Texto Luciana Leiderfarb enviada a Israel
12 de Maio de 2018
O PRINCÍPIO DA INCERTEZA
Ao meio-dia de 14 de maio de 1948, Israel declarava a sua independência. Fazia-o no meio de uma guerra já iniciada pelos países árabes à sua volta, que rejeitaram o plano de partição proposto pela ONU. O país passaria por várias guerras e várias vitórias, mas isso não o tornou um completo vencedor. 70 anos depois daquele dia inaugural, é um puzzle complexo ao qual ainda faltam peças
Texto Lucxiana Leiderefarb enviada a Israel
Festa multidão nas ruas de Tel Aviv, a 20 de Maio sw 1948, a celebrar a proclamação do Estado de Israel
Um israelita nunca é só um israelita.
É a mulher idosa que tenta sem sucesso comprar bilhete para o elétrico numa máquina.
E é também a jovem que se oferece para a ajudar.
Começam a falar hebraico, mas logo transitam para o russo, a língua materna de ambas. Podia ser qualquer outra — polaco, alemão, árabe, castelhano, francês, italiano, inglês.
O importante é que num segundo, rodeadas pela multidão que aguarda pelo transporte, numa manhã abrasadora a anunciar um dia de calor levantino, e no meio do denso formigueiro humano que é Jerusalém, regressaram a um lugar que só elas conhecem.
Não é um país, nem sequer uma língua.
Não é nada de decifrável e, no entanto, é certo e real como o facto de as duas estarem ali a falar russo perante uma máquina que se recusa a imprimir um bilhete.
Um israelita nunca é só um israelita.
Do mesmo modo que Israel não é, nunca foi, apenas Israel.
Pisar chão israelita é ser de imediato capturado por esta diversidade.
É perceber que a mesma pergunta terá pelo menos uma dezena de respostas diferentes. Que um puzzle perpetuamente incompleto nos obriga a perguntar pelas peças que faltam, a imaginar como tudo seria se elas lá estivessem.
E a corroborar que uma tal ausência faz parte da definição do país, 70 anos após a criação do Estado.
Não há conversa com um israelita, seja de que origem ou de que cor política for, que não conduza ao único problema que Israel ainda não pôde resolver — o dos territórios ocupados.
Porque esta questão está ligada por um cordão umbilical ao futuro do país.
“Israel é doloroso”, escreveu há dias David Grossman no jornal “Haaretz”, um dos maiores do país.
“Israel é uma ilusão”, aventura Ofer, o taxista.
As palavras de ambos encontram-se como se se conhecessem.
Ofer também usa a palavra “milagre”, que ouviremos da boca de A. B. Yehoshua, outro grande escritor do país.
Israel é um milagre, um ato de sobrevivência, uma impossibilidade.
Uma vitória, uma tragédia.
Uma vitória que é uma tragédia.
Isso tudo: uma fortaleza inabalável, uma casa em construção, uma casa perdida, segundo a perspetiva e a experiência que se tenha do país.
Avraham Milgram não pode senão encarar este contraste de frente.
Como historiador no Instituto Internacional de Estudos sobre o Holocausto do Yad Vashem, e como cidadão israelita desde 1973, sabe que uma verdade pode esconder outra, conhece as camadas de história em que assentam as narrativas sobre Israel.
Sente a necessidade de esclarecer que o sionismo dos seus 20 anos, altura em que emigrou, não se assemelha ao de hoje.
“O sionismo é um movimento político judaico moderno, criado no século XIX com o propósito de normalizar a existência dos judeus, que era anómala devido ao antissemitismo europeu — racial, eugénico, económico e religioso.
Depois, no tempo dos nacionalismos, os judeus foram violentamente perseguidos e ficaram num limbo identitário.
O sionismo nasce dessa angústia: os judeus queriam o mesmo que os outros e, nesse sentido, ter um território associado à sua nação.
Sentiam que só se fossem maioria o seu problema seria resolvido.”
