. São apenas nacionalistas, e isso é bom”,
explica, referindo-se a grupos como o Public Sector ou a Organização Nacionalista Ucraniana, em
relação a quem não esconde a simpatia.
Anna admite
que também simpatiza com esses grupos. “Nós agora precisamos deles. Porque o
patriotismo é uma ideia que toca o coração das pessoas. Já ninguém se comove
com ideais humanistas ou igualitaristas. Isso é utópico, não funciona neste
país”. Ivan acrescenta que, nas revoluções, é normal que os grupos mais extremistas
assumam a vanguarda”. E nos Estados da Europa de Leste, como em todos que
viveram sob um regime socialista, as ideias de direita, e não de esquerda, são
em geral mais conotadas com rebeldia, progresso e independência, mais
simpáticas aos jovens. Nesse sentido, seria normal que fosse a extrema-direita
a chefiar a revolução. “No futuro, teremos de os pôr no seu lugar. O povo terá
de criar mecanismos para os controlar, como terá de fazer com todos os
políticos.”
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