ISRAEL
Maria João Guimarães
Telavive 14 de Maio de 2018, 7:00
Nascida na Roménia há 88 anos, Tehila Ofer foi combatente do Palmach.
Da sua casa em Telavive conta como foi e o que acha do Estado de Israel no seu 70.º aniversário.
Há 70 anos, Tehila Ofer lembra-se que ouviu que David ben Gurion tinha proclamado a independência do Estado de Israel.
“Não liguei nenhuma”, conta agora.
Na altura, não lhe passava pela cabeça que ia mesmo haver um Estado, embora fosse por isso que estava onde estava: na fronteira do Líbano, à espera de um ataque dos libaneses. “Tínhamos tão poucas armas, não tínhamos força aérea, não tínhamos marinha, como podíamos ter um Estado?”, pergunta agora Tehila Ofer, então num batalhão do Palmach, a força de elite da Hanagah (embrião do Exército).
Há 70 anos, o que a preocupava era que se esperava um ataque de libaneses e sírios – e enquanto os homens estavam a lutar, as mulheres do batalhão iam ao final da tarde carregadas com armas e mantimentos para os homens que estavam na frente.
Tehila Ofer chegou ali vinda da Roménia.
Interessou-se muito cedo por sionismo – quando tinha dez anos, lembra o “impacto profundo” de ter de usar a estrela de David para se identificar como judia na Roménia, o seu país de origem.
Na sua aldeia participou num movimento jovem sionista banido, “marxista mas sionista”, basicamente, “um grupo de miúdos de 12 anos com um de 14 como líder”.
Aos seus 14 já era ela a líder, e aos 16 anos tomou a decisão de ir para a “Eretz Israel/Palestina” (diz sempre as duas expressões juntas).
“Os meus pais não tentaram impedir-me.”
Viajou até à Jugoslávia e embarcou num dos navios que levava ilegalmente judeus da Europa para a Palestina, então sob controlo britânico (as autoridades britânicas limitaram muito o número de imigrantes legais).
“Eram navios com milhares de pessoas a bordo, na altura este era o maior, depois foi o Exodus, que se tornou o mais famoso.
Íamos na parte da carga e à noite saíamos para apanhar um pouco de ar fresco”, lembra.
Foi então que conheceu membros do Palmach, que deram instruções aos ocupantes do navio sobre o que fazer, caso fossem interceptados pelos britânicos (e foram): atirar tudo o que tivessem à mão para atrasar o processo o mais possível (e foi o que fizeram).
“Era meio da noite, eles chegaram com holofotes, queriam que fossemos para Chipre, recusámos.
Quando chegámos a Haifa, atirámos tudo o que tínhamos, comida, conservas, carvão, óleo.
Mas venceram-nos com gás, e lá nos tiraram um a um, e levaram para Chipre”.
Em Chipre os campos para judeus deportados eram especialmente duros para os sobreviventes do Holocausto.
"Era estar outra vez num campo com arame farpado”, lembra Ofer.
Ela ainda se manteve por lá uns tempos antes de uma segunda tentativa.
E, em 1947, Tehila Ofer chegou à Palestina e foi para um kibbutz para estudar – hebraico, a língua reavivada por judeus em Israel há algumas décadas, e trabalhar.
“Seis horas de estudo, seis horas de trabalho.”
Ela queria trabalhar com tractores na agricultura.
“Porquê?
Porque a primeira vez que vi mulheres num tanque foi quando o Exército Vermelho entrou na Roménia [contra ao nazis] em 1944 e isto ficou a ser para mim um desafio para o futuro.”
Na altura, no kibbutz, “claro que nunca imaginei que haveria um dia tanques no Estado de Israel”, diz a rir.
“Por isso um tractor era o mais aproximado.”
Dessa altura diz simplesmente: “Foi aí que nos tornámos israelitas.
Começámos a falar hebraico, mesmo que o nosso hebraico fosse muito mau.”
E logo de seguida, passaram de ser “um grupo de imigração para ser um grupo do Palmach, e começámos a treinar com armas”.
Dizer armas é quase exagerado, já que “era uma arma para umas 30 pessoas.”
O estudo ficou adiado e no kibbutz passou a trabalhar-se meio mês e treinar outro meio mês.
“Era o único exército do mundo que assegurava o pagamento da sua existência.”
Foi aí que começou a Guerra da Independência, sublinha, “não com a declaração de independência, mas com a declaração da partição [da ONU] a 29 de Novembro” de 1947.
O que aconteceu foi que era preciso lutar e foi isso que ela fez.
Explica que as mulheres tinham, muito raramente, posições de combate.
O que faziam era sobretudo tarefas de apoio nas unidades e os homens é que combatiam. “Claro que se houvesse um ataque pegava numa arma e lutava.