Quando chegou a Israel vindo do Brasil, acompanhando um movimento juvenil socialista (ele sublinha o termo socialista), Avraham viveu um ano e meio num kibbutz antes de ingressar na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Assistiu à forma como populações de origens distintas moldavam à sua maneira a nova identidade israelita: os judeus árabes do Magrebe, da Líbia, do Iraque; os sobreviventes do Holocausto; a vaga de judeus polacos em 1956 e 1968, a de egípcios na crise do Sinai, a de iranianos aquando da Revolução Islâmica, a do milhão de judeus oriundos dos países soviéticos em inícios dos anos 90, a de mais de 40 mil judeus etíopes.
Porém, assistiu também ao reverso, e Israel está cheio de reversos: às consequências da Guerra dos Seis Dias, em que a vitória “se transformou numa grande tragédia”.
“Tal como a de 1948, essa vitória era uma inevitabilidade para a sobrevivência de Israel, não havia outra saída e, no entanto, veio a ser a grande tragédia desta história”, diz Milgram.
Embora Israel tenha feito a paz com o Egito e com a Jordânia, os territórios ocupados palestinianos — Cisjordânia e Gaza, ainda que Israel tenha retirado desta última em 2005, mantendo a hostilidade —, conservados intactos durante anos para serem devolvidos, começaram a ser colonizados por Israel nos anos 70.
Sem parar, até hoje.
E hoje, “estamos no auge do irredentismo da extrema-direita; estamos nos últimos instantes antes de a situação se tornar irreversível e sem solução”.
Vitória o General AVraham "Bren" Adan a erguer a bandeira de Israel durante a guerra de 1948, em Eilat, a Sul do país
À porta do Yad Vashem, situado na zona de Mount Herzl e inaugurado em 1953, dois homens de idade abraçam-se a chorar.
Muitos são os judeus que ali se dirigem para descobrir o que aconteceu aos seus familiares durante a II Guerra Mundial.
Estes contrastam com a paisagem humana maioritariamente jovem do país, que não sendo alheia ao dramático legado europeu, possui outras preocupações.
Tem aquilo a que chamamos uma vida normal, e está em toda a parte: Elena Ferrante no top de vendas de livros, os cafés e os restaurantes cheios, as crianças com o tablet, muitas, muitas famílias com carrinhos de bebé — em Israel, cada mulher tem uma média de três filhos e a taxa de fertilidade é a mais alta da OCDE —, as bancas a venderem sumos de romã e de laranja, o judeu religioso absorto na leitura de um livro sagrado, o soldado novíssimo com a arma numa das mãos e um gelado a derreter na outra, o empregado árabe do hotel que se desdobra a explicar a razão por que, no Shabbat, o dia sagrado judeu — em que o descanso é levado pelos mais religiosos ao extremo de não acender uma luz —, a máquina de café está vedada a todos os restantes hóspedes.
“Este é um hotel judeu”, desculpa-se.
O problema das contradições gritantes é que não se podem ignorar.
A não ser que se vejam todos os dias.
“Se leio os jornais, eles dão-me uma determinada imagem do país.
Se vou para a rua, a realidade é outra”, contrapõe Dorit W.
É sexta-feira à noite e, não sendo religiosa, ela e a família saíram de casa para cear com amigos.
Não foi fácil encontrar um sítio aberto — abrir os estabelecimentos em pleno Shabbat significa pagar impostos elevados e desistir da denominação de Kosher — e claro que se deslocaram de carro, pois também todos os transportes públicos param durante a festividade.
Mas um israelita laico de Jerusalém não se apoquenta: tem com certeza o Waze, a aplicação de GPS para telemóvel made in Israel que toda a gente utiliza, conhece o mapa da não observância citadina e faz questão de não se deixar dominar por regras que considera uma intrusão no domínio privado.
E assim resolve a questão.
“Israel muda o tempo todo, é aberto a tudo o que é novo.
Experimentar está na base da sua cultura”, prossegue Dorit.
