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segunda-feira, 21 de maio de 2018

As incertezas e os méritos deixados por Afonso Dhlakama

MOÇAMBIQUE
Bárbara Reis
3 de Maio de 2018, 18:23 

O desaparecimento do Presidente da Renamo abre um processo de luta pela sucessão. 
Dhlakama preparou alguém? 
Quem vai avançar? 
O partido quer um civil ou um militar?

O político e ex-guerrilheiro moçambicano Afonso Dhlakama, líder da Renamo há quase 40 anos, morreu esta quinta-feira à tarde na sequência de uma crise diabética, confirmaram ao PÚBLICO duas fontes que acompanham de perto o processo de paz e a política de Moçambique. 
Dhlakama terá morrido a bordo de um helicóptero que o transportava para tratamento médico urgente.

O líder do maior partido da oposição de Moçambique tinha 65 anos e vivia na região da Gorongosa, no centro do país, para onde se mudou após o regresso da guerra civil, em 2014. 
Desde o último cessar-fogo entre a Renamo e a Frelimo, no poder, em Março de 2017, que se esperava que Dhlakama regressasse a Maputo e liderasse a oposição a partir da capital.

"Há 40 anos que a Renamo é Dhlakama, Dhlakama, Dhlakama, Dhlakama. 
Vai ser um processo interno difícil e complicado", disse ao PÚBLICO um observador da política moçambicana que pediu para não ser identificado. 
Não é claro quem vai ser o seu sucessor no partido.

"Que se saiba, Dhlakama não tinha um sucessor indicado e não há um homem ou mulher forte evidentes para o substituir", diz Fernando Jorge Cardoso, especialista em assuntos africanos e professor de Economia no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa.


Novo líder: civil ou militar?

Ivone Soares, sobrinha de Dhlakama e líder da bancada parlamentar da Renamo na Assembleia da República, em Maputo, tem apoiantes. 
Mas o que alguns vêem como vantagens, outros vêem como desvantagens.
"É uma mulher jovem, urbana, cosmopolita e com um discurso que faz sentido, e a Renamo é um partido que precisa de se rejuvenescer e renovar" mas onde domina ainda a ideia dos "companheiros de armas" ao lado de quem se lutou na guerra civil, diz Fernando Jorge Cardoso, que é também investigador do Instituto Marquês de Valle Flôr. 
Outro possível candidato à sucessão é Manuel Bissopo, secretário-geral do partido.

"Moçambique não é uma monarquia e a Renamo tem estatutos muitos claros", alerta numa conversa por telefone um político moçambicano. 
"Depois do luto, haverá um congresso e as bases é que vão eleger o novo líder."

São muitas as questões em aberto. 
Será que Dhlakama, estando doente há muito tempo, preparou discretamente um sucessor durante os últimos três anos na Gorongosa? 
"Será que preparou um general no mato?", pergunta o mesmo político moçambicano. 
É improvável que, pelo menos junto do seu círculo mais íntimo e de confiança extrema, o Presidente da Renamo não tenha discutido o assunto.

Independentemente de o futuro líder da Renamo vir a ser civil ou militar, homem ou mulher, é seguro dizer que "começa hoje uma nova era", diz outro observador da política africana.

Este será um processo praticamente inédito na história da Renamo, uma vez que, para além de Dhlakama, o partido só teve um outro líder: André Matsangaíssa foi comandante da Renamo entre 1975 e 1979. 
Após a sua morte, durante a guerra civil, Matsangaíssa foi sucedido por Dhlakama, então com 26 anos.