Mas não eram as mulheres que iam para o campo de batalha ou conquistar posições”, clarifica.
E no meio disto, um dia, na Galileia: “O comandante chamou-nos, era uma sexta-feira, seis da tarde.
Disse duas coisas: que Ben Gurion tinha declarado a independência três horas antes, e que era preciso levar coisas aos rapazes que estavam na frente.
A última parte é que me interessou e voluntariei-me para ir”.
Também porque “eram pessoas muito próximas, partilhámos tendas no kibbutz, muitos eram namorados”.
O que se seguiu foi duro.
“A noite em que levei os mantimentos foi a última vez que vi três amigos.
Depois chamaram-nos para reconhecer os corpos.
Éramos um grupo de 15.
Após este combate, um estava doente, três estavam mortos e dois feridos.
Perguntámo-nos quantos combates aguentaríamos até acabar o grupo…”
As baixas eram muitas e vieram muitos novos imigrantes da Europa, mas não tinham tido interesse prévio pelo sionismo, não sabiam distinguir onde era Telavive ou Hebron ou Eilat, e não falavam uma palavra de hebraico.
Tehila ficou com a missão de lhes ensinar hebraico, ainda que ela também não falasse assim tão bem.
“Era um hebraico de vida ou de morte.
Era para aprenderem palavras como ‘deitem-se’, ‘fujam’, saber dizer ‘estou ferido’, saber ler ‘minas’”.
As baixas iam continuando (seis mil pessoas do lado do recém-criado Estado morreram). “De vez em quando um dos meus alunos não aparecia no dia seguinte.
Perguntava por ele, tinha caído em combate.”
Essa foi “a época de grande perigo para Israel”.
Mas “a guerra de 1948 ainda não acabou”, diz.
Porque “a cada dez anos há uma guerra e entre as guerras não há paz”.
E, explica, “em cada família há pessoas no exército.
Eu estive no exército, o meu marido esteve anos e anos; o meu filho também, a minha neta na força aérea, o neto no exército… vivemos nisso.”
“Moshe Dayan, o grande herói da guerra de 1967, disse que temos de deixar passar pelo menos 100 anos.
Esperava que fosse mais cedo…”
Tehila tem agora 88 anos e fala muito quieta, pausadamente.
Tem um sorriso calmo e uns pequenos ramos de veias azuis muito definidas na testa. Estamos na sua casa numa zona chique de Telavive; da janela da sua sala entra uma luz quente e vê-se o verde de um parque em frente.
O marido, Zeev, que conheceu no final da guerra e estava na mesma unidade do Palmach, está no escritório.
As paredes estão cheias de livros sobre personagens da história militar de Israel que escreveram ambos e de distinções do Estado hebraico aos dois.
Tehila foi ainda professora, jornalista, escritora.
O tempo no Palmach ocupa uma pequena parte no seu currículo.
Mas é essencial no definir da sua identidade.
“Falo disso com algumas palavras”, diz, e começa a tentar procurá-las, a rever a formulação: “Acho que não estamos suficientemente orgulhosos na participação da fundação do Estado.
Cada povo tem a sua história, tem os seus melhores momentos e os seus piores momentos, mas a oportunidade de ser é só uma.
E nós aproveitámo-la”, defende.
Israel comemorou a independência seguindo o calendário hebraico, a 19 de Abril, a data assinalada nesta segunda-feira é a que segue o aniversário segundo o calendário gregoriano.
Na data dos 70 anos, perguntaram-lhe se as suas expectativas se cumpriram.
“Não, não completamente”, responde.
“Mas o que digo é que quando se vive na nossa casa, e uma janela se partiu, fazemos os possíveis por a arranjar.
Se não conseguimos, temos de aprender a viver com ela como está.”
A janela partida “é ainda não termos paz”.
“Não fizemos o suficiente, adiámos as negociações.
O outro lado também não fez o suficiente – mas temos de assumir que nós também não”.
O que era preciso “era termos dois Estados [um israelita e um palestiniano], com segurança, sim, e os cidadãos árabes israelitas que quisessem ficar também”.
Também há outras falhas: “Como sou de esquerda não concordo com a política deste Governo, acho que temos um problema muito grande com os religiosos, é talvez o nosso maior problema interno.
E ainda não chegámos a uma igualdade real entre homens e mulheres – apesar de estar muito melhor”.
Ou seja, “há coisas em que superou as minhas expectativas, e coisas em que não.”
Mas “esta é a nossa casa, e uma janela partida não é suficiente para decidirmos mudar”, diz, à laia de conclusão.
E depois de parar um minuto sublinha: “E quanto às expectativas, na altura não tínhamos expectativas!”
maria.joao.guimaraes@público.p
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