O marido Roni concorda, acrescentando que “a inovação convive com as velhas tradições”, sendo as últimas secundadas sobretudo pelo discurso oficial.
“Enquanto temos o establishment político claramente a estagnar, olha-se em redor e vê-se o contrário.”
Isto torna-se evidente ao sair de Jerusalém rumo a Telavive.
Chegar a esta cidade à beira do Mediterrâneo, fundada há quase um século, equivale a tirar um espartilho, um casaco apertado — algo assim como ir de férias.
Em Telavive, Israel relaxa, respira.
Parece um outro país, o avesso da tensão opressiva da Cidade Santa.
“Esta é uma bolha onde as pessoas são muito novas, cosmopolitas e liberais”, conta Sara Mucznik, de 35 anos, que aqui reside há nove.
Portuguesa e judia, veio para ficar um ano no país que tantas vezes visitara na infância, e onde viviam a avó, os tios e os primos.
Mas acabou por arranjar trabalho e decidiu fazer Aliyah, o retorno a Israel que permite aos judeus de todo o mundo tornarem-se cidadãos.
“Esta sempre foi a minha segunda casa, sempre me atraiu a informalidade dos israelitas”, diz enquanto toma conta da filha Mia, de dois anos.
E esse sentimento continua a ser partilhado por muitos judeus de todo o mundo — as estatísticas apontam para 27 mil imigrações em 2017, sobretudo da Europa.
Sara passou cá duas guerras, viu rockets a serem lançados contra Telavive.
Mas não sentiu que isso diminuísse a tolerância das pessoas.
Ao contrário, “reforçou a ideia de que a paz é necessária” entre o seu grupo de amigos. Muitos deles já serviram no exército, um dos fatores que faz Sara pôr em causa a sua estadia em Israel.
“Preocupa-me que os meus filhos tenham de passar por isso”, reconhece.
Enquanto ainda só tem um, ela e o marido Evan, sul-africano, estão de viagem marcada para os Estados Unidos, onde vão viver pelo menos três anos.
“Precisamos de sair e ver isto de longe para tomar uma decisão.”
Qualquer israelita sabe que, acabado o liceu, terá de fazer o serviço militar — três anos se for homem, dois se for mulher.
Trata-se de uma paragem obrigatória tão incorporada na vida dos mais jovens que é encarada com normalidade.
“A nível pessoal, é o passo seguinte depois do liceu, é para onde as pessoas da minha idade vão, faz parte da experiência israelita”, salienta Yael W., de 16 anos, filha de Dorit e Roni.
A um nível, como diz, “mais coletivo”, ir para o exército representa um dever para com o país: “Ninguém quer viver assim, não é uma escolha.
Mas houve pessoas que me protegeram e agora é a minha vez.”
Yael não teme vir a correr perigo, não porque não possa acontecer, mas porque ela se recusaria a aceitá-lo.
“Seria injusto forçar-me a isso”, reflete, recordando que, em Israel, “se uma mãe perde um filho, pode não deixar os outros” entrar na vida militar.
Para Yael, os verdadeiros problemas do seu país estão noutra direção: “Há uma razão para existirmos, isso ninguém pode discutir.
Mas não sou sionista, não gosto do nacionalismo, não penso que estejamos numa boa direção.”
Ódio no Cairo, egípcios queimam a bandeira israelita como protesto pela morte de um bebé palestiniano, em Agosto de 2015
Há menos de um mês, Israel celebrou o Dia da Independência segundo o calendário hebraico. Jerusalém encheu-se de bandeiras brancas e azuis a flamejarem nas ruas, nas varandas e nas janelas dos carros.
Mas ainda não as retirou, na expectativa de que sirvam também para festejar o Dia de Jerusalém, que este ano calha a 13 de maio.
É um dia controverso, mas o mês não o será menos.
A 14, enquanto o mundo assinala a independência de Israel, os palestinianos do país e dos territórios ocupados lembram o dia da nakba (catástrofe).