Os "dois méritos" de Dhlakama

Fernando Jorge Cardoso, que nos anos 1970, a seguir à independência de Moçambique, esteve ao lado da Frelimo e com a qual trabalhou, identifica dois méritos em Dhlakama, que correspondem às duas vidas da Renamo: "Foi capaz de transformar um movimento militar — que começou por ser formado pelos serviços secretos da Rodésia do Sul com um perfil de força de contenção e controlo de fronteiras — num movimento nacional de resistência e luta contra a Frelimo. 
No início, a Renamo juntava os 'flechas', os comandos e os homens controlados por Jorge Jardim [o famoso operacional que, durante a ditadura portuguesa, despachava directamente com António de Oliveira Salazar], mais os moçambicanos negros que tinham lutado com as Forças Armadas do Estado Novo. 
Os serviços secretos rodesianos acolheram-nos e treinaram-nos. 
A Renamo era comandada a partir da Rodésia do Sul e, mais tarde, a partir de Pretória. Dhlakama faz essa transformação. 
Conseguiu apoio na população para lutar ao seu lado e, mais tarde, logo nas primeiras eleições, em 1994, conseguiu um forte apoio popular, uma margem muito maior do que a Frelimo esperava."

"O segundo mérito", continua o professor Fernando Jorge Cardoso, "foi conseguir chegar a um acordo de paz resolvendo os problemas que tinham ficado por resolver" no acordo de paz de Roma, ou seja, incluindo a polícia e os outros órgãos de segurança no processo de integração dos ex-guerrilheiros da Renamo na sociedade moçambicana. 
O Acordo Geral de Paz, assinado em 1992 entre o então Presidente Joaquim Chissano e Afonso Dhlakama, abrangeu apenas o Exército.

Neste primeiro dia de Moçambique sem Dhlakama, o professor tem uma certeza e duas interrogações. 
A primeira é que, "felizmente, a estrada foi aberta e a preparação para o machado de guerra ser enterrado foi feita". 
Nesse aspecto, está optimista. 
"Ninguém está interessado em voltar à guerra, nem num lado, nem no outro."

As dúvidas têm a ver com o impacto que o processo de sucessão poderá a vir a ter nas próximas eleições. 
Moçambique vai ter eleições autárquicas em Outubro e legislativas e presidenciais em Outubro de 2019. 
A Renamo contestou as últimas eleições legislativas, em 2014 (57% para a Frelimo, 36,6% para a Renamo e 6,3% para o MDM) e recusou participar nas últimas municipais. 
Estava, de certo modo, afastada do processo político. 
"Agora havia acordo. 
A Renamo tinha decidido participar nas eleições. 
Nesse sentido, a morte de Dhlakama poderá perturbar o processo" —  mesmo que seja apenas ao nível da logística e do tempo, pois os órgãos do partido vão ter de reunir e organizar um congresso para a sua sucessão, a atenção do aparelho partidário vai ser redireccionada. 
"Nesse sentido, vai haver um retrocesso", diz o professor.

A outra dúvida refere-se à Frelimo: será que o partido no poder vai tentar fazer algum aproveitamento político da situação, encarando a Renamo como um partido enfraquecido? O Presidente Filipe Nyusi, acredita o especialista, "dará o máximo para tentar que a Renamo entre nas eleições: ele sabe que isso é do interesse da própria Frelimo".

Depois de dois anos (2014-16) de um regresso à guerra civil ao qual chamaram “tensão político-militar”, Nyusi e Dhlakama acordaram um cessar-fogo, encontraram-se pessoalmente e começaram a falar ao telefone. 
O escândalo da "dívida oculta" (desapareceram 2,2 mil milhões de dólares dos cofres do Estado) deixou o país mergulhado numa profunda crise, com falta de cash e de credibilidade internacional. 
O FMI e a comunidade de doadores suspenderam contribuições financeiras previstas — incluindo Portugal, que mantém o apoio a projectos sociais, mas congelou a sua participação regular para o Orçamento do Estado moçambicano. 
Para adensar a crise, Maputo mantém um silêncio constrangedor sobre o desaparecimento de Américo Sebastião, um empresário português desaparecido na Beira em 2016, e as relações bilaterais entre Lisboa e Maputo estão muito tensas, sobretudo nos bastidores.

Não é por acaso que, na nota oficial a lamentar a morte de Dhlakama, o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, elogia o "empenhamento" do líder da Renamo no processo que levou ao acordo de paz de 1992 e às tréguas de 2016-17, mas "faz votos para que este desígnio seja plenamente realizado, em prol da estabilidade e desenvolvimento de Moçambique".

breis@público.pt

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