OPINIÃO
JOSÉ LOUREIRO DOS SANTOS 29/05/2014 - 00:33
Será que as políticas
de defesa de Berlim poderão também pôr em causa a coesão da NATO, portanto a segurança
e a integridade territorial dos seus Estados-membros na Europa?
Em declarações à Der Spiegel, Schäuble, ministro das Finanças alemão, mostrou-se contrário a qualquer
aumento dos recursos de defesa por causa da crise na Ucrânia, pois seria uma
“medida pouco inteligente” e “susceptível de criar mal-entendidos
com a Rússia”. O que
foi visto como resposta negativa ao apelo do secretário-geral da NATO para os
parceiros da Aliança Atlântica aumentarem os respectivos orçamentos militares
para 2% do PIB, como se encontra,
aliás, acordado.
Esta declaração parece
surpreendente à luz dos recentes acontecimentos protagonizados pela Rússia, já
que a crise da Ucrânia rompeu com o quadro de uma defesa ocidental baseada na
aproximação a Moscovo e concretizada no Conselho NATO-Rússia - já denunciado na
sequência da anexação da Crimeia -, o que constitui o melhor indicador dos
equívocos em que a NATO viveu nos últimos anos.
A atitude russa tem sido
genericamente percepcionada como a concretização da vontade de restaurar as
relevantes vantagens geopolíticas perdidas com a implosão da União Soviética,
entre as quais o controlo das posições estratégicas da península da Crimeia e
do corredor ucraniano - uma das duas principais ligações da planície europeia
às regiões de Moscovo e mar Negro e vice-versa. E mostra a sua disposição para
usar a força militar com esta finalidade, como já fizera na Geórgia, o que lhe servira de
ensaio para poder aperfeiçoar o seu sistema militar, aperfeiçoamentos já
visíveis, como straram os dispositivos, as forças e as tácticas aplicadas tanto
na captura da Crimeia como na pressão exercida na Região Leste da Ucrânia.
Neste contexto é difícil
compreender que a Alemanha não responda positivamente ao apelo do secretário-geral
da Aliança Atlântica no sentido de reforçar os dispositivos defensivos dos países-membros europeus, e assumindo
a sua liderança, quando as atitudes russas tornam indispensável o regresso à
missão de defesa colectiva para enfrentar a ameaça reforçada que elas
representam.
Analisando as afirmações de
Scháuble tendo em conta, por um lado, a realidade no terreno em termos das
relações germano-russas, por outro, o seu comportamento recente em relação aos
acontecimentos na Ucrânia, e, finalmente, os sentimentos ambivalentes com que
certas elites alemãs olham a Rússia, tais declarações não nos surpreendem tanto
como exigiria a sua lógica aparente.
É conhecida a existência de um
forte entrelaçamento económico da Alemanha com a Rússia, nomeadamente no âmbito
da energia, do que resultam dependências mútuas que a Alemanha parece não estar
preocupada em reduzir, tendo em vista o facto de vir recusando o estabelecimento
de uma estratégia energética comum europeia que outros parceiros desejam. E têm
sido bem pífias as sanções económicas impostas pelos países europeus ocidentais
à Rússia como resposta às suas reiteradas infracções à lei internacional na
Ucrânia. Assim como são surpreendentes as relações Alemanha-Rússia,
apresentadas em síntese na revista The Economist de 10 de Maio último, num artigo
sobre este tão curioso tema, cujo subtítulo é precisamente “Ambivalência alemã
em relação à Rússia reflecte uma identidade em conflito”.
As linhas gerais do artigo
destacam a existência de uma certa russofilia em parte significativa da intelligentsia alemã, da qual os dois
líderes sociais-democratas Helmut Schmidt e Schröder são exemplo: o primeiro considerou a anexação da Crimeia
se não legítima, pelo menos compreensível; e o segundo, que preside à empresa
gestora do North Stream (gasoduto que liga directamente a Rússia e a Alemanha),
fez com que Putin se tivesse deslocado a S. Petersburgo de propósito, para
abraçar o grande amigo no seu septuagésimo aniversário. Trata-se de líderes de
esquerda que, segundo o artigo, seguem a tradição aberta por Willy Brandt
com a aproximação ao
Leste durante a guerra fria, a famosa Ostpolitik. Numa situação bem diferente da
actual, convém lembrar.