Tudo isto ao mesmo tempo em que se assiste à mudança da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém, uma decisão de Donald Trump a que os palestinianos prometeram responder com um dia da ira.
O Dia de Jerusalém marca aquilo a que Israel considera a “unificação” da cidade em 1967, antes em poder jordano — e por isso não admira que as bandeiras invadam também Jerusalém Oriental, onde vivem 300 mil palestinianos.
“É um pesadelo: dezenas de milhares de colonos marcham pelas ruas, até dentro da Cidade Velha, na parte muçulmana.
Os árabes trancam-se em casa nesse dia”, comenta Orit Kammir, que no ano passado participou numa manifestação paralela organizada pela esquerda, e que a polícia teve de cercar, para impedir a agressão dos oponentes.
Esta advogada feminista de 57 anos, nascida e criada em Jerusalém, e doutorada nos Estados Unidos, descreve o dia como “um veneno” que é obrigada a engolir.
E que se soma a um quotidiano em que, cada vez mais, “as pessoas perderam a esperança numa solução”.
‘As pessoas’ são os 60% que votaram à direita, que celebram a ocupação, que falam — repetindo a propaganda governamental — da Jerusalém reunificada; são os ortodoxos, os cada vez mais judeus que se viram para a religião, os judeus árabes, os que “não percebem que os judeus esperaram 2000 anos para aqui viver, mas a terra não esperou”.
E são, também, simplesmente, “os que pensam que já não se trata de resolver o conflito mas de o gerir, que estar em conflito está no nosso ADN, que o resto dos israelitas está iludido, e que se continuarmos iludidos iremos morrer”.
Orit vê nesta retórica os traços de um temor ancestral: o medo de ser a última geração de judeus e a justificação de que “tudo deve ser feito” para o evitar.
Como ativista especializada nos direitos da mulher, não pode deixar de relacionar esta questão com a corrida demográfica em curso em Israel, intimamente ligada à sempre presente questão da manutenção de uma maioria judia no país e a um assunto que em 70 anos, mesmo depois de entrado o século XXI, e ainda que o país ostente das mais altas taxas de educação universitária da OCDE, nenhum dirigente ousou tocar: a lei da família.
“Israel tem leis muito avançadas em temáticas como a violência sexual e a igualdade das mulheres no mercado de trabalho.
Mas, para proteger a família judia, existem restrições incríveis aos seus direitos, como o facto de não termos leis de casamento e de divórcio”, esclarece, notando que a lei de igualdade das mulheres explicita que a mesma “não se aplica à lei da família”.
Esta ficou remetida ao domínio religioso, como acontecia no Império Otomano.
Na ausência de casamento civil, um casal misto ou um casal judeu que não pretenda um casamento religioso é forçado a contrair matrimónio fora do país — pela lei internacional, Israel não tem outra opção senão reconhecer essas uniões.
Tal não se aplica aos divórcios, que passam necessariamente pelo Tribunal Rabínico.
E este não os outorga em caso de oposição masculina.
“Se o rabino diz ao homem que ele tem de dar o divórcio — o que ocorre raras vezes — e este não quiser, o Estado pode prendê-lo.
Hoje, em Israel, há homens presos há uma década que não deram o divórcio às mulheres”, revela Orit.
“Neste item estamos ao nível da Arábia Saudita.
E o que para os de fora não faz sentido, cá dentro nem sequer é visto.”
Convivência palestinos e judeus numa praia de Tel Aviv, em Setembro de 2016
É, mais uma vez, o rio que corre ficando sempre o mesmo, a vida normal.
A vida de um Estado que se define como democrático e judeu sem ver nisso qualquer contradição.
As lojas de perucas e toucas usadas pelas judias religiosas para cobrirem os cabelos a proliferarem ao lado dos supermercados árabes, naquilo que Dorit W. descreve como “o símbolo da tolerância” de uma cidade mista e complexa como Jerusalém.
Na vida normal, na rua, não se ouvem discussões.
“Grandes populações em conflito coexistem sem problemas.”
Se não fosse palestiniano, Mohamad Owedah talvez pudesse concordar.
Esforça-se por isso, todos os dias, enquanto trabalhador social e coordenador da ONG Combatants for Peace.
Encontramo-lo no bairro ortodoxo de Kiryat Yovel, num apartamento onde há 20 anos ajuda jovens deficientes a tornarem-se autónomos.
Neste momento, vivem ali cinco raparigas judias que Mohamad assiste duas vezes por semana, embora ele não seja de ‘cá’, mas de ‘lá’.
Da Jerusalém Oriental que foi anexada por Israel, mas cujos habitantes não são considerados israelitas.
Nascido em Silwan, perto da Cidade Velha, onde a sua família tem raízes há mais de 500 anos, define-se como “um estrangeiro na sua própria terra”.
Como a todos os que vivem em Jerusalém Oriental, foi-lhe dado um cartão de residência. Não tem direito a votar, embora possa fazê-lo nas eleições municipais.
E se sair de Jerusalém Oriental arrisca-se a perder o direito de regressar.
“É muito complicado estar nesta situação.
É como estar entre dois países, numa Green Zone, num limbo cheio de limitações”, confessa.
Embora o Governo israelita defenda o contrário, esta parte de Jerusalém tem 60% da sua população a viver abaixo da linha de pobreza, de acordo — especifica Mohamad — com o padrão de vida israelita.
Porque não é fácil de imaginar, oferece um exemplo: “Estamos num bairro ortodoxo onde vivem 500 pessoas, e a câmara construiu um jardim com brinquedos para as crianças.
Em toda Jerusalém Oriental não vai encontrar uma coisa assim.”
Porém, há coisas piores: “Quando os judeus dizem que conhecem os árabes porque têm uma empregada e um mecânico que o são, e vivem bem com isso; ou quando os próprios judeus árabes mostram ser os mais antiárabes de Israel, e votam na extrema-direita dos Ashkenazes [judeus da Europa Ocidental] para nos continuar a discriminar.”
Para Mohamad, uma solução que não signifique a partição em dois Estados equivale a uma “doce ocupação”.
Significa dizer: “Ocupo-te com um sorriso.”
Foi a pensar que nada chegará a bom porto sem um conhecimento mútuo que, há 15 anos, Amin Khalaf cofundou a Hand in Hand, a única escola israelo-árabe e bilingue do país.
É cidadão israelita, tal como o milhão e 800 mil palestinianos que habitam no território de Israel desde 1948.
Mas tendo todos os direitos, e apesar de existirem árabes israelitas tanto no Knesset (Parlamento) como na Corte Suprema de Justiça, Amin não sente que a prática acompanhe o seu estatuto.
“Posso nomear os problemas da educação.
Como as escolas árabes têm resultados inferiores às judias, o orçamento também tem vindo a decrescer, e há cada vez menos dinheiro para investir na sua melhoria”, explica. Professor no Ono Academic College, uma escola privada israelita, vive por opção em Jerusalém Oriental, onde é responsável por uma ONG que ensina hebraico aos jovens palestinianos.
Esta também é a vida normal de Israel, onde um imenso conjunto de organizações trabalha para desfazer os nós históricos e políticos do país.
Uma delas é Bimkom, fundada em 1999 por um grupo de arquitetos e urbanistas justamente para intervir nos problemas do território.
A diretora executiva, Hetva Radovanitz, é uma brasileira de São Paulo que há 40 anos emigrou para Israel.
E que, todos os dias, desde o seu escritório no bairro de Rehavia, se bate pela democratização e “humanização” do sistema de planeamento urbano israelita.
O ponto de partida reside na premissa de que “o urbanismo pode ser um instrumento poderoso de implementação de uma política em lugares onde há disputa sobre a terra”. Uma estrada, diz Hetva, serve para unir dois ou três lugares, mas em termos políticos pode ser usada para os separar.
