OPINIÃO
Maria Paula Menezes
11 de Maio de 2018, 6:30
Restabelecer o papel das mulheres na história de Moçambique, democratizando-a, é um dos grandes desafios que ainda se coloca à libertação da opressão patriarcal, um dos principais objetivos da luta política atual.
A construção democrática de qualquer estado-nação é um processo complexo, onde vários projetos políticos se confrontam.
Independente desde 1975, a história recente de Moçambique é marcada por múltiplos episódios de violência: a guerra de libertação nacional/colonial, o conflito com a Rodésia e com a África do Sul do apartheid. Mas foi a guerra civil que mais marcou (e marca) o tecido social moçambicano.
Iniciada pouco tempo após a independência, as razões deste conflito continuam por apaziguar.
E apesar de um acordo de paz ter sido firmado em 1992, este acordo não trouxe a tão desejada paz, apenas tréguas e negociações que se arrastam até hoje.
A guerra maltrata corpos e sentimentos; a guerra destrói as sociedades, física, emocionalmente e mentalmente.
Os conflitos violentos que têm abalado o país têm tido efeitos devastadores no tecido social, na economia e nas propostas de democratização de Moçambique.
De uma história assumida de luta contra o colonialismo português, o atual processo de construção nacional, num contexto de grande diversidade étnico-cultural, tem conhecido (re)visões históricas conflituantes, potencialmente disruptivas do projeto político nacional.
A história busca dar sentido às ações humanas.
Mas qualquer narrativa histórica gera representações ambíguas, produzindo violência histórica.
No caso moçambicano, embora as diferenças políticas e económicas subjacentes aos projetos das forças beligerantes estivessem longe de ser intransponíveis, como os recentes avanços negociais sugerem, a animosidade e amargura que permeiam a leitura deste conflito pelos cidadãos ilustra a dificuldade de se alcançar uma solução política que garanta efetivamente a chegada da paz.
Num outro patamar, uma análise mais minuciosa destas negociações deixa entrever, nas narrativas dominantes o controlo masculino na busca de uma solução para o conflito.
Um rápido inventário das caracterizações dos líderes políticos envolvidos nas negociações apresenta-nos o ‘pai da independência’, o ‘pai da paz’, o ‘pai da democracia’.
A ausência do feminino nos discursos políticos exige de nós uma reflexão sobre a participação efetiva das mulheres na busca da paz.
Os muitos estudos feitos sobre o passado recente mostram como a violência colonial e patriarcal andam de mãos dadas; em Moçambique, na guerra de libertação, as mulheres combatentes foram construídas como as que ‘alimentam, produzem e mobilizam’ os combatentes.
Essa construção de género da moçambicana em função da maternidade reforçou a visão patriarcal da nação.
E assim as vozes das mulheres sobre a sua experiência de opressão, violência e resistência permanecem enterradas sob camadas de silenciamento.
Uma leitura atenta da guerra civil que marcou Moçambique releva o peso brutal que esta guerra representou para as mulheres: garantir o sustento da família, suturar laços familiares estraçalhados, ser o pilar de segurança da família.
Em suma, garantir a vida, mediar a paz nos gestos e ações quotidianas.
Mas esta presença gritante parece desvanecer-se quando chegam as negociações ‘oficiais’ para a paz.
Esta realidade está ligada aos debates sobre a objetividade histórica no Moçambique contemporâneo.
As várias alianças entre perspetivas masculinas e libertadoras sobre os sentidos das guerras têm gerado narrativa políticas legitimadoras das lideranças política em conflito, tornando-as categóricas.
Esta estratégia está intimamente associada à glorificação, principalmente dos guerrilheiros homens, e ao silenciamento da presença de milhares de mulheres que participaram ativamente destas lutas.
Num contexto em que os projetos políticos são moldados, também, por opções políticas sexistas e geracionais (especialmente as gerações dos ‘libertadores da pátria’ e dos ‘libertadores da democracia’) as propostas de uma paz partilhada por todas e todos não se afiguram fáceis.
Mas as histórias silenciadas, protegidas por memórias subalternas continuam presentes, lembrando que a narrativa sobre a transição política não foi linear, e não é um património monolítico, protagonizado por uma só voz política.
A história da participação política de mulheres nas lutas nacionalistas no contexto moçambicano é extensa.
Como também é extensa a lista das personagens que se procurou remover da história, sem grande sucesso.
A história de Moçambique integra múltiplas narrativas contraditórias sobre processos políticos e identitários.
As narrativas de luta das mulheres expõem raptos, violações, ultrajes à dignidade humana, abusos dos direitos humanos cometidos por forças militares e de segurança.
Mas é também uma história de negociações, redes de solidariedade e de múltiplos episódios de resistência.
Estas narrativas revelam uma variedade de tensões e antagonismos que permearam (e ainda permeiam) a sociedade moçambicana.
Descartar estas memórias é uma forma de manter silenciamentos.
É, sobretudo, insistir numa visão abissal monocórdica e sexista sobre os factos e acontecimentos, sobre experiências de resistências, sobre múltiplas racionalidades políticas que compõem o mapa das memórias do que é Moçambique.
A ausência de uma presença ativa política das mulheres na busca de uma solução digna que promova a liberdade e a dignidade evidencia a herança de um conflito mais amplo que ainda precisa de ser tratado em toda a sua complexidade.
Esta realidade ajuda a explicar porque juntas, mulheres jovens e não tão jovens insistem que a luta continua, um sinal claro de que a libertação e a dignidade não foram ainda plenamente alcançadas pelas mulheres de Moçambique.
Investigadora coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
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