A The Economist acrescenta que essa
russofília engloba o partido recentemente constituído Alternativa para a
Alemanha, que advoga a saída do país do euro, e Steinmeier, actual líder
social-democrata e ministro dos Negócios Estrangeiros alemão que já terá
declarado a Rússia com poucas culpas do que ocorre na Ucrânia, pois se teria
limitado a responder ao acordo que a UE se dispunha a fazer com esse país...
Segundo a prestigiada revista, um historiador alemão explica o sentimento de
russofília como uma “mistura de sentimentalismo, nostalgia, cobardia e kitsch”, e outro considera-o como
“inscrevendo-se numa longa e desagradável tradição de cooperação
russo-germânica de que é exemplo o Pacto Molotov-Ribentrop
de 1939”. Recorde-se
que este pacto dividia a Polónia entre os dois países e dava-lhes mãos livres
para agirem contra outros Estados vizinhos sem que o parceiro interferisse, o
que explica as preocupações desses mesmos Estados actualmente tanto com a Rússia
como com a Alemanha. E cita uma autora russa vivendo na Alemanha a referir-se a uma subtil campanha
de propaganda de Putin para separar a Alemanha do Ocidente.
De tudo isto se poderá concluir
que, afinal, as declarações de Scháuble não são de espantar, ao considerar o
orçamento da Defesa como “uma variável de ajustamento” e não “como
prioritário”, utilizando os termos que o diário francês Le Figaro emprega num dos seus
recentes títulos. Ou seja, para a Alemanha não haverá qualquer problema com a
assertividade bélica russa nem com a sua determinação em empregar a força
militar para alterar fronteiras à revelia da lei internacional. Portanto, em
vez de a NATO se dever preparar para garantir a defesa colectiva dos seus
membros europeus, implantando sistemas militares capazes de dissuadir
iniciativas de Moscovo idênticas às que vem efectuando na Ucrânia e a combatê-las se necessário, pode
continuar como há cerca de 20 anos faz, definindo e implantando sistemas de
forças em função da sustentabilidade financeira e não das ameaças previsíveis.
As políticas de austeridade
orientadas pela Alemanha conduziram a União Europeia aos panoramas políticos
nacionais revelados pelas eleições para o Parlamento Europeu caracterizados por
alguns fortes partidos nacionalistas que, recusando o aprofundamento da
integração e desejando fazer reverter a que já existe, indiciam uma forte
ameaça à coesão da União.
Será que as políticas de defesa
de Berlim poderão também pôr em causa a coesão da NATO, portanto a segurança e
a integridade territorial dos seus Estados-membros na Europa?
Ou estará Berlim mais apostada em
assegurar um poderoso eixo germano-russo, convencida de que nele imporá os seus
termos, em vez de um bloco ocidental atlântico constituído pelos EUA, Canadá, e
países da Europa Ocidental por si liderados, face a uma Rússia que ambiciona
reposicionar-se nos termos geopolíticos vantajosos que perdeu no fim da guerra
fria?
Ou pretenderá antecipar-se a uma
eventual aliança russo-chinesa, aparentemente já em formação? Para, de uma
forma hábil, impedir a sua concretização? Ou reforçar o seu enorme potencial em
comparação com o dos Estados Unidos?
Eis
a incerteza que urge esclarecer.
O que é particularmente importante a países, como Portugal, para os quais a
NATO constitui a aliança estrutural de segurança e, portanto, com maior
necessidade de estudar e adoptar as políticas de aproximação aos futuros que
considerem do seu interesse prosseguir.
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