É isto que acontece em Jerusalém Este e na própria Cisjordânia, sob ocupação militar israelita, onde as comunidades não estão apenas a ser divididas como a contínua confiscação de terras pelo Estado — para escavações arqueológicas, para um parque nacional, para o “bem público” — faz com que, entre estas, possa nascer um bairro judeu. Onde o planeamento urbano é feito sem contemplar o crescimento da população.
Onde os palestinianos são “empurrados para uma de duas soluções: ou constroem ilegalmente, assumindo o risco, ou abandonam o território”.
Histórico o primeiro-monistro David Ben Gurion, à direita, a ser entrevistado por Edward G. Murrow no Kibbutz S de Boker, no deserto do Neguev, onde residia
Claro que há quem pense diferente.
Os tais 60% que, sendo a franca maioria, não são fáceis de encontrar.
Dov Kalmanovitch é um deles, está sentado num café do bairro ortodoxo de Ramot, onde vive, na paragem habitual antes de ir para o trabalho.
Contabilista e, mais importante, um dos vice-presidentes da Câmara de Jerusalém, eleito pelo partido Yisrael Beiteinu [A Casa Judia], resume assim o que pensa de Israel: “Este país foi criado para resolver o problema dos judeus.
É um país judeu e a sua capital é Jerusalém.
Depois do Holocausto, temos de construir o país e o exército com o propósito de nos protegermos.”
E os palestinianos?
“Os palestinianos não são uma nação.
Se querem fazer a paz e viver aqui, têm de reconhecer que os judeus o construíram.
E se escolherem lutar não terão nada.”
Dov aponta o dedo aos países árabes vizinhos, que, “após 70 anos, não quiseram integrar os palestinianos”.
E porquê?
“Porque querem que este conflito continue a existir.”
E qual a situação dos palestinianos de Jerusalém Oriental?
“Têm um estatuto superior aos da Cisjordânia e os mesmos direitos que os cidadãos de Israel”.
Mostra-se surpreso ao ouvir que, daquele lado da cidade, os habitantes são apenas residentes.
“Não sabia”, diz.
Dov Kalmanovitch foi o primeiro ferido da primeira Intifada, em 1988.
Um cocktail molotov caiu na frente do carro que ia a conduzir.
O treino militar ajudou-o a fugir do veículo a tempo de não morrer.
Mas ficou desfigurado, esteve um ano no hospital e decidiu que se sobrevivesse daria “o melhor de si” a Israel.
Tinha três filhos antes, teve mais três depois.
“Eles queriam matar um judeu e graças a Deus eu trouxe mais seis ao mundo”, termina. Dov representa o extremo do extremo na direita israelita.
Mas há também pessoas comuns como Yariv, um pequeno empresário da Galileia que, abominando “os perigos do nacionalismo” e declarando ser preciso “manter a democracia a funcionar”, considera que os palestinianos não querem a paz e “são os nossos inimigos”.
Se A. B. Yehoshua pudesse encontrar Dov ou Yariv, se pudesse olhá-los nos olhos, é provável que lhes dissesse: “Muito do desprezo que existe em relação aos árabes reside na culpa que temos.
A ideia de que ‘eles merecem’ vem daí.
Somos culpados.
E para o compensar estamos a tornar-nos cada vez mais agressivos.”
E não chegou a esta conclusão apenas, diz a sorrir, porque a mulher, que perdeu há um ano, era psicanalista.
Chegou até aqui depois de um longo caminho na defesa da solução dos dois Estados, depois de 18 livros, muitos dos quais dedicados a observar o seu país, ele que é um dos maiores escritores de Israel.
No seu apartamento de Givatayim, um subúrbio residencial de Telavive, conta-nos primeiro como tudo começou.
E tudo começou “do quase zero, do perigo total, da ameaça sobre Israel a cada momento de ser eliminado e destruído.”
Nascido em 1936, a sua família vivia há quatro gerações em Jerusalém.
O pai tinha vindo de Salónica, na Grécia, no século XIX, e mãe de Marrocos em 1933. Considera-se um judeu mizrahi, oriental, e por isso pensa nos árabes “como primos”.
Mas não está iludido: “Vejo-os com os seus problemas, as suas divisões.
Não são fáceis e muitas vezes — repare na situação de Gaza — são vítimas das suas próprias lideranças.
Mas eles não são estrangeiros, não se vão embora.
Vamos ter de viver com eles para a eternidade, vivem entre nós e à nossa volta, e temos de ser muito cuidadosos na nossa relação.”
O problema maior, diz, é a Cisjordânia.
“E existe não pelos erros mas pela maldade de Israel.”
Construindo os colonatos, levando para território ocupado meio milhão de judeus, Israel “impediu a solução dos dois Estados”, que A. B. Yehoshua subscreveu por mais de 50 anos.
Hoje, já não está tão certo.
“Escrevi sobre isto há semanas.
Temos a obrigação de dar cidadania aos palestinianos da Cisjordânia, para abolir o apartheid.
Poderíamos dividir o país em cantões, em áreas, numa espécie de federações.
Mas continuar a insistir num impossível congela ainda mais a situação.”
Letras Os três maiores escxritores de Israel, reunidos em 2006, em Telavive, para uma confweência de Imprensa a exigir o fibal da guerra contra o Líbano. São eles: Amos Oz à direita, A.B. Yehoshua no centro e David Grossman à esquerda. O filho deste últimoviria a morrer três dias depois no conflito
A. B. Yehoshua viu o Estado começar.
Ouviu pela rádio a Resolução 181 da ONU sobre a partição da Palestina, em novembro de 1947.
Horas depois, Jerusalém foi cercada.
“Caíram bombas na nossa rua, o meu pai foi ferido”, relata.
E quando Ben Gurion declarou a independência, ao meio-dia de 14 de maio do ano seguinte, os exércitos de seis países árabes atacaram de imediato.
“A decisão de criar um Estado foi muito corajosa e arriscada.
Poderíamos tê-lo perdido.
Foram tempos difíceis, não havia comida nem água, e de repente estávamos a ser ameaçados e em muitos casos mortos outra vez.
Mas lutámos finalmente pelas nossas vidas porque atrás de nós está o mar e não tínhamos para onde fugir.
Não havia alternativa.”
E que ruas eram as suas?
“Vivíamos num apartamento alugado na King George.
Naquele triângulo de ruas do centro de Jerusalém: King George, Jaffa e Ben Yehuda”, diz o escritor, olhando para trás e de novo para a frente, para as novas impossibilidades que Israel tem de encarar.
Para o triângulo mais vasto que é Israel e a sua complexidade, e a sua soberana teimosia. Para o país dividido que celebra oficialmente a independência no mesmo dia que uma parte dos seus habitantes assinala a nakba.
Para a juventude cansada de falar destes assuntos, ou simplesmente demasiado longe de não ter um Estado para saber o que isso é.
Aproximando a lupa — qual o país que resiste a um tal exercício? —, para os problemas de Israel com os beduínos a quem não reconhece a terra e com os 40 mil refugiados a quem não outorga asilo.
Para um Médio Oriente sempre em mortal ebulição — Yehoshua diz: “Até hoje Israel é o único Estado do mundo que está sob o risco de destruição total.”
E, no entanto, antes e depois, vive a sua vida.
Normal, não completamente normalizada, como era o seu intuito inicial, os sonhos dos que fizeram nascer este país.
Duas pessoas podem cruzar-se na rua e encontrar a sua língua materna, e por um curto instante revisitar uma antiga casa.
Um palestiniano pode cuidar de cinco raparigas judias, religiosamente, duas vezes por semana.
Ou explicar, com o máximo respeito, a um estrangeiro, a necessidade de observar o Shabbat.
Isto também é Israel, 70 anos depois.
Qual é mesmo o ditado, o velho ensinamento judeu?
“O dia é curto e a tarefa imensa.”
Se quiser outros 70, Israel tem mesmo de o praticar.
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