09/11/2016 - 06:31
Nas decisões sobre declarações de património, os juízes valorizaram sempre mais o dever de transparência do que as formalidades e as circunstâncias das empresas com capitais públicos.
Até agora, em todos os casos em que o Tribunal Constitucional teve de decidir se os administradores de empresas com capitais públicos e nomeados pelo Estado tinham de entregar as declarações de património, os juízes do Palácio Ratton decidiram que sim.
O PÚBLICO consultou os 25 acórdãos sobre Declarações de Património e Rendimentos (DPR) constantes no site do Tribunal Constitucional e conclui que, na esmagadora maioria dos casos em que é questionado sobre a obrigatoriedade de apresentação daquela declaração, diz que sim.
Mesmo quando estão em causa órgãos como a Comissão Permanente do Conselho Económico e Social, o Alto Comissário para as Minorias Étnicas, o Conselho Superior de Defesa Nacional, o comandante-geral da GNR e empresas como a Taguspark e a REN em processo de privatização.
Mas será que o mesmo pode acontecer no caso dos novos administradores da Caixa Geral de Depósitos (CGD), agora que todas as pressões estão colocadas em cima do tribunal presidido por Manuel da Costa Andrade?
Depende da forma como os juízes considerarem o decreto-lei 39/2016, em que o Governo subtraiu a nova administração da CGD do estatuto de gestor público.
Se se fixarem na forma, poderão deixar cair a obrigação de apresentação da declaração de património.
Mas se forem pelo espírito da lei de controlo público de riqueza dos titulares de cargos políticos, como têm feito até aqui, deverão mandar notificar os novos administradores da Caixa para apresentarem as suas declarações.
Nas fundamentações das suas decisões, o Constitucional insiste várias vezes na importância decisiva do espírito da lei com formulações como esta: “O regime jurídico do controlo público da riqueza em razão do cargo tem por objectivo permitir, através da imposição do dever de apresentação da declaração de património, rendimentos e cargos sociais, o levantamento dos casos em que os interesses privados podem afectar a actuação dos homens públicos” dado que estes “no exercício das suas funções, devem pautar-se pela defesa do interesse público”.
Para evitar a apropriação de bens públicos para benefício pessoal, a lei obriga a declarações no início e no fim dos mandatos, assim como actualizações sempre que haja uma variação substancial de património (de valor superior a 50 salários mínimos nacionais).
“A obrigação de declarar o património, as actividades e funções privadas e os interesses particulares dos titulares de cargos públicos deriva da vontade de moralizar e melhorar a transparência da vida pública”, alegam os juízes numa decisão sobre a REN em 2010. Onde acrescentam que as declarações apresentadas no início e no fim de funções são um meio para verificar se houve algum enriquecimento anormal que leve à suspeita da defesa ilegítima de interesses privados, propiciada pelo exercício abusivo da função pública”.
Para os juízes constitucionais, os conceitos desta lei são elásticos o suficiente para permitirem que se cumpram tais objectivos.
Em vários acórdãos, o TC permite-se fazer interpretações extensivas ou analógicas da lei para enquadrar na lei de controlo da riqueza certos cargos que não constavam do elenco da lei 4/83 e que pareciam poder ficar fora dela.
Fê-lo, por exemplo, no caso do Alto Comissário para as Minorias Étnicas, de um administrador-delegado de serviços municipalizados de água e saneamento e dos membros do Conselho Superior de Defesa Nacional.
Em todos equiparou-os a cargos políticos.
Não é o caso da CGD, em que a questão se coloca no estatuto de gestor público a que o Governo quis subtrair o novo conselho administração.
Mas a elasticidade dos conceitos entendida pelo TC também está clara nos acórdãos sobre empresas onde o Estado tem participação.
A argumentação repete-se em muitas decisões deste tipo: é considerado gestor público – e como tal obrigado à DPR – “quem houver sido designado, por nomeação ou por eleição nos termos da lei comercial, para órgão de gestão ou de administração das sociedades constituídas nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas estaduais possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma directa ou indirecta, uma influência dominante em virtude da detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto, ou do direito de designar ou de destituir a maioria dos membros do conselho de administração e fiscalização”.
Ora, repete o TC em vários acórdãos, para efeitos de controlo de riqueza, o “critério delimitador não será estritamente jurídico – o tratar-se de uma pessoa colectiva de direito público, - mas económico”, ou seja, o facto de os capitais geridos pelos administradores serem efectivamente públicos.
Neste contexto enquadra-se claramente a CGD.
Segundo os seus estatutos, trata-se de uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, que se “rege pelas normas da União Europeia, pelas leis bancárias e comerciais e pelo regime jurídico do sector público empresarial e demais normas aplicáveis atenta a sua natureza de empresa pública”.
REN: três vezes obrigados à declaração
O caso das três decisões sobre os administradores da REN (em 2010, 2012 e 2013) é bastante elucidativo da jurisprudência do Tribunal.
Em todas o TC considerou que eles estavam obrigados à apresentação da DPR, mesmo quando, no último caso, já aquela empresa tinha uma participação residual do Estado. “Onde quer que a posição ocupada confira ao seu titular semelhante posição [a possibilidade de sujeitar a prestação do órgão em que se insira à influência de interesses de outra ordem que não pública], não haverá razões para distinguir”, lê-se no acórdão de 2010.
Dois anos depois, instado outra vez a pronunciar-se sobre a vinculação dos administradores da REN à obrigação de declaração, o TC reafirma que “os membros dos órgãos de administração das empresas públicas, independentemente da respectiva forma jurídica, ficam sujeitos ao estatuto do gestor público”.
E que “estes ficarão sujeitos ao regime jurídico do controlo público da riqueza em razão do cargo quando tiverem sido designados pelo Estado”
Resta saber se agora irá considerar suficiente, para que os novos administradores da CGD não entreguem a declaração de rendimentos, o decreto-lei do Governo que os retira do estatuto de gestor público.
Ou se irá considerar esta exclusão se situa “num plano puramente inorgânico no sentido em que apenas poderá suportar-se num acordo firmado à margem dos mecanismos formais que o ordenamento disponibiliza para fazer relevar juridicamente o respectivo resultado”, como fez no acórdão de 2012 sobre a REN, ainda que numa situação diferente. Nessa altura considerou tal exclusão, "logo à partida normativamente inviável”